Tive fascínio, e
admiração genuína, por Álvaro Cunhal. Um homem político que sempre considerei
excecional, apesar dos conflitos que tivemos
Mário Soares, (Ensaio
publicado na VISÃO 1078, de 31 de outubro)) – Visão, 6 de Novembro de 2013
O PCP celebrou com
pompa e circunstância o centenário de Álvaro Cunhal. Visitei espontaneamente,
como qualquer cidadão, que aliás sou, isto é, sem prevenir ninguém, a exposição
que o partido organizou e abriu ao público no Pátio da Galé, na Câmara Municipal
de Lisboa. As duas senhoras que me atenderam, muito amavelmente - e me
reconheceram - não me deixaram pagar o bilhete de entrada e só permitiram que comprasse
o catálogo.
A meio da visita
apareceu o camarada Domingos Abrantes, com o qual convivi quando estávamos
ambos exilados em Paris, e que me acompanhou até ao fim. É uma exposição
interessante e em que só aparece Álvaro Cunhal - e a sua família - quase desde
o nascimento, surgindo no fim um único retrato do atual líder do PCP, Jerónimo
de Sousa.
Conheci Álvaro
Cunhal quando, depois da sua primeira prisão, saiu e não tinha emprego, e, já
formado em Direito, com alta classificação, o meu pai o recebeu no Colégio
Moderno. Cunhal nunca quis exercer a profissão de advogado, ao contrário do seu
ilustre pai, grande jurista, professor, advogado, escritor e artista plástico.
Mais tarde, aliás, tive a honra de o conhecer bem e de me tornar seu amigo.
Tanto que, quando deixou de advogar, passou alguns dos seus clientes ao jovem
advogado que eu era então.
Sempre tive
fascínio, e depois admiração genuína, por Álvaro Cunhal, que era regente de
estudos, sendo eu estudante do ensino secundário. Tinha um rosto muito original
e uns olhos que nos perfuravam e impressionavam. Não posso negar que teve uma
grande influência em mim, estávamos então em plena II Guerra Mundial, ele
falava-nos da resistência antifascista e antinazi e das novas auroras de um
mundo diferente que aí viriam... Marcou-me profundamente, embora só depois dele
estar na clandestinidade me tenha tornado comunista. Por pouco tempo, aliás.
Encontrei-me com
Cunhal na clandestinidade, na Figueira da Foz (em Buarcos) e depois da sua
longa prisão e da sua fuga espetacular de Peniche (estive preso, por pouco
tempo, nessa altura, na Penitenciária, mas nunca nos vimos). Encontramo-nos em
Paris e na Checoslováquia, quando me pediram para lá ir (com passaporte falso,
claro) para ver o general Delgado, muito doente e acabado de ser operado. Então
já não me tratou por tu nem por camarada, nem sequer me agradeceu, visto eu ser
já socialista.
No pós 25 de Abril,
desde o 1.° de Maio, percebi que me via como um adversário, ao contrário do que
combináramos em Paris, no exílio. Houve um choque a partir das primeiras
eleições, que o Partido Socialista ganhou por grande diferença. Os leitores
conhecem todo o resto. Sabem que Cunhal reuniu duas vezes o Partido. Uma para
dizer que nunca me apoiaria como candidato a Presidente da República. E outra
para aconselhar, como disse, com muita graça, a uma peixeira, para que tapasse
com a mão a minha cara, mas pusesse a cruzinha no sítio para votar em mim. Uma
vez eleito, mantivemos sempre relações cordiais. Pelo meu lado reconheço que
sem o seu auxílio não teria nunca sido Presidente da República. E não esqueço
isso.
Nos seus 80 anos,
era eu Presidente, escrevi um artigo a dar-lhe os parabéns, de que muitos
anticomunistas não gostaram e que nunca compreenderam. Aliás, quando foi do 25
de Novembro - e eu estava no Porto - houve muita gente que queria destruir o
PCP. Mas, como se sabe, opus-me claramente a essa ideia. Porque considero que o
PCP tem todo o direito de lutar pelo que crê justo. E estive depois no funeral
de Álvaro Cunhal, como me cumpria, com profunda emoção. Foi alguém que, repito,
sempre, admirei desde que o conheci. Um homem político que sempre considerei
excecional, apesar dos conflitos ideológicos, políticos e sociais que tivemos.
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