Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
Olhamos para a mais
baixa popularidade de um presidente francês em toda a história da sua
República, olhamos para a revolta que se espalha pela França e olhamos para os
resultados eleitorais e para as sondagens de Marine Le Pen e somos obrigados a
tentar perceber o que está a acontecer em França e, a partir dela, na Europa.
Grosseiramente, resumo assim: impreparado para suceder a Sarkozy, o
centro-esquerda francês transformou-se na linha da frente da austeridade, do
ataque ao Estado Social e da destruição do modelo social europeu. E nem o
nascimento da Front de Gauche, demasiado marcada pela tradição comunista e da
extrema-esquerda, conseguiu impedir que fosse a extrema-direita a comandar a
oposição popular a esta política. Juntando à sua agenda xenófoba e homofóbica a
agenda social da esquerda. Apoderando-se das bandeiras da justiça social e da
defesa dos direitos dos trabalhadores. Transformando uma ideia generosa de
patriotismo na desconfiança e no ódio ao estrangeiro. E até se apoderando da
bandeira da defesa de valores democráticos. Por ausência de discurso próprio,
sociais-democratas e socialistas cumprem, mais uma vez, o papel de executores
de um programa ideológico que lhes é estranho. Sempre nas esperança de serem o
mal menor. Estamos a assistir a um suicídio do centro-esquerda europeu. E esse
espaço está a ser ocupado pela direita autoritária. Este é o maior crime de
François Hollande.
Não precisamos de
nos esforçar muito para olhar para António José Seguro e ver, na sua
impreparação e falta de carisma, na sua falta de convicções e de programa, na
sua moleza de carácter e na sua hesitação constante em matéria de princípios,
um Hollande em potência. O voto favorável dos socialistas ao Tratado Orçamental
(uma aberração para qualquer pessoa que defenda algum papel do Estado no
combate a crises económicas) e a abstenção na redução do IRC (que, associada a
um IRS e um IVA na estratosfera, resulta numa brutal transferência de recursos
dos trabalhadores e dos consumidores para os bolsos das maiores empresas
nacionais) diz tudo sobre o que podemos esperar de Seguro num governo,
provavelmente em coligação com o PSD. Apesar das espectativas estarem tão
baixas, arrisco-me a dizer que, como primeiro-ministro, António José Seguro
será, como Hollande está a ser em França, a maior decepção que a esquerda
portuguesa já viveu.
Mas é assim que as
coisas têm de ser? Não há outra alternativa para além de esperar que a
alternância na austeridade se vá processando em degradação permanente da
democracia? Como em tudo, recuso destinos marcados. Em Espanha, onde, tal como
por cá, a extrema-direita não medra, a austeridade imposta pela direita e o
vazio de discurso do PSOE está a ter outros efeitos. Como cá, cerca de 75% dos
espanhóis desaprova a ação de Rajoy. Mas ainda mais (85%) desaprovam a
liderança de Rubalcaba, no PSOE. PP e PSOE descem nas sondagens. É o fim do
bipartidarismo espanhol - ainda mais poderoso do que em Portugal - que está em
causa. Só que a decepção com estes dois partidos, apesar de engrossar a
abstenção, não se fica por aí. O partido centrista, federalista,
antinacionalista e laico (pouco definido do ponto de vista ideológico, mas em
grande parte vindos das hostes do centro-esquerda) criado em 2007, UPyD, passa
de menos de 5% para mais de 10%. Mas também a Esquerda Unida (IU) sobe dos 3%
(nas eleições gerais em 2008) e 7% (nas mesmas eleições em 2011) para próximo
dos 12% nas próximas europeias (onde teve, em 2009, 3,7%). Conforme as sondagens,
uma e outra força política ocupam o terceiro e o quarto lugar, muito acima em
intenção de votos do que é habitual. Os resultados da IU, muito menos
significativo do que seriam se tivesse conseguido ir mais longe na sua
abrangencia política, e da UPyD estão a obrigar o PSOE a reagir. De forma
errática, é verdade. Mas já começou a viragem do discurso à esquerda e mudanças
importantes no seu funcionamento interno.
Estou absolutamente
seguro que, em Portugal, só uma forte ameaça vinda da esquerda pode impedir que
o Partido Socialista siga o seu homólogo francês. E só ela pode obrigá-lo a
dialogar e a entender-se com quem se opõe à austeridade em vez de dar ouvidos
aos Amados, Teixeira dos Santos e restantes apologistas do bloco central. Quem
julgue que basta apear a nulidade que é Seguro para travar esta corrida para o
abismo está enganado. A questão ultrapassa a personalidade que lidere o PS. A
questão é muito mais profunda: o PS, tal como o PSF e o PSOE, não tem um
discurso consistente sobre esta crise. Porque, para ter esse discurso, teria de
rever a matéria dada. As responsabilidades do centro-esquerda para a criação
das condições para esta crise europeia e nacional são demasiado grandes para
que possa regressar ao poder e mudar alguma coisa sem uma profunda reflexão.
Começando pelo seu discurso europeu.
Essa ameaça
dificilmente poderá surgir, por si só, apenas de um novo partido político. Isso
poderia balcanizar ainda mais o que já está dividido, bloqueando qualquer
solução e, no fim, apenas contribuindo para oferecer, em troca de nenhuma
alteração substancial de rumo para o país, um pequeno aliado aos socialistas.
Essa ameaça dificilmente pode surgir do PCP, que não está interessado em
qualquer estratégia de reconfiguração da esquerda portuguesa e cuja possível e
circunstancial entrada no eleitorado socialista nunca terá, pela ausência de
política de alianças, grandes repercussões. E essa ameaça não virá do Bloco de
Esquerda, que perdeu a oportunidade histórica de cumprir esse papel. Hoje não
tem capacidade de atração do eleitorado socialista ou de qualquer eleitorado
que não seja já seu. A verdade é que dificilmente, em Portugal, com a nossa
história, um movimento político amarrado à tradição da extrema-esquerda poderá
ameaçar o PS. Não é apenas uma questão de imagem. É uma questão de conteúdo
programático e de tradição política. Na reconfiguração do cenário partidário à
esquerda, a abrangência ideológica tem de ser muitíssimo maior do que hoje é
abarcado pelos partidos à esquerda dos socialistas. Para ser muito maior a sua
credibilidade e o seu espaço de progressão.
Tenha a forma de
movimento, frente, coligação ou qualquer outra coisa, o novo sujeito político
deve juntar quem, à esquerda, esteja interessado em unir forças. Pode e deve
abranger partidos políticos já existentes, partidos políticos que entretanto se
possam formar e muitos dos que não militam em qualquer partido. Mas, acima de
tudo, a refundação de um espaço político à esquerda do PS tem de transportar
consigo um potencial de esperança que, sozinhos, os atuais atores políticos são
incapazes de oferecer aos portugueses. E isso depende dos seus protagonistas e
da sua credibilidade e do realismo e coragem das suas propostas. Tem de
corresponder a uma frente democrática que defenda um novo papel para Portugal
na Europa. Um patriotismo que, não desistindo dos combates europeus, ponha a
democracia e o Estado Social como as primeiras de todas as suas prioridades. E
que esteja, na defesa da soberania democrática e dos direitos sociais, disposta
a negociar com todos os que defendam um programa urgência nacional que se
apresente com firmeza em alternativa ao programa de subdesenvolvimento proposto
pela troika. É isto, ou a preparação para a deprimente tragédia francesa.
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