Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Disse e escrevi
várias vezes - e porque o disse e escrevi de forma vigorosa tive de visitar,
com regularidade, o tribunal do Funchal - que no dia em que fechassem a
torneira a Alberto João Jardim o seu domínio sobre a Madeira chegaria ao fim.
Não porque o Estado central deva usar o controlo dos recursos públicos para
premiar ou punir políticos de que não gosta. Mas porque o governo Regional da
Madeira usa esse dinheiro, muito para lá daquilo a que, numa divisão equitativa
dos recursos nacionais, lhe caberia por direito, para manter uma teia de
interesses, cumplicidades e dependências. Porque, numa região onde nem sequer
há, como no continente, uma lei de incompatibilidades para os deputados, o
despudor na promiscuidade entre interesses políticos e económicos atinge níveis
que até num país como Portugal são difíceis de tolerar. Porque, só para pegar
num entre muitos exemplos, o dinheiro dos contribuintes serve para distribuir
um jornal gratuitamente, tentando assim sufocar o pluralismo informativo.
A Madeira foi,
nestes últimos 39 anos, um feudo de violação sistemática das regras
democráticas, de atropelo à legalidade constitucional, de ataque às liberdades
cívicas e de achincalhamento da ética republicana. Nada que o todo nacional não
conheça por experiência própria, mas que ali atinge níveis insuportáveis.
Alberto João Jardim tinha dinheiro para manter os eleitores satisfeitos, os
aliados fiéis e os opositores divididos. Para comprar empresários e a poderosa
Igreja Católica local. Foi com esse dinheiro, que fazia falta a outras regiões
do país, mas que por razões que desconheço nunca lhe foi negado, que Jardim
construiu as fundações do seu poder clientelar e arbitrário. E o caciquismo
permitiu-lhe isolar a oposição, a que, com o poder económico e político todo
dependente de Jardim, apenas os mais corajosos ou com fortuna própria se podiam
dar ao luxo de pertencer.
Se a democracia
portuguesa está doente (disso falarei noutro texto), a da Madeira está, há
décadas, em estado de coma. Na realidade, a democracia plena não chegou a criar
raízes na ilha. Até que, como sempre disse que teria de acontecer, a torneira
se fechou. Não por decisão de algum governante mais escrupuloso, mas pela
profunda crise nacional. A quase vitória interna de Miguel Albuquerque (anterior
presidente da Câmara Municipal do Funchal) explica-se por isso mesmo. Num
PSD/Madeira construído na base da traficância de cargos e negócios, a escassez
deixou cada vez mais militantes fora do banquete. Que, ressentidos, procuraram
novo senhor. Também se explicam assim os desentendimentos entre Jardim e o seu
mais rasteiro colaborador, Jaime Ramos. E, por fim, é a crise que explica a
brutal derrota eleitoral que o PSD teve, no domingo, na Madeira. Nunca foram os
dislates e disparates de Jardim que lhe renderam votos. Disso os madeirenses
riam-se. Era a bebedeira de despesa útil e inútil, legítima e de legalidade
duvidosa, que, ao contrário do que muitos gostam de dizer, não tinha qualquer
paralelo com o que se fazia no resto do País. Era uma lógica de apoio social
que, em vez de combater a pobreza e a exclusão, limitava-se a criar laços de
dependência política. Uma cultura que fez escola em vários partidos de
oposição. Em que parte do País os deputados distribuem comida aos eleitores com
o dinheiro das subvenções do Estado e acham que isso é politicamente aceitável?
Também sempre disse
que a Câmara Municipal do Funchal era o calcanhar de Aquiles de Jardim. Não era
impossível a oposição conquistá-la e, a partir dela, romper a teia jardinista.
Não esperava que no dia em que isso acontecesse o PSD perdesse mais seis
autarquias (em onze). Sem estas sete câmaras municipais o poder de Jardim, que
sufocava financeiramente cada autarquia que lhe saísse das mãos, torna-se
impossível de exercer. Sem dinheiro, sem grande parte do poder local, com o
partido rachado a meio e com todos os ratos a abandonar o barco, Alberto João
está politicamente morto. Não tem os instrumentos - o dinheiro e as fidelidades
que ele compra, o medo e os silêncios que ele garante - para se manter no
poder. A sua promessa de purga interna é apenas um daqueles momentos patéticos
que a paranóia de todos os pequenos déspotas sempre nos reserva no momento de
cairem da cadeira do poder.
A coligação que
juntou o PS, o Bloco de Esquerda, o PND, o PTP e o PAN (os últimos três são, na
realidade, partidos regionais que adoptaram siglas de partidos nacionais já
existentes) conseguiu um feito. Em que o PCP/Madeira deveria ter participado,
não ficando de fora da festa regional e da festa que o partido teve no continente.
Ou esta coligação aproveita o momento para construir uma alternativa credível
para a região ou a fera ferida terá tempo para se recompor. E poderá nascer,
dentro do PSD, um novo jardinismo sem Jardim. Mas a tarefa mais difícil vem
depois: reverter quatro décadas de uma cultura clientelar que minou a
democracia na Madeira. Se a pedagogia da democracia exigente é, como se viu em
Oeiras (sobre isso escreverei amanhã), uma tarefa fundamental mas difícil em
todo o país, na Madeira ela implica um trabalho hercúleo.
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