Daniel Oliveira – Expresso, opinião
Apesar de ter
passado uma semana, quero regressar ao discurso do Presidente da República.
Nada direi sobre as suas considerações a propósito da crise económica e
financeira, ou das diferenças entre um segundo resgate e um programa cautelar.
Quando um Presidente se limita a repetir, em versão mais pobre, o discurso do
governo quer dizer que é ele próprio que desvaloriza o seu papel político e
institucional. Não há nenhuma razão para ser eu a contraria-lo. Muito menos
quero comentar, mais uma vez, a retórica bafienta (para não dizer pior) do
Presidente sobre o que deve ser a democracia, a divergência, o confronto de
ideias e o pluralismo político. Tudo valores de que se socorre (por vezes de
forma bem deselegante, como se viu no seu vergonhoso discurso de vitória) para
vencer os seus adversários, mas que considera inaceitáveis quando o poder está
do seu lado. O que Cavaco Silva não aprendeu em mais de três décadas de vida
política ativa não aprenderá seguramente no fim da sua carreira. Porque é das
poucas coisas que subsistem, independentemente de quem ocupa o lugar, fico-me
pelos poderes constitucionais do Presidente.
Ao não pedir a
fiscalização preventiva da constitucionalidade de algumas normas mais duvidosas
do Orçamento de Estado para 2014, Cavaco Silva tomou uma decisão política. E
tal como acontece com todos os agentes políticos, deve ser responsabilizado
pelos efeitos dessa decisão. Neste caso, pelos efeitos duma possível declaração
de inconstitucionalidade em vésperas do fim da vigência do memorando de
entendimento e em plena negociação dum qualquer programa cautelar. O Presidente
da República considera que é preferível correr o risco de ter um novo buraco
orçamental em maio do que ter uma resposta rápida do Tribunal Constitucional e
dentro de prazos definidos (assim é quando se pede a fiscalização preventiva).
É uma preferência sua pela qual, caso haja inconstitucionalidades, deverá
responder.
Diz Cavaco Silva
que ao não suscitar dúvidas sobre a constitucionalidade do Orçamento quer
evitar um segundo resgate. Acontece que se o Presidente pensa que o Orçamento
está ferido de inconstitucionalidade está politicamente obrigado a pedir a sua
fiscalização sem outras considerações circunstanciais. Pois fazer cumprir a
Constituição, que não fica suspensa em tempos de necessidade, é um dever a que
não se pode escusar. Se, pelo contrário, não tem dúvidas constitucionais, os
argumentos circunstanciais são perfeitamente dispensáveis e não se percebe
porque os usou sequer.
Dependendo de
avaliação política do Presidente, a decisão de não pedir a fiscalização é uma
decisão legitima, desde que, depois, não resulte no passa-culpas do costume. Se
o pior acontecer, há dois responsáveis: a maioria que suporta o governo, que
terá aprovado, mais uma vez, normas inconstitucionais, e o Presidente da
República, que decidiu que estas entrariam em vigor sem qualquer fiscalização,
deixando para um momento muito pior os efeitos dessa mesma fiscalização.
Mas nada de bom se
deve esperar quanto à capacidade do Presidente da República assumir as
responsabilidades dos seus atos - se o fizesse, seria uma estreia absoluta na
sua já longa carreira política. Para justificar a sua decisão, fontes de Belém
disseram que o Presidente tinha pareceres que "não apontam para a
inconstitucionalidade das normas orçamentais". Mas Cavaco Silva não se
ficou por aqui. Depois de falar dos seus "pareceres", a Presidência
da República iniciou uma nova fase da política nacional: o confronto de
pareceres. "Se os deputados da Assembleia da República têm pareceres em
sentido contrário, é normal que façam uso do direito que a Constituição lhes
confere e requeiram ao Tribunal Constitucional a declaração de
inconstitucionalidade" (que no caso do Parlamento, só pode ser sucessiva),
informou a Presidência.
Nem o Presidente,
nem a Assembleia da República dependem de pareceres para exercerem os seus
mandatos. O único "parecer" que conta, nesta matéria, é o dos juízes
do Tribunal Constitucional. A decisão de suscitar a fiscalização da
constitucionalidade tem uma base técnica. Para lidar com ela, cada órgão de
soberania fará o que entender: recorrer a juristas dos seus serviços, pedir
pareceres externos ou socorrer-se do seu próprio conhecimento. Mas a decisão é
política. Ao lidar com a opção de não pedir a fiscalização preventiva como se não
fosse sua, mas de autores de pareceres, Cavaco Silva faz as duas coisas que
mais gosta de fazer: livrar-se das responsabilidades futuras das suas decisões
e tentar esvaziar de política a própria política, substituindo-a por questões
meramente técnicas ou por exigências morais genéricas, como a "salvação
nacional" e "o consenso".
Mas mesmo
desprezando a relevância política destes pareceres, confesso a minha
curiosidade. Como bem escreveu Fernanda Câncio, só
podem ter sido pedidos a constitucionalistas diferentes daqueles que ajudaram
Cavaco Silva a lidar com o Orçamento de 2013. É que nessa altura o Presidente
pediu a fiscalização da constitucionalidade de normas relativas aos cortes nos
salários da função pública e nas pensões, em tudo semelhantes aos que levantam
dúvidas constitucionais no Orçamento de 2014. Apenas eram, há um ano, menos graves
na profundidade dos seus efeitos e dos valores constitucionais que desafiavam.
Não era, em 2013, o
orçamento um "instrumento da maior relevância"? Não se exigia a todos
um "um sentido patriótico da responsabilidade"? Sim, claro. Mas eram
diferentes as sondagens e a espuma do dias estava mais adversa para o governo,
a quem Cavaco não queria aparecer colado. O discurso grave e sério, os apelos
ao consenso nacional, tudo, em Cavaco, esconde um único desígnio: a sua própria
imagem política. Nos últimos três anos, esse foi o único critério para os
pedidos de fiscalização dos orçamentos. Que o levou a pedir que fosse
fiscalizado no orçamento de 2013 o que tinha dispensado de fiscalização no
orçamento de 2012 e que voltou a não precisar de ver fiscalizado no orçamento
de 2014. Porque, mais parecer menos parecer, interessa a Cavaco apenas o que
dele próprio nos aparece.
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