sábado, 16 de novembro de 2013

UM NOVO SUJEITO POLÍTICO À ESQUERDA

 


Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
Olhamos para a mais baixa popularidade de um presidente francês em toda a história da sua República, olhamos para a revolta que se espalha pela França e olhamos para os resultados eleitorais e para as sondagens de Marine Le Pen e somos obrigados a tentar perceber o que está a acontecer em França e, a partir dela, na Europa. Grosseiramente, resumo assim: impreparado para suceder a Sarkozy, o centro-esquerda francês transformou-se na linha da frente da austeridade, do ataque ao Estado Social e da destruição do modelo social europeu. E nem o nascimento da Front de Gauche, demasiado marcada pela tradição comunista e da extrema-esquerda, conseguiu impedir que fosse a extrema-direita a comandar a oposição popular a esta política. Juntando à sua agenda xenófoba e homofóbica a agenda social da esquerda. Apoderando-se das bandeiras da justiça social e da defesa dos direitos dos trabalhadores. Transformando uma ideia generosa de patriotismo na desconfiança e no ódio ao estrangeiro. E até se apoderando da bandeira da defesa de valores democráticos. Por ausência de discurso próprio, sociais-democratas e socialistas cumprem, mais uma vez, o papel de executores de um programa ideológico que lhes é estranho. Sempre nas esperança de serem o mal menor. Estamos a assistir a um suicídio do centro-esquerda europeu. E esse espaço está a ser ocupado pela direita autoritária. Este é o maior crime de François Hollande.
 
Não precisamos de nos esforçar muito para olhar para António José Seguro e ver, na sua impreparação e falta de carisma, na sua falta de convicções e de programa, na sua moleza de carácter e na sua hesitação constante em matéria de princípios, um Hollande em potência. O voto favorável dos socialistas ao Tratado Orçamental (uma aberração para qualquer pessoa que defenda algum papel do Estado no combate a crises económicas) e a abstenção na redução do IRC (que, associada a um IRS e um IVA na estratosfera, resulta numa brutal transferência de recursos dos trabalhadores e dos consumidores para os bolsos das maiores empresas nacionais) diz tudo sobre o que podemos esperar de Seguro num governo, provavelmente em coligação com o PSD. Apesar das espectativas estarem tão baixas, arrisco-me a dizer que, como primeiro-ministro, António José Seguro será, como Hollande está a ser em França, a maior decepção que a esquerda portuguesa já viveu.
 
Mas é assim que as coisas têm de ser? Não há outra alternativa para além de esperar que a alternância na austeridade se vá processando em degradação permanente da democracia? Como em tudo, recuso destinos marcados. Em Espanha, onde, tal como por cá, a extrema-direita não medra, a austeridade imposta pela direita e o vazio de discurso do PSOE está a ter outros efeitos. Como cá, cerca de 75% dos espanhóis desaprova a ação de Rajoy. Mas ainda mais (85%) desaprovam a liderança de Rubalcaba, no PSOE. PP e PSOE descem nas sondagens. É o fim do bipartidarismo espanhol - ainda mais poderoso do que em Portugal - que está em causa. Só que a decepção com estes dois partidos, apesar de engrossar a abstenção, não se fica por aí. O partido centrista, federalista, antinacionalista e laico (pouco definido do ponto de vista ideológico, mas em grande parte vindos das hostes do centro-esquerda) criado em 2007, UPyD, passa de menos de 5% para mais de 10%. Mas também a Esquerda Unida (IU) sobe dos 3% (nas eleições gerais em 2008) e 7% (nas mesmas eleições em 2011) para próximo dos 12% nas próximas europeias (onde teve, em 2009, 3,7%). Conforme as sondagens, uma e outra força política ocupam o terceiro e o quarto lugar, muito acima em intenção de votos do que é habitual. Os resultados da IU, muito menos significativo do que seriam se tivesse conseguido ir mais longe na sua abrangencia política, e da UPyD estão a obrigar o PSOE a reagir. De forma errática, é verdade. Mas já começou a viragem do discurso à esquerda e mudanças importantes no seu funcionamento interno.
 
Estou absolutamente seguro que, em Portugal, só uma forte ameaça vinda da esquerda pode impedir que o Partido Socialista siga o seu homólogo francês. E só ela pode obrigá-lo a dialogar e a entender-se com quem se opõe à austeridade em vez de dar ouvidos aos Amados, Teixeira dos Santos e restantes apologistas do bloco central. Quem julgue que basta apear a nulidade que é Seguro para travar esta corrida para o abismo está enganado. A questão ultrapassa a personalidade que lidere o PS. A questão é muito mais profunda: o PS, tal como o PSF e o PSOE, não tem um discurso consistente sobre esta crise. Porque, para ter esse discurso, teria de rever a matéria dada. As responsabilidades do centro-esquerda para a criação das condições para esta crise europeia e nacional são demasiado grandes para que possa regressar ao poder e mudar alguma coisa sem uma profunda reflexão. Começando pelo seu discurso europeu.
 
Essa ameaça dificilmente poderá surgir, por si só, apenas de um novo partido político. Isso poderia balcanizar ainda mais o que já está dividido, bloqueando qualquer solução e, no fim, apenas contribuindo para oferecer, em troca de nenhuma alteração substancial de rumo para o país, um pequeno aliado aos socialistas. Essa ameaça dificilmente pode surgir do PCP, que não está interessado em qualquer estratégia de reconfiguração da esquerda portuguesa e cuja possível e circunstancial entrada no eleitorado socialista nunca terá, pela ausência de política de alianças, grandes repercussões. E essa ameaça não virá do Bloco de Esquerda, que perdeu a oportunidade histórica de cumprir esse papel. Hoje não tem capacidade de atração do eleitorado socialista ou de qualquer eleitorado que não seja já seu. A verdade é que dificilmente, em Portugal, com a nossa história, um movimento político amarrado à tradição da extrema-esquerda poderá ameaçar o PS. Não é apenas uma questão de imagem. É uma questão de conteúdo programático e de tradição política. Na reconfiguração do cenário partidário à esquerda, a abrangência ideológica tem de ser muitíssimo maior do que hoje é abarcado pelos partidos à esquerda dos socialistas. Para ser muito maior a sua credibilidade e o seu espaço de progressão.
 
Tenha a forma de movimento, frente, coligação ou qualquer outra coisa, o novo sujeito político deve juntar quem, à esquerda, esteja interessado em unir forças. Pode e deve abranger partidos políticos já existentes, partidos políticos que entretanto se possam formar e muitos dos que não militam em qualquer partido. Mas, acima de tudo, a refundação de um espaço político à esquerda do PS tem de transportar consigo um potencial de esperança que, sozinhos, os atuais atores políticos são incapazes de oferecer aos portugueses. E isso depende dos seus protagonistas e da sua credibilidade e do realismo e coragem das suas propostas. Tem de corresponder a uma frente democrática que defenda um novo papel para Portugal na Europa. Um patriotismo que, não desistindo dos combates europeus, ponha a democracia e o Estado Social como as primeiras de todas as suas prioridades. E que esteja, na defesa da soberania democrática e dos direitos sociais, disposta a negociar com todos os que defendam um programa urgência nacional que se apresente com firmeza em alternativa ao programa de subdesenvolvimento proposto pela troika. É isto, ou a preparação para a deprimente tragédia francesa.
 

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