Assassinatos de
garotos e ataques midiáticos a manifestações confirmam: há interessados em
generalizar repressão. Black-bloc é complexo, mas pode estar sendo usado
Antonio Martins
– Outras Palavras - Imagem: Banksy e
Gêmeos
I.
Uma espiral de
fatos graves e estranhos está se sucedendo em São Paulo desde sexta-feira
(25/10), quando mascarados agrediram, num ato de violência gratuita, um coronel
da Polícia Militar. Comandantes da PM emitiram declarações como se fossem o
governo do Estado. Quase duzentas pessoas foram presas de maneira arbitrária e,
ao que tudo indica, a esmo. Um jovem de 17 anos foi assassinado domingo pela
polícia em ação torpe, provavelmente com intuito de provocar reações de
revolta. Ontem (28/10), caminhões e ônibus apareceram em chamas na rodovia Fernão
Dias, em horário propício a exposição nos noticiários de maior audiência – sem
que apareçam indícios de quem os incendiou.
Episódios
anteriores sugerem: pode estar em gestação uma crise fabricada, em que a
população, insegura e temerosa, clama pela ação das “forças da ordem” – seja
quais forem a truculência e os desdobramentos. Por isso, é importante soar o
sinal de alarme e convidar a um exame mais amplo do cenário. Talvez ele revele
que certas formas de radicalização artificial têm efeito contrário ao que
imagina quem nelas se envolve. Na aparência, elas desafiam o Estado; na
realidade, libertam seus mecanismos mais brutais de controle social, repressão
e destruição da democracia.
Vale a pena
recompor a sequência dos fatos, para tentar interpretá-los e identificar seu
sentido comum.
1. Talvez a agressão black bloc ao
coronel Reynaldo Rossi, no terminal de ônibus D. Pedro II, sexta-feira, tenha
sido mais que um ato grotesco e covarde. Na mídia, as imagens do espancamento
estão sendo repetidas à exaustão. Mas qual o contexto em que se produziram?
Presente à cena, o repórter Piero Locatelli, de Carta Capital, fez um relato
perturbador (1
2),
do qual se destacam os seguintes trechos-chaves: “A Polícia havia acompanhado a
manifestação com um efetivo de 800 policiais [...] No terminal, mais cedo,
manifestantes utilizando a tática black bloc haviam queimado um ônibus e
destruído catracas. [...] A polícia pouco agiu para conter a depredação – uma
fila de policiais assistia ao que acontecia no local”.
Foram quebrados
bilheterias, banheiros, quiosques, orelhões, extintores e 15 caixas
eletrônicos. Só mais tarde a repressão e as prisões começaram: na Praça da Sé,
a quase um quilômetro dali, tendo por alvo não os “vândalos”, mas manifestantes
pacíficos.
Locatelli
prossegue: “Os 800 policias que acompanhavam o ato [no Terminal D. Pedro II]
esperaram o fim dele para agir com contundência. Instantes depois de um jogral
na praça da Sé, os militantes cantavam em clima de festa ‘violência é a tarifa,
fascista é a policia’. Foi quando ocorreu uma chuva de gás lacrimogêneo, vinda
de todos os lados da praça. Milhares de pessoas tentavam correr dela, sob
disparos de balas de borracha, muitas delas sozinhas. A depredação na região se
intensificou, e o medo era a regra pelas estreitas ruas do centro. A partir
dali, ocorreu uma série de ‘detenções para averiguação’”.
2. Quem fala em
nome do Estado, num regime democrático: as autoridades eleitas? Em São Paulo, o
governador Geraldo Alckmin calou-se no sábado (27/10), um dia depois da
agressão ao coronel Rossi. Mas o chefe do Centro de Comunicação Social da
Polícia Militar, major Mauro Lopes, convocou entrevista coletiva em que assumiu ares de chefe de
governo. “O Estado vai dar uma resposta muito forte a este bando de
criminosos”, disse. O jornalista Luís Nassif captou a mensagem percebeu
o risco: “Essa história da PM anunciar que vai até as últimas consequências –
respaldada por uma condenação generalizada contra os vândalos – provoca
calafrios maiores do que assistir a um quebra-quebra de black blocs. Na última
vez que a PM se comportou assim, em maio de 2006, foram assassinadas mais de
500 pessoas”. Agora, a polícia começou a barbarizar menos de 24 horas após a
fala do major Mauro Lopes.
3. As
circunstâncias em que se deu o assassinato do garoto Douglas Rodrigues, na
tarde de domingo, em Jaçanã (zona norte) são espantosas – mesmo para quem está
acostumado com a banalidade do mal, nas periferias brasileiras. A impressão
nítida é de incitação à revolta. A polícia foi chamada para uma ocorrência
vulgar: uma caixa de som em volume alto demais (“perturbação do sossego”). Mas
o PM Luciano Pinheiro Bispo “desceu do carro e pá”, no peito de Douglas,
segundo testemunhas (1 2), que negam com veemência a hipótese de disparo
acidental. O garoto – estudante, trabalhador e querido dos moradores – chegou a
indagar ao algoz, segundo a mãe: “Senhor, por que o senhor atirou em mim”?
4. A previsível
reação começou de imediato. Os moradores queimaram três carros e
enfrentaram a pedradas a tropa de choque, enviada pra reprimi-los. Houve saques
de lojas. Algo menos claro – porém, muito mais visível – deu-se ontem, na
região. Cerca de 500 pessoas participaram, em protesto, do velório de Douglas,
próximo ao local onde morreu. A manifestação pelo garoto quase não foi
noticiada pela mídia. Nos jornais da noite, as telas de milhões de
telespectadores, em todo o país, foram ocupadas por outras imagens. Na rodovia
Fernão Dias (SP-Belo Horizonte), a centenas de metros de distância da multidão,
três grandes caminhões e seis ônibus arderam. As fotos de quem os incendiou são
escassas; e a polícia não parece ter sido capaz de identificá-los (embora tenha
prendido mais 90 pessoas…). Mas hoje, os três jornais mais vendidos do país
apontam, em manchete (1 2
3), os
“responsáveis”. Em todos eles, as palavras “manifestantes” e “protesto” estão
repetidamente associadas a “quebra-quebra”, “violência” e “saques”…
II.
O comportamento da
PM nos últimos dias, em São Paulo, não é exceção. Uma vasta reportagem da
jornalista Tânia Caliari revela que, desde as manifestações de junho, as polícias
militares têm mantido um comportamento apenas aparentemente ambíguo. Elas
alternam dois tipos de desvios complementares. Em certos momentos (como em
13/6, em São Paulo), agem com selvageria cega. Em outros (como em 7/10, no
Rio), desaparecem ou assistem, impassíveis, a cenas de enorme gravidade – como
a tentativa de atear fogo à Câmara Municipal.
As duas atitudes
policiais retroalimentam-se uma à outra, em espiral. A brutalidade da tropa
exalta os ânimos dos manifestantes e leva pequenos grupos a reagir de modo
violento. As depredações promovidas por estes, nos momentos em que a polícia se
omite, amedrontam a população e sugerem que a saída, diante dos protestos, é
mais repressão.
Este esforço para
instigar apoio à violência do Estado é reforçado pela mídia. Os jornais e TVs
já não pedem abertamente repressão aos protestos, como ensaiaram sem sucesso em
junho. Agora, agem por sugestão e omissão. Cenas como a do espancamento do
coronel Reynaldo Rossi, ou da depredação de bens públicos, são repetidas
exaustivamente na TV e decoram as capas dos jornais. Mas procure encontrar,
após cada episódio, uma única matéria examinando criticamente o comportamento
da polícia. As manifestações repetem-se há cinco meses; os abusos policiais de
ambos os tipos, também. Os jornais e TVs fecham os olhos…
III.
O surgimento, no
Brasil, dos black-blocs, que praticam atos destrutivos nas manifestações de
rua, não pode ser analisado apenas à luz da ciência política clássica.
Militantes de quase todos os partidos de esquerda (do PT ao PSTU), além de
inúmeros ativistas autônomos, produziram, nos últimos meses, dezenas de textos
críticos ao bloco negro. Lembram, com base em fartos exemplos históricos, que a
ação violenta de pequenos grupos, sem apoio popular maciço, foi sempre
manipulada pelas classes dominantes para legitimar a repressão. Muitos dos
autores ressaltam que não propõem atitude pacifista incondicional. Defendem as
rupturas, quando as maiorias, convictas de que é preciso estabelecer novas
relações sociais, são impedidas de fazê-lo por leis e instituições retrógradas.
Mas se opõem a atos narcísicos, cujos praticantes tentam assumir condição de
libertadores da multidão.
Se todos estes
argumentos têm sido insuficientes para aquietar os black-blocs; se o apoio a
eles, embora ínfimo entre a sociedade, mantém-se expressivo entre os que se
reconhecem como parte das “Jornadas de Junho”, é preciso sondar as razões. Duas
hipóteses, em especial, parecem promissoras.
A primeira é o
descolamento nítido entre duas gerações da ativistas anti-capitalistas. Uma
militou ou milita no amplo arco de organizações políticas de esquerda,
amplamente predominantes até a queda do “socialismo real”. Outra começou a se
formar na virada do século, sob influência dos protestos de Seattle (1999), dos
Fóruns Sociais Mundiais (2001-2009, no Brasil) ou dos ecos do levante zapatista
(1994). Entre ambas, há um intervalo de dez anos. Mas, muito mais importantes,
um abismo teórico e de inserção política e social.
A geração histórica
teve influência reduzida nas Jornadas de Junho. PT e PCdoB tornaram-se partidos
de atuação principalmente institucional. Os sindicatos tiveram sua força
devastada pela reorganização produtiva do capital pós-moderno. PSTU e PSOL, por
ora, parecem tão incapazes de dialogar com a nova geração quanto a esquerda
radical europeia. Os movimentos sociais clássicos, muito atuantes na primeira
década do século (do MST às grandes redes, como a que lutou contra a ALCA),
ainda não conseguiram situar-se na segunda.
A nova geração
anticapitalista é extremamente ativa. Mas com raras exceções (como o Movimento
Passe Livre – MPL) não fazem parte de sua cultura e preocupações conceitos como
correlação de forças; estratégias e táticas; momentos de avanços ou recuo. Mais:
ela sente o esvaziamento da democracia e a impermeabilidade das instituições.
Não viveu o suficiente para enxergar as mudanças tímidas, mas inéditas, vividas
pelo país na última década. Para quem tem 25 anos, por exemplo, o Bolsa-Família
e a redução da miséria não são uma conquista – mas um dado da paisagem
política, que precisa ser transformada. Por isso, a nova geração tende a ver a
geração histórica como mais um grupo acomodado e participante do condomínio das
elites no poder.
Esta hipótese – a
do choque de gerações anticapitalistas – articula-se com outra. A ação
truculenta da polícia é indispensável para explicar a relevância do black-bloc
brasileiro. Ele está muito longe de ser majoritário, entre as novas gerações.
Reúne, no máximo, algumas centenas de ativistas, em cada uma das maiores
capitais. As críticas que recebem são constantes, nas redes sociais: por
legitimarem a violência; por se julgarem heróis e superiores; por não
dialogarem. Mas cada novo ato de violência policial parece ressuscitar sua
legitimidade.
Há aqui algo que
deveria alegrar a velha geração: consciência de classe. A agressão ao coronel
Reynaldo Rossi devastou a popularidade do black-bloc por alguns dias, nas redes
sociais. Era comum ver mensagens de ira contra eles, mesmo nos comentários das
comunidades dos Facebook que os apoiam. Mas isso se desfez após o assassinato
do garoto Douglas. Nos últimos meses, em meio ao debate, um poema do marxista
Bertolt Brecht foi citado inúmeras vezes, por quem se julga anarquista: “Diz-se
violento o rio, que tudo arrasta; mas não as margens, que o oprimem…”.
IV.
Não há problema
algum em que as culturas políticas anticapitalistas sejam muito distintas entre
si: a longo prazo, esta diversidade pode ser uma riqueza. Mas, numa época de
crises e instabilidades um pré-requisito para a sobrevivência e o futuro é
saber identificar ameaças comuns. Estamos todos, neste momento preciso, sob uma
delas.
Armou-se uma
cilada. As grandes mobilizações de junho refluíram e não parece possível retomá-las, ao menos no
momento. O ataque aos símbolos do capitalismo, promovido pelos black-blocs, não
é eficaz contra o sistema, ao menos por enquanto. Não há razões para duvidar
das pesquisas de opinião, segundo as quais 95% da população
opõem-se a estes atos. Recua rapidamente, além disso, o apoio ao próprio
sentido das manifestações. Em junho, em São Paulo, 89% eram a favor delas; em
poucos meses, este índice caiu para 66%.
A polícia e a mídia
perceberam a oportunidade. Na madrugada desta terça-feira (29/10), mais um
garoto foi morto por PMs em São Paulo, em circunstâncias muito
semelhantes às de Douglas. Pouco mais tarde, mais uma manifestação de protesto
ocorreu. Nas próximas horas, os meios de comunicação que (ainda) dominam,
voltarão a associar “manifestantes” e “protesto” a “vandalismo”, “saques” e
“quebra-quebras”.
Está se consumando,
rapidamente, o cenário desastroso previsto por Luís Nassif. Ele pode dar-se
tanto como tragédia (na forma de um novo morticínio “corretivo” contra a
periferia, semelhante ao de 2006) quanto como drama arrastado (um longo
sangramento dos movimentos sociais de todos os tipos, até que percam legitimidade
junto à maioria e tornem-se impotentes para influir em 2014, que será decisivo
para o futuro do país).
Ser incapaz de
mudar de tática revelaria inteligência reduzida – como a das moscas que se
batem contra o vidro, recuando a cada choque mas insistindo no mesmo trajeto,
condenado de antemão. É preciso buscar outros caminhos, e esta responsabilidade
cabe a todos, solidariamente.
Para que todos
sejamos capazes de escapar à cilada, ninguém pode ser humilhado. Haverá muito
tempo para os debates político-ideológicos entre as várias culturas
anticapitalistas e suas nuances – mas insistir neles agora seria desastroso
para todos.
A violência
simbólica nas manifestações precisa refluir, rapidamente. Como os black-blocs
não estão inseridos nos debates que outros coletivos travam costumeiramente
entre si, será decisiva para isso a ação de grupos que souberam manter diálogo
com eles – em especial o Movimento Passe Livre (MPL), um caso notável, por
ligar-se simultaneamente às duas culturas políticas de esquerda. Mas este
silêncio da tática do bloco negro não pode (inclusive para que funcione)
significar que foram derrotados. Ao contrário, deve abrir espaço para
incorporá-los ao debate.
São Paulo e Rio
estão em sintonia, desde junho: as mesmas lutas, repressão, esperanças e
angústias. A grande manifestação preparada pelos cariocas para a próxima
quinta-feira (31/10), contra a violência policial e prisões arbitrárias das
últimas semanas pode ser um ponto de virada. Uma resposta semelhante às de
17/6, quando milhares demonstraram que as ruas, geridas autonomamente, podem
ser um espaço “sem polícia e sem violência”.
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