Nuno Saraiva – Diário
de Notícias, opinião
A 18 de outubro, um
estudo da ONG australiana Walk Free Foundation confrontou-nos com a realidade
trágica de que, em 2013, ainda existem cerca de 30 milhões de escravos em todo
o mundo. Destes, 14 milhões estão recenseados na Índia do senhor Lall, chefe de
missão do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Portugal.
Não sei se por
inspiração histórica, devoção ideológica ou deformação cultural, o modelo de
sociedade que este aspirante a capataz nos quer impor deriva do tipo esclavagista
em que a dignidade dos salários não existe, os direitos no trabalho e ao
trabalho são para abolir e o acesso à justiça por parte de quem trabalha é para
revogar.
Diz-nos o senhor
Lall, no douto relatório às oitava e nona avaliações do ajustamento português,
que, apesar dos cortes já efetuados, os salários continuam elevados, que os
empregados menos qualificados e com ordenados mais baixos devem estar à mercê
de uma maior flexibilização salarial em nome da competitividade, que as pensões
permanecem uma enormidade, que os trabalhadores despedidos sem justa causa
devem ser desincentivados de recorrer aos tribunais para se defenderem, que os
sindicatos devem ser conduzidos à irrelevância na concertação social, que o
esbulho nos rendimentos do trabalho, proclamado aos quatro ventos como
temporários pelo Governo, é para ser definitivo... E por aí adiante.
O país de que fala
o senhor Lall, e de que antes falava o senhor Selassie, é o mesmo que aceita
como uma inevitabilidade o facto de haver mais de um milhão de portugueses a
ganhar menos de 600 euros por mês, que tem um Governo que recusa discutir a
subida do salário mínimo para essa fortuna que são 500 euros, que já sorri com
uma taxa de desemprego que cai para os 15,6% sem se questionar sobre o impacto
nestes números da emigração de 120 mil portugueses num só ano - e também na
sustentabilidade da Segurança Social - que, a par da habilidade contabilística
dos subempregados e dos chamados "inativos", reduz drasticamente o
universo da população ativa em cima da qual se calcula a taxa de desemprego,
que acha normal que a destruição de postos de trabalho seja três vezes superior
à criação de emprego.
Não sei se foi
neste país das maravilhas que o Dr. Pires de Lima, qual pastorinho de Fátima,
teve a epifania do "milagre económico" e do "momento de
viragem" que, nas palavras do ministro da Economia, deveria encher de
"satisfação" os portugueses todos. Sei, no entanto, que à retórica da
discordância afirmada pelo Governo relativamente às posições mais radicais da
troika tem correspondido sempre o alinhamento com a austeridade cega e a
submissão à lógica de empobrecimento. Aos métodos e discursos punitivos que nos
são impostos segue-se sempre a mansidão do discurso e a resignação.
É óbvio que a
notícia de que saímos da situação de recessão é positiva, ninguém no seu juízo
perfeito pode contestar. Mas tal como é dito pelo senhor Lall, o País ainda tem
"riscos significativos" pela frente. E o maior de todos não é nem o
Tribunal Constitucional nem "o regresso à incerteza política". A pior
das ameaças é mesmo a ortodoxia do FMI.
Se ao brutal
Orçamento do Estado para 2014 se vier a somar a receita prescrita neste
relatório, depois de nos terem arrancado a carne, os senhores da troika
preparam-se para nos comer os ossos.
Aos credores não
pode ser permitido tudo. Aos credores, tal como aos capatazes, também é preciso
dizer basta. Não chega desvalorizar um relatório que é ofensivo da dignidade
humana. Talvez no país do senhor Lall a escravatura seja cultural e socialmente
aceitável. Talvez, antes dele, o senhor Selassie se tenha esquecido ou até
desconheça que, na Etiópia, os escravos foram abolidos em 1942. Mas o que aqui
está em causa é uma visão ultraliberal que, à viva força, nos quer fazer
retroceder a um passado do qual devíamos todos envergonhar-nos e que não é
compatível com a liberdade e a civilização.
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