Fernando Eloy – Hoje Macau,
opinião
“Você precisa de se
mexer mais”, dizia-me o médico há dias, “Ande pelo menos uma hora por dia”,
acrescentava. Eu sei que ele tem razão e até gosto de andar, mas sou assaltado
pela dúvida se andar a pé por Macau trará de facto benefícios à minha saúde. Na
realidade, e sem qualquer cinismo, andar por Macau até é (ou era) um ‘desporto’
atraente – frequentemente nunca nada é exactamente igual à última vez em que
por ali passámos ou, mais interessante, apesar da minguada dimensão da cidade,
existe sempre mais um beco, mais um recanto ou um pormenor que antes nos
escaparam resultando muitas vezes a sua descoberta num deleite bastas vezes
susceptível de nos excitar a imaginação. Todavia, andar por Macau, se não
ocorrer durante a noite ou bem cedo, há muito que deixou de poder ser
considerado um ‘passeio higiénico’ tendo chegado ao nível de desporto de alto
risco. Se o nosso percurso não nos permitir desviar por ruelas traseiras e
becos alternativos, é por demais evidente que a nossa saúde está em risco. A
abrasiva e omnipresente pestilência dos gases automóveis invadem-nos de forma
irreprimível cada vez mais concentrados pelo emparedamento em curso da cidade.
É físico, intenso e declaradamente pernicioso. Longe vão os tempos em que os
aromas marítimos, do incenso ou do encantador odor dos lótus (expressão
omnipresente na poesia chinesa) podiam figurar na literatura e na poesia como
factores distintivos de Macau tendo agora de serem obrigatoriamente
substituídos por dióxidos gases e sintéticos odores dos modernaços casinos sob
pena do texto cair no ridículo. Não é só a nossa saúde que está risco mas toda
a percepção do lugar. O cheiro de um sitio, mesmo que normalmente não o
incluamos na nossa descrição corriqueira de um qualquer lugar visitado (a menos
que pestilento), nunca consegue ser dissociado daquele. A este respeito
lembro-me da minha primeira viagem ao Brasil (já faz uns bons anos) e da
pergunta que um meu amigo, pintor, pessoa sensível às coisas me fez à chegada:
queria ele saber a que cheirava o Brasil. Nunca alguém me tinha feito
semelhante pergunta mas rapidamente percebi onde queria ele chegar pois, apesar
dele lidar com o real em imagens através da pintura, sabia bem que nenhum
retrato de um lugar fica completo sem os odores que lhe correspondem. ‘Cheira a
doce e a terra’ respondi-lhe ao vasculhar nas minhas memórias. Nesta mesma
senda odorífica, uma amiga de Hong Kong que em tempos decidiu trocar a
metrópole vizinha por esta nossa terra à procura de sossego e bom ar (mas que
depressa voltou à casa partida quando a revolução COTAI se iniciou) visitava-me
e dizia-me: ‘Macau cheira ao mesmo do costume’. Naturalmente, perguntei-lhe a
que se referia, ‘Ao que me levou daqui’ respondeu, ‘Gasolina’. Fiquei triste e
sem resposta. Ela tinha razão. Conseguimos ultrapassar Hong Kong. Alguma vez
teria de ser…
Resumindo, o ar de
Macau tantas vezes louvado por poetas, escritores, viajantes e habitantes é,
hoje em dia, uma merda! Tal qual. De quem é a culpa? Seria fácil dizer que é do
Governo. Naturalmente, eles têm a sua quota parte de responsabilidade mas não
há Governo nenhum do mundo, a menos que autocrático e Macau, apesar de tudo,
ainda não chegou aí, que faça aquilo que a população não quer e a população de
Macau não quer privar-se dos seus inúmeros automóveis. A maioria, talvez porque
nunca saia do ar condicionado, continua indiferente insistindo em andar de cu
tremido, a bem dizer. É absolutamente incompreensível como uma cidade tão
pequena necessita de tantos automóveis e porque tantas famílias precisam de
mais do que um em casa e, se repararem, a maioria leva apenas uma pessoa lá
dentro, às vezes duas.
Macau era, até há
bem pouco tempo, o local do mundo com maior esperança de vida por habitante,
mas com este ambiente não acredito que essa estatística se mantenha por muito
mais. O carro, um dos objectos mais anacrónicos deste nosso suposto mundo
avançado e tecnológico, há muito que deixou de fazer sentido nas cidades mas
nós, porque somos estúpidos mas liberados porque não temos medo que o céu nos
caia em cima da cabeça, continuamos indiferentes a gasear-nos uns aos outros
como se fosse a coisa mais normal do mundo.
Uma das desculpas
clássicas que vou ouvindo frequentemente, e me deixa à beira de um ataque de
nervos, aponta para as crianças. Dizem-me então que a existência do automóvel
se fica a dever às crianças, o que não deixa de constituir uma aberração
profunda pois se nós agora já sentimos as consequências, imaginem a cidade que
as coitadas das crianças vão herdar ainda por cima vindo a saber que culpa foi
em parte delas… Não, caros amigos, a culpa não é das crianças, é vossa. Macau é
pequeno demais para que essa justificação faça algum sentido. Outra desculpa
vulgarmente escutada, e ainda pior, aponta para tiques bacocos de classe que
não permitem aos sujeitos misturar-se com o povo nos autocarros. Mas, a
realidade, é que é fácil andar de transportes em Macau e o povo dos autocarros
é bem mais fraterno que do que povo ‘automovido’. Os autocarros de Macau
levam-nos praticamente a todo o lado e se não nos deixam à porta pouco falta.
Atrasam-se? Talvez, mas se não existissem tantos carros na rua andariam mais
depressa.
É natural que o
Governo pode fazer alguma coisa como regulando o número de autocarros
autorizados aos casinos e agências de viagens, incentivando as transportadoras
a adquirirem veículos não poluentes, aumentando os espaços pedonais fechando
ruas ao trânsito particular, criando horários para cargas e descargas, lançando
um dia sem automóveis como se faz na Europa, eliminando as motoretas de 50 cc,
lançando campanhas de sensibilização etc. Mas não podemos ficar à espera que
seja o Governo a resolver algo que começa na própria vontade dos cidadãos. Como
dizia o arquitecto Mauro Munhoz, organizador do Festival Literário de Parati
Brazil, durante a última Rota das Letras em Macau: “Não existe político bom em
nenhum lugar do mundo. A única maneira do político fazer coisas que interessam
é você ter uma rede da sociedade civil que controla o político”.
Por isso, caro
leitor, quando se sentar no seu carro pense bem no que está a fazer. Sim, eu
quero que se sinta culpado, envergonhado até, como ficaria se se peidasse
sonoramente em público.
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