Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Não sei o que
aconteceu no Meco. Nem sei se as praxes são as responsáveis pelo sucedido. Sei
que, talvez por causa do episódio errado, é a primeira vez que o tema das
praxes entra no espaço público sem a bonomia que tem merecido no passado. O
Henrique Monteiro acha que é histeria. Temo que todos, quando
discordamos duma qualquer indignação, a olhemos para ela como histeria. Mas é
sempre uma questão de perspetiva. E seria bom não atribuirmos o debate
acalorado e apaixonado a uma particularidade nacional. Não somos assim tão
originais. Por mim, em relação a este tema, acho que finalmente se começou a
perceber que o problema da praxe não é o de alguns abusos cometidos. Que é a
praxe, ela própria, que promove uma cultura de abuso.
No sábado, a RTP
transmitiu um documentário de Bruno Moraes Cabral, que recebeu um prémio no
DocLisboa de 2011. Tendo acompanhado praxes em Lisboa, Santarém, Coimbra,
Setúbal e Beja, não mostra os tais "abusos" excepcionais. Como as
pessoas se sabiam filmadas, mostra-se até a versão mais soft da praxe. Nada que
escandalizasse quem acredita que a praxe cumpre uma função necessária ou pelo
menos inócua na integração dos estudantes na vida académica.
Nas vésperas da sua
estreia, tive a oportunidade de escrever sobre o filme. É, curiosamente, um dos
textos mais lidos dos muitos que escrevi aqui no Expresso Online. Porquê?
Porque, desde que o escrevi, em outubro de 2011, ele espalhou-se pelas redes
sociais todos os meses de setembro de cada ano, na altura das praxes. Com
simpatia ou antipatia, por pessoas que concordaram e outras que se sentiram
ofendidas, por quem o acha acertado e por quem o toma por manifestação de
ignorante sobre a matéria. Tudo antes do episódio do Meco. O que talvez prove
que a praxe está longe de ser um assunto pacífico que só a histeria mediática e
irrefletida do momento agigantou. É um tema polémico há bem mais de um século.
E esta é a minha primeira divergência com o texto do Henrique Monteiro de
ontem: algumas pessoas refletiram e pensaram sobre as praxes, mesmo que ele
discorde delas. Não estão obrigatoriamente histéricas. Têm, como acontece
algumas vezes em relação a alguns assuntos, convicções mais firmes do que ele.
Noutros temas acontecerá o contrário.
Não me quero
repetir em relação ao que penso sobre as praxes e o seu suposto papel
inclusivo. Apesar do incómodo de muitos praxantes e praxados, republico aqui,
numa síntese que não dispensa a leitura integral, um excerto do texto em causa:
"Naqueles
rituais violentos e humilhantes, [os caloiros] conhecem pessoas e sentem-se
integrados num grupo. Eles são, naquele momento, rebaixados da mesma forma. Não
há discriminações. São todos "paneleiros", "putas",
"vermes". Na sua passividade e obediência, não se distinguem. Até,
quando deixarem de ser caloiros, terem direito à mesma "dignidade" de
que gozam os que bondosamente os maltrataram. Aceitam. Porque, como escrevia
Jean-Paul Sartre, "é sempre fácil obedecer quando se sonha comandar".
Sim, a praxe integra. A questão é saber em que é que ela integra. Porque a
integração não é obrigatoriamente positiva. Se ela nivela todos por baixo deve
ser evitada a todo o custo. Perante o que é degradante os espíritos críticos
distinguem-se e resistem. Não se querem integrar. (...) A praxe é a iniciação
de uma longa carreira de cobardia. Na escola, perante as verdades indiscutíveis
dos "mestres". Na rua, perante o poder político. Na empresa, perante
o patrão. A praxe não é apenas a praxe. É o processo de iniciação na
indignidade quotidiana."
O argumento,
perante a sucessão de acontecimentos resultantes duma suposta tradição
académica (não falarei do caso concreto, ainda muito pouco claro), é que
estamos perante abusos que ultrapassam em muito o que é a "verdadeira
praxe". Exceções. Claro que nos resultados mais dramáticos estamos perante
exceções. Mas as consequências mais radicais não resultam de um abuso execional
de quem passa os limites. Até porque ninguém consegue traçar a linha onde acaba
o tolerável e começa o abuso, quando a base fundamental desta tradição é a
própria banalização do abuso. Um abuso não deixa de ser abuso por ter regras.
Se tem graça eu insultar e enxovalhar em público, por piada, os meus colegas,
onde acaba exatamente o processo de humilhação consentida? Ainda mais quando
essa humilhação é coletiva e entre pessoas que desconhecem as fraquezas, fragilidades
e vulnerabilidades umas das outras. Qual é o momento em que a humilhação perde
a piada e passa a ser difícil de digerir? Conhece o grau de tolerância de cada
um quem humilha desconhecidos?
Pode ser que haja
uma praxe simpática, onde as pessoas não são, mesmo que duma forma simbólica e
ligeira, humilhadas. A existir uma praxe baseada no respeito pelo outro (que
não existia na praxe inicial de Coimbra, nem nas praxes militares ou outras,
todas elas com uma boa dose de violência, simbólica ou real), será essa, e não
a do abuso, a exceção. A regra é pelo menos a boçalidade que vimos no
documentário que a RTP transmitiu no sábado.
Em regra, a praxe é
um abuso na vulgaridade que promove. É um abuso por reduzir seres pensantes a
bestas alarves. Mas, antes de tudo, é um abuso por ensinar cidadãos livres e
indivíduos pensantes a, para se integrarem, se assemelharem ao mais idiota dos
seres humanos que estiver perto de si. E por criar um espírito de matilha, que
alimenta e se alimenta da impunidade, da falta de sentido crítico e da cobardia
individual.
Todos os rituais
têm um propósito. E aqueles que são de passagem dizem-nos qualquer coisa sobre
o que é esperado de nós a partir daquele momento. Por isso mesmo são "de
passagem". E as praxes dizem-nos que, no futuro e na vida, espera-se que
sejamos sempre obedientes perante o coletivo, dispostos a anularmos a nossa
identidade para sermos aceites por ele. E que o abuso é legitimo se for
consentido e deve ser consentido se tiver como recompensa a possibilidade de,
mais tarde, abusar dos outros.
Complico? Claro que
sim. Mas olhar para as praxes e refletir "um
milésimo de segundo sobre o significado das coisas", como nos
pede, e muito bem, o Henrique, obriga a complicar um bocadinho. Começando pelo
próprio significado da palavra "praxe". Que tem origem, como nos
recorda o documentário de Bruno Moraes Cabral, em "praxis" e que
comummente é usada para definir o que é habitual fazer-se. Ou seja, o que esta
suposta tradição académica pretende é integrar-nos, para na sociedade fazermos
"o que é da praxe". E é da praxe, enquanto tivermos um estatuto
inferior (como têm os caloiros), obedecermos cegamente, por mais absurda que
seja uma ordem. E sermos pequenos déspotas quando esse poder nos é oferecido
por estatuto ou antiguidade.
Dito isto: quero
proibir as praxes? Apesar de achar que as universidades, em defesa valores
fundamentais que lhes cabe promover, não as deveriam permitir nas suas
instalações, não defendo nem poderia defender a sua proibição. Mas a lei não é
a única forma de regulação social. De cada debate, mais ou menos
"histérico, nascem novos consensos sociais. Aquilo a que alguns chamam de
"abuso" já é punido por lei. Mas o que é legal, por ser consentido, é
que realmente interessa. O que assusta não é a praxe. Ela é apenas o sintoma
duma sociedade que mudou muito menos do que por vezes pensamos.
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