Marcelo De Grazia,
Nova Petrópolis, Rio Grande do Sul – Opera Mundi
Os movimentos
sociais saberão reagir a essa nova ordem?
A recente
intimidação do GCHQ, a inteligência secreta inglesa, ao jornal The Guardian e a
invasão da NSA, a inteligência secreta dos EUA, nos arquivos da Petrobras criam
uma boa ocasião para refletir sobre terrorismo, livre-mercado, democracia,
liberdade de expressão e independência de imprensa.
Não é absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois tipos de terrorismo, o disseminado e o concentrado. O primeiro está a cargo de grupos como Talibã, Al Qaeda e outros. Empregam a violência extrema em nome de Deus ou da Nação, quando não em nome de ambos, e o resultado é a morte de inocentes, como no Afeganistão, Síria e Iraque, só para ficarmos nos exemplos mais atuais. Prometem democracia e a melhora das condições de vida em seus territórios, mas ao tomar o poder promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são cometidos os maiores crimes contra a humanidade.
O terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o terror oficial, com lei e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo acabado disso, a Inglaterra fica só um pouquinho atrás. Não é apenas gratidão pelo apoio recebido na II Guerra Mundial, é sobretudo alinhamento político, econômico e financeiro com a grande potência para extrair mais e melhores dividendos. Ao invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara do servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros ganhos de mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.
Alguns analistas classificam isso de nova face do imperialismo, outros de neocolonialismo. O nome não importa, é o velho movimento expansionista do capitalismo versão ocidental, cuja índole se assemelha à invasão das Américas. Após a invasão do Iraque, Tony Blair veio a público dizer o que todo o mundo já sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria suficiente para derrubar seu gabinete.
Os EUA, assim como muitos Estados nesta época de nuvem informática, estão desenvolvendo uma rede imperial de acesso às informações privadas, coisa que bancos, lojas de departamento, redes de telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a polícia e a Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de serpentes, Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula infantil, mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia em conceitos como democracia e livre-mercado.
John Gray, em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global, já havia denunciado a contradição de uma liberdade de mercado organizada pela intervenção legal do Estado. A acusação feita pelo ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova material do crime. Mas possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar qualquer argumento a favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos da Petrobras escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da natureza capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.
Não é absurdo dizer que nossa época apresenta ao menos dois tipos de terrorismo, o disseminado e o concentrado. O primeiro está a cargo de grupos como Talibã, Al Qaeda e outros. Empregam a violência extrema em nome de Deus ou da Nação, quando não em nome de ambos, e o resultado é a morte de inocentes, como no Afeganistão, Síria e Iraque, só para ficarmos nos exemplos mais atuais. Prometem democracia e a melhora das condições de vida em seus territórios, mas ao tomar o poder promovem o terror contra seus inimigos e exploram ao máximo a população. É o velho bordão: em nome da liberdade e da democracia são cometidos os maiores crimes contra a humanidade.
O terrorismo concentrado é o exercido pelos Estados, é o terror oficial, com lei e banda de música. Os EUA de hoje são o exemplo acabado disso, a Inglaterra fica só um pouquinho atrás. Não é apenas gratidão pelo apoio recebido na II Guerra Mundial, é sobretudo alinhamento político, econômico e financeiro com a grande potência para extrair mais e melhores dividendos. Ao invadir o Iraque em apoio ao seu antigo aliado, por trás da máscara do servilismo garantia também para si as benesses do petróleo e futuros ganhos de mercados desbravados militarmente pelo Grande Irmão.
Alguns analistas classificam isso de nova face do imperialismo, outros de neocolonialismo. O nome não importa, é o velho movimento expansionista do capitalismo versão ocidental, cuja índole se assemelha à invasão das Américas. Após a invasão do Iraque, Tony Blair veio a público dizer o que todo o mundo já sabia, o Iraque não tinha armas químicas e biológicas… Antigamente isso seria suficiente para derrubar seu gabinete.
Os EUA, assim como muitos Estados nesta época de nuvem informática, estão desenvolvendo uma rede imperial de acesso às informações privadas, coisa que bancos, lojas de departamento, redes de telefonia, provedores e hospedeiros de informática, a polícia e a Receita Federal já vêm fazendo há muitos anos. Desse ninho de serpentes, Snowden extraiu as provas dos crimes praticados pelos EUA em nome de uma suposta guerra ao terror. O dedo de Snowden, como na fábula infantil, mostrou a falácia da ideologia liberal, que desde a Revolução Francesa se apoia em conceitos como democracia e livre-mercado.
John Gray, em Falso Amanhecer – Equívocos do Capitalismo Global, já havia denunciado a contradição de uma liberdade de mercado organizada pela intervenção legal do Estado. A acusação feita pelo ex-agente de inteligência apenas forneceu a prova material do crime. Mas possui o condão de deixar nu o rei e de fulminar qualquer argumento a favor do livre-mercado. A investigação ilegal dos arquivos da Petrobras escancara as ligações profundas entre os agentes capitalistas e o Estado. Seus métodos mostram que, além de guerras quentes, há também uma soturna guerra fria, invisível, cuja índole expressa a outra face da natureza capitalista. É a velha e sempre atualizada guerra comercial.
O dedo acusador da
roupa transparente do rei é o fim do conceito de livre-mercado e elimina
qualquer reflexão de ética associada ao sistema econômico capitalista,
justamente por este não se estruturar a partir de princípios éticos nem conter
em seu horizonte de ação qualquer objetivo social. No início dos anos 1970, a
revelação de espionagem do diretório do partido Republicano por parte do governo
Nixon resultou na queda deste. Mas alguma coisa não permitiu ou não forçou a
queda de Blair nem de Bush nem de Obama. Por quê?
“Guerra ao terror”
Muito já se falou que o 11 de Setembro, se não foi obra arquitetada pelos próprios falcões na Casa Branca, foi o motivo esperado pelos EUA para uma nova investida militar, com o objetivo de abrir mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA, através de Bush, se declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por extensão, contra o terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente Médio.
Foi uma declaração unilateral contra uma organização, numa curiosa assimetria, pois a guerra quente é sempre Estado contra Estado, ou uma força dentro dele contra ele mesmo, como a da Secessão, por exemplo. Mas servia aos propósitos de vender armas dos fabricantes apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento maior e mais barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma região com centenas de milhões de consumidores.
Nesse movimento, passaram por cima das determinações da ONU e da recomendação dos países contrários à invasão, mataram milhares de civis inocentes, destruíram parte da riqueza do país (para a reconstrução com dinheiro a juros de banqueiros ocidentais e a instalação de empresas dos aliados de seu governo), torturaram soldados (que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as leis no império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de Setembro serviu como o grande ponto de virada na democracia anglófila, com o consequente avanço do terrorismo de Estado e a diminuição das garantias individuais.
Que democracia?
Na democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por um punhado de atenienses livres não levavam em conta a vontade nem as condições da imensa maioria da população, pelo simples motivo de que eram escravos ou mulheres. Ou seja, democracia de alguns para alguns.
Hoje, se quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e ainda fazem a política, a realpolitik, deixando de lado todo traço quixotesco de idealismo, os dois grandes modelos seriam as experiências dos ingleses e dos norte-americanos, ou a democracia anglófila. São séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a América Latina e a Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir melhor experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em bastiões da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que pesem a experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial contemporâneo dos EUA.
Como podem as duas sociedades com a experiência mais larga nesse regime assistir impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis das garantias individuais através de práticas totalitárias? Quando o mundo assiste indiferente a essa escalada do terror concentrado de Estados ocidentais, os partidários da realpolitik já podem estufar o peito e dizer, como os generais da última ditadura brasileira: vivemos numa democracia relativa.
O relativismo da democracia atual estaria caracterizado não apenas por essa prática invasiva no âmbito privado e no público, mas também por outra característica bem especial. Na época dos impérios, dos reis absolutistas, das ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do mandatário do poder se deu pela força ou por acordos de camarilha, com o aval dos sacerdotes, das igrejas e mesquitas, dos suseranos, líderes provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a participação do povo, a não ser como massa de manobra, como exemplificam as revoluções burguesas e o voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o seu requinte: o sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de império, cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.
“Guerra ao terror”
Muito já se falou que o 11 de Setembro, se não foi obra arquitetada pelos próprios falcões na Casa Branca, foi o motivo esperado pelos EUA para uma nova investida militar, com o objetivo de abrir mercados e consolidar sua geopolítica. Os EUA, através de Bush, se declararam em guerra contra Osama bin Laden e, por extensão, contra o terrorismo não estatal de certas forças da Ásia e do Oriente Médio.
Foi uma declaração unilateral contra uma organização, numa curiosa assimetria, pois a guerra quente é sempre Estado contra Estado, ou uma força dentro dele contra ele mesmo, como a da Secessão, por exemplo. Mas servia aos propósitos de vender armas dos fabricantes apoiadores da eleição de Bush, garantir o fornecimento maior e mais barato de petróleo e realizar o avanço estratégico sobre uma região com centenas de milhões de consumidores.
Nesse movimento, passaram por cima das determinações da ONU e da recomendação dos países contrários à invasão, mataram milhares de civis inocentes, destruíram parte da riqueza do país (para a reconstrução com dinheiro a juros de banqueiros ocidentais e a instalação de empresas dos aliados de seu governo), torturaram soldados (que haviam elegido como “inimigos” sem ter recebido deles nenhuma agressão), entre outras arbitrariedades. Numa só expressão: rasgaram as leis no império de seus interesses. E a Inglaterra atrás. O 11 de Setembro serviu como o grande ponto de virada na democracia anglófila, com o consequente avanço do terrorismo de Estado e a diminuição das garantias individuais.
Que democracia?
Na democracia ateniense, as decisões tomadas na ágora por um punhado de atenienses livres não levavam em conta a vontade nem as condições da imensa maioria da população, pelo simples motivo de que eram escravos ou mulheres. Ou seja, democracia de alguns para alguns.
Hoje, se quisermos falar no mesmo tom daqueles que fizeram e ainda fazem a política, a realpolitik, deixando de lado todo traço quixotesco de idealismo, os dois grandes modelos seriam as experiências dos ingleses e dos norte-americanos, ou a democracia anglófila. São séculos contínuos desse regime político. A Ásia, a América Latina e a Central, a Oceania, a África, qual continente poderia exibir melhor experiência para estudo? Não entrariam nem a Alemanha nazista, a Itália fascista, a Espanha de Franco nem o Portugal salazarista. Ao falar em bastiões da democracia nos referimos sempre a esses dois países, em que pesem a experiência colonial inglesa tradicional e o modelo colonial contemporâneo dos EUA.
Como podem as duas sociedades com a experiência mais larga nesse regime assistir impassíveis a seus mandatários rasgarem as leis das garantias individuais através de práticas totalitárias? Quando o mundo assiste indiferente a essa escalada do terror concentrado de Estados ocidentais, os partidários da realpolitik já podem estufar o peito e dizer, como os generais da última ditadura brasileira: vivemos numa democracia relativa.
O relativismo da democracia atual estaria caracterizado não apenas por essa prática invasiva no âmbito privado e no público, mas também por outra característica bem especial. Na época dos impérios, dos reis absolutistas, das ditaduras e dos totalitarismos, a escolha do mandatário do poder se deu pela força ou por acordos de camarilha, com o aval dos sacerdotes, das igrejas e mesquitas, dos suseranos, líderes provinciais, coronéis e apaniguados. Sem a participação do povo, a não ser como massa de manobra, como exemplificam as revoluções burguesas e o voto a cabresto. Mas as democracias relativas têm o seu requinte: o sistema eleitoral. Aí está a pedra angular desse novo regime de império, cuja índole colonial parece ainda não ter se esgotado.
No ambiente político atual, em que os compradores de votos para reeleição e os mensalistas da governabilidade também agem livremente para assegurar os seus privilégios e os de seus apoiadores na sombra, podemos afirmar que a democracia age de baixo para cima apenas para legitimar o exercício do poder. Mas, pelo que temos assistido nos últimos anos, por aqui e sobretudo naquelas duas democracias seculares, nem as eleições nem as leis são suficientes para obrigar a conduta dos governantes.
À exceção de um Collor, que caiu muito mais por vontade do Congresso do que pela voz das ruas (o povo outra vez feito massa de manobra), os governantes nessas democracias relativas parecem garantir com os votos a impunidade; nada de muito grave lhes ocorrerá até o fim de seus mandatos. Democracia de baixo para cima é isso; de cima para baixo: autocracias, oligarquias… O interesse do povo só é levado em conta quando se traduz em consumo, quando pode garantir lucro financeiro para as corporações e ganho político para os governos.
Mídia sem independência
Basta acompanhar o noticiário da grande imprensa. A qualquer ameaça de restrição da liberdade de informar, com todo acerto, chovem protestos. Mas esse não é o ponto nevrálgico. Ao contrário, diríamos até que para os grandes órgãos de comunicação a defesa da liberdade de expressão tem servido para uma estratégia cabotina de encobrimento de outro dado real. É verdade que algumas decisões judiciais, contra o bom senso e os dispositivos constitucionais, têm cerceado o direito público à informação, em especial nos assuntos que envolvem o Estado, seja na pessoa de seus servidores e governantes, seja nas políticas imperiais de guerra ou de favorecimento econômico, como foram os assaltos às economias atingidas pela crise de 2008. Crise aliás provocada pelos agentes econômicos com a conivência dos governantes, em especial do bastião liberalista Alan Greenspan, para quem muitos queriam dar o Nobel de Economia…
O bom argumento, o da liberdade de expressão, tem no entanto se prestado para a chamada grande mídia escamotear um valor que nos parece tão ou mais importante: a independência da imprensa. Quando ela se alinha de maneira acrítica com um candidato; quando sempre amplifica as más notícias do governo de um determinado partido; quando evita aprofundar assuntos polêmicos como os crimes ecológicos, a falta de abertura para bancos asiáticos, a descriminalização da maconha, a reforma agrária etc; quando evita qualquer apoio a políticas, valores e esforços dos “pequenos” contra os valores hegemônicos do capitalismo; quando retira de seu horizonte a “cultura” em favor de produtos culturais meramente de consumo; quando evita escancarar condutas socialmente nocivas de seus patrocinadores; quando suprime a crítica aos políticos que apoiaram nas eleições passadas ou aos que ainda podem de alguma forma lhes ser úteis no futuro; quando não defende maior abertura de concessões para novos veículos de comunicação; quando se alinha e dissemina a política agressiva de um governo que lhe favorece; quando embarca em campanhas nacionalistas que servem para interesses de grandes corporações ou do governo com o qual tem trocas vantajosas; quando evita abordar os podres do grande concorrente ou até mesmo problemas internos como demissões em massa de seus quadros; quando se alinha ou silencia diante de um esforço de guerra injusta do Estado.
Quando a velha mídia, ao abandonar sua função primordial de fiscalização e crítica aos governos e às sociedades, se alinha com o poder em nome de lucros financeiros e de seu próprio empoderamento, ocorre o que podemos chamar de falta de independência. Então cabe a pergunta, sobretudo em sociedades de democracia relativa como são as nossas: de que vale a liberdade de expressão para uma mídia sem independência? Será que para esse tipo de jornalismo faz tanta falta assim a liberdade de informar?
Menos mal que esse vazio crítico vem sendo ocupado por uma mídia dissidente, através de publicações impressas, mas sobretudo revistas e jornais online e blogs. São espaços sem grandes recursos financeiros e logísticos, mas que têm aprofundado a reflexão dos temas espinhosos que a grande imprensa oculta ou aborda de maneira superficial. O multiculturalismo de nossa época, as tensões sociais, a busca de alternativas ao capitalismo hegemônico, a crítica à própria imprensa, a discussão inteligente têm encontrado grande e generosa acolhida nessas “pequenas” mídias. Embora todos, grandes e pequenos, defendam seus interesses, notamos nesses novos espaços maior liberdade de expressão com mais independência. Não é por outro motivo que, volta e meia, ouvimos algum arauto do poder advogar a regulamentação da internet, o nosso pequeno grande reino da liberdade.
Poder na sombra
A conclusão inquietante de tudo isso é que já não importa mais derrubar o governo. Quando Nixon caiu em virtude de sua espionagem no Watergate, as corporações, em especial as financeiras (que recém começariam, no início dos anos 1970, a criar o que hoje conhecemos por mercado financeiro internacional), ainda não tinham atingido o grau de maturidade e força que só foi possível pela desregulamentação dos mercados e pela globalização.
Até aí, com a chave do cofre num bolso e as restrições legais ao capital no outro bolso, o presidente de uma grande potência como os EUA ainda não era apenas um mero agente de relações públicas. O mundo vivia à véspera da criação dos eurodólares via City de Londres, antes de Reagan e sua Guerra nas Estrelas e antes das privatizações de Thatcher e do consenso de Washington com o Bush pai, mas já iniciara o recuo das conquistas do Estado de bem-estar social. A acumulação de capital transbordou do bolso, as regras rígidas foram flexibilizadas, as corporações ganharam um gigantismo e um poder de corromper, impor e rasgar códigos como nunca tinha sido imaginado e muito menos admitido pelos políticos mais conservadores.
Hoje as corporações compram presidentes e ministros em todos os continentes, compram governos inteiros na África, transformam populações de países pobres em cobaias de suas experiências com remédios e demais produtos farmacêuticos e alimentares, ainda ou sobretudo quando esses produtos, com componentes cancerígenos, são proibidos em seus países de origem.
Hoje essas corporações compram decisões judiciais, eliminam advogados, jornalistas, funcionários do ministério público, juízes, investigadores. Hoje elas indicam e demitem secretários de Estado, elegem deputados, apontam governadores e senadores. Hoje elas decidem a ocasião e a intensidade das crises, e ainda escolhem os bodes expiatórios (as vítimas que devem ser chutadas para fora do mercado, como o Lehman Brothers). Hoje esses agentes maquiam os balanços, driblam os impostos ou forçam sua redução, elegem paraísos fiscais e, com a conivência de seus congêneres financeiros, escolhem o melhor caminho para escapar da malha fina. E ainda compram o silêncio e até mesmo a conivência da grande imprensa corporativa, associada ao projeto comum de garantir o lucro máximo.
Hoje o poder está na mão dessas corporações, já não vale mais a pena forçar a queda de um governo, ainda mais se esse governo, além de corrupto e corruptor, está ali justamente para fazer o jogo que lhes interessa. Máfia? Teoria da Conspiração? Cada um escolha o nome que menos perturbe o seu sono, mas a verdade parece uma só: tenham o nome que tiver, são essas feras que, na sombra, governam muitos de nossos caminhos e decidem afinal a música que deve tocar.
Até quando será assim, se os movimentos sociais serão capazes de trocar o disco ao invés de dançar sempre conforme a música, não sabemos. Mas que não vivemos num mundo plenamente democrático, disso já não resta a menor dúvida. E com o requinte das eleições (pois dessa válvula de escape, reguladora e legitimadora do sistema econômico, nem os donos do poder querem abrir mão) não precisam mais de césares, imperadores, reis, czares. Nem mesmo de gente como Stálin, Hitler, Mussolini, Roosevelt, Getúlio, Perón & Cia., porque o enfraquecimento dos Estados nacionais (entenda-se: os Estados periféricos) e a representação política de fancaria realizam o trabalho sujo de aplainar o caminho para o avanço das corporações.
Não nos iludamos, esse tipo de gente nunca gostou de democracia, e por uma razão muito simples: não gostam de povo, a não ser como massa consumidora e/ou de manobra. Será uma ditadura, um totalitarismo, essa democracia consentida e relativa? Em todo caso, não cheirará melhor do que hoje. Outro requinte: terá a sua imprensa livre…
Será que voltarão fantasmas como socialismo, comunismo, revolução, ideologia, Estado forte, intelectuais orgânicos, luddismo…? Ou será que as sociedades, organizadas em torno de valores como cooperativismo, solidariedade, compartilhamento e uma distribuição melhor da riqueza humana, tudo interligado a uma ética ecológica, conseguirão encontrar melhores alternativas a esse estado de coisas?
Quanto à intimidação no The Guardian, foi para inglês ver… Quer dizer, foi para norte-americano ver. O episódio na verdade é uma piada no tom do velho humour britânico, e ilustra o juízo que os ingleses fazem dos norte-americanos. Quem, em pleno século XXI, acreditaria numa pantomima dessas. O GCHQ sabe que os seus compatriotas desconfiam que os dados procurados pela inteligência secreta não terminam ali, no disco rígido nem no pendrive, mas já correm feito vírus por outros sistemas da cibercultura.
A piada é que eles acham que os norte-americanos não sabem disso…
(*) Marcelo Degrazia é escritor, autor de A Noite dos Jaquetas-Pretas e do blog Concerto de Letras. Texto publicado no blog Outras Palavras.
Leia mais em Opera
Mundi
Foto: Cena do filme
Metropolis, do alemão Friz Lang
Sem comentários:
Enviar um comentário