Mário Soares – Diário de Notícias, opinião
1 Deixou, com o
atual Governo, de ser feriado. Pudera, este Governo não é republicano, pois
exclui os valores republicanos tanto quanto pode e não dialoga com o povo. Ora,
sem o povo não há República e muito menos quando se celebra o aniversário de
janela fechada para não se ouvirem as vaias. Mas ouviram-se. E de que maneira.
Porque a polícia, que também é povo, infelizmente é treinada para espancar quem
os chefes mandam e, assim, grita e bate em quem protestar. De qualquer modo, as
vaias dirigidas ao Presidente da República e ao primeiro-ministro ouviram-se
bem mesmo com a janela fechada na sala do município. E os espancamentos
policiais - e a prisão de um inocente que foi libertado a seguir -
multiplicaram o barulho e ouviu--se bem. Todo o País soube o que se passou.
Seria melhor a janela não estar fechada... Mas a verdade é que nem se dignou a
ver e a inaugurar a exposição sobre Raul Rego.
O discurso do Presidente
da República foi curto e com pouco sentido e interesse. Parecia ser republicano
e de esquerda. O que nunca foi. Falou de ética, em abstrato, da escola pública
(que está a ser destruída), mas teve logo o cuidado de dizer - a propósito do
que se passa com o ministro dos Negócios Estrangeiros (para o qual o líder do
PS, e bem, pediu a demissão) - que um ministro não depende do Presidente. E o
primeiro-ministro que o Presidente protege e escolheu não pode demitir o
ministro por pressão do Presidente? Ou não quer, apesar de ser, como se sabe,
solidário, protetor fiel do primeiro--ministro e do ministro dos Negócios
Estrangeiros no tempo em que ambos estiveram ligados ao BPN? Que sentido faz
então falar de ética? Não se coibiu de elogiar a senhora procuradora-geral da
República, que não teve papas na língua ao responder a propósito de Angola ao
ministro dos Negócios Estrangeiros, deixando-o muito mal.
Ao contrário, o
discurso do presidente da Câmara de Lisboa, António Costa, foi excelente, de
bom senso e de oportunidade. Vale a pena relê-lo. Este aniversário do 5 de
Outubro lembrou-me os ominosos tempos de Salazar, em que por dar vivas à
República fui duas vezes preso, uma das quais quando, junto ao monumento a
António José de Almeida, grande presidente da I República, a PIDE lançou gás
lacrimogéneo sobre o general Delgado, os professores Jaime Cortesão, António
Sérgio, Mário de Azevedo Gomes e, modestamente, eu próprio.
Agora ainda não
houve gás lacrimogéneo. É verdade. Mas a hipocrisia do Presidente da República
e do Governo de que o Presidente é solidário e protetor, como se tem visto, é
seguramente maior. Não há PIDE, é verdade. Mas a polícia vai teimando em bater
em quem protesta e qualquer dia - como avisou Durão Barroso - "temos o
caldo entornado"...
Em conclusão.
Enquanto o Governo está completamente paralisado e ninguém sabe o que se vai
passar nos próximos dias, que Orçamento vamos apresentar (silêncio!), como vai
reagir o Tribunal Constitucional - esperemos que bem - e, em concreto, quais as
exigências da troika e dos usurários que a comandam?
Passos Coelho tenta
segurar Rui Machete, como fez com Relvas, agora desaparecido e vaiado também
por portugueses no Brasil. Mas parece impossível que consiga fazer o mesmo com
o ministro dos Negócios Estrangeiros e com a ministra das Finanças, Maria Luís
Albuquerque, igualmente acusada de pouca seriedade e com pedidos do Parlamento
para ser também demitida. É caso para perguntar: que Governo é este que atrai
tantos delinquentes e que Pacheco Pereira, que é membro do PSD, teve a coragem
de afirmar que "está cheio de má-fé"? E cujas "secções, em
muitos casos artificiais, controladas por caciques locais, cuja vida, carreira
e progressão dependem da sua capacidade de controlo do poder interno".
Trata-se de um mau
Governo, completamente parado e desprestigiado em Portugal e no estrangeiro e
de "má-fé". Contudo, o Presidente da República fala de ética e - para
não cair no ridículo absoluto - tem de o demitir. Até porque nenhum português
tomará o Presidente a sério, nem a sua ética, se o não fizer.
2 As eleições e os
partidos
As eleições
autárquicas do dia 29 do mês passado demonstraram que os partidos, todos, estão
anquilosados e devem ser repensados. Porque houve abstenção como nunca, muitos
votos em branco ou inutilizados e bastantes ditos independentes, mesmo que
realmente não o fossem...
A campanha
neoliberal contra os partidos e os políticos e o apagamento dos dois partidos
que construíram a Europa - os socialistas ou sociais-democratas e os
democratas-cristãos, especialmente estes últimos - abriram a porta aos mercados
usurários e aos economicistas e autocratas, que só lhes interessa o dinheiro e
ignoram ostensivamente as pessoas, que para eles não contam. É o caso do atual
Governo. Daí as vaias que a classe média (que está a desaparecer) e os
trabalhadores, desempregados ou não, que passam fome, bem como os filhos,
sempre fazem ao Presidente da República e aos mais visados membros do
Governo...
A arraia-miúda
odeia o Governo porque sofre diretamente com os cortes das pensões e os
impostos, diretos ou indiretos, que lhes impõem com a chamada austeridade, que
continua. Mas em muitos casos, por ignorância, não distinguem os bons dos maus
políticos e, por isso, detestam todos a política, em geral. Ignorando os
economicistas e os burocratas ao serviço da austeridade, que são os verdadeiros
responsáveis pelo estado a que chegou o nosso pobre país e pela destruição
progressiva das instituições criadas no pós-25 de Abril: o Estado social, o
Estado de direito, a Constituição, que todos aliás juraram e deviam respeitar
(o que não tem sido o caso do atual Governo), os sindicatos e a concertação
social, bem como os cortes no ensino e nas nossas excelentes universidades e
hospitais (ao serviço de todos) que vão pouco a pouco sendo destruídos.
Voltando aos
partidos e à política. É necessário e urgente modernizar e refazer os
primeiros, com o objetivo de vencer a crise e acabar com a austeridade e
prestigiar a política, dignificando-a. De modo que os não sérios - como sucede
com alguns membros do Governo - sejam ignorados sistematicamente pela Justiça
que, infelizmente, temos. Os exemplos abundam, desde logo os ligados ao BPN.
No artigo de sábado
passado no Expresso, Miguel Sousa Tavares, um excelente jornalista que diz a
verdade e não tem medo, escreveu: "Nunca como hoje Portugal precisou tanto
de ter estadistas e verdadeiros políticos no lugar dos caciques partidários,
que tomaram o poder no PSD e no PS." Direi, com algumas exceções que não
devemos ignorar, porque há bons elementos nos dois partidos, como é conhecido.
Por isso é natural
que os portugueses, que estão desesperados, odeiem, com razão, o atual Governo,
porque lhes rouba as pensões para as quais descontaram durante longos anos. Mas
não devem nem podem generalizar essa raiva a todos os políticos, mesmo que
sejam dos partidos da oposição ou dos partidos que estão no poder, onde existem
ministros e secretários-gerais críticos e honestos, como os há.
A verdade é que,
como diz Sousa Tavares, cito: "Nunca como hoje Portugal precisou tanto de
ter estadistas e verdadeiros políticos no lugar dos caciques partidários, que
tomaram o poder no PSD e no PS", e eu acrescento: e também no CDS/PP,
apesar de como partido contar cada vez menos...
É por isso que
todos os partidos, incluindo o PCP - que não mudou nada no seu sectarismo desde
que foi legalizado, e bem, no pós-25 de Abril -, sim, todos os partidos sem
exceção devem perceber que o mundo está em rápida mudança e os partidos devem
abrir-se e modernizar-se se quiserem subsistir no futuro próximo. Os caciques,
que só pensam subir na vida à custa do partido, sem valores nem pensamento
próprio, têm de ser substituídos por políticos que pensem pela sua cabeça e
tenham princípios éticos e ideológicos. É por isso que são membros de um
partido e não de outro...
É nesta base que
digo que os partidos devem modernizar-se para que os seus membros - a qualquer
nível - tenham o sentido da sua ideologia desinteressadamente. De modo a que o
povo respeite os políticos sérios e conheça a importância da Política, com P
grande.
3 A Itália de
Berlusconi acabou
Berlusconi parece
ter terminado o longo período em que dominou - para mal dos italianos - a
Itália contemporânea. Graças ao seu dinheiro e ao domínio de uma boa parte da
comunicação social.
Berlusconi, que
cometeu faltas sobre faltas e que a Justiça italiana não teve a coragem de
condenar, por múltiplas razões, acaba de perder o seu lugar no Senado graças à
intransigência do Presidente de Itália, Giorgio Napolitano, um excecional
Presidente, e ao primeiro--ministro, Enrico Letta, que está a fazer o melhor
que pode para salvar a Itália sem tocar na democracia e no Estado social.
Foram os ministros
do Partido Povo da Liberdade de Berlusconi que fizeram cair Il Cavalieri, o que
nunca tinha acontecido. Foi uma rebelião que julgo ter tirado o futuro político
a Berlusconi. Que aliás se refugiou na sua bela casa, onde levou tantos
políticos e onde tantas orgias ocorreram...
Enrico Letta parece
ser o homem forte do momento e, curiosamente, é sobrinho de Gianni Letta, que
foi secretário de Estado de Berlusconi.
Enrico Letta é hoje
popular em Itália porque tem estado a salvá-la da crise, visto que um em cada
dois italianos o considera ultrassério, eficaz, tecnocrata-europeísta e muito
competente no plano internacional. Conhece bem o Parlamento Europeu e a
Comissão de Bruxelas.
Em suma, é a
antítese de Berlusconi. É da escola de Romano Prodi, como ele católico e da
antiga democracia-cristã, que tem vindo a perder em toda a Europa.
Quanto a Il
Cavalieri, ao que parece a sua hora passou. E já é uma sorte se não for parar à
cadeia, como a Justiça, no passado tão insegura, agora parece querer.
Felizmente, entre
os governos em crise por causa da austeridade, a Itália deve ser dos primeiros
a sair dela. Seria um excelente exemplo para a Zona Euro e para o futuro da
União Europeia e do euro, que, note-se, continua a ser uma moeda forte.
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