Michael Leach e Rui
Graça Feijó – Público, opinião
A espionagem
deliberada praticada pelas autoridades australianas, a ser reconhecida,
retirar-lhes-á o argumento de terem agido de boa-fé.
Andam agitadas as
águas no Mar de Timor. Este mês começou a ser julgada no Tribunal de Justiça
Internacional (TJI), em Haia, uma acção de arbitragem desencadeada por
Timor-Leste ao abrigo do Tratado do Mar de Timor. Ainda antes de entrar na
substância da material, o TJI teve de se debruçar sobre uma queixa prévia, uma
vez que a Austrália, antecipando-se ao que se iria passar, promoveu algumas
acções que põem em causa direitos de defesa de Timor-Leste.
Assim, a
Organização Australiana de Serviços Secretos (ASIO) apreendeu documentos na
posse da equipa de advogados encarregados de defender os interesses timorenses,
incluindo vários protegidos pelo direito de confidencialidade nas relações
entre advogados e seus clientes. Por outro lado, a residência da testemunha-chave
apresentada por Timor-Leste foi alvo de uma rusga, e o seu passaporte
confiscado, impedindo desta forma a sua deslocação a Haia para depor. O
Procurador-Geral justifica a acção com o argumento de que se destinaria a
prevenir a potencial identificação de actividades e agentes dos serviços de
inteligência, mas não consegue afastar a ideia de que no mesmo golpe se atingem
os direitos de defesa de Timor-Leste.
A argumentação
timorense assenta na denúncia – que o Tribunal julgará se tem fundamento credível
– de espionagem ilegal das autoridades timorenses por ocasião das negociações
que conduziram à assinatura de um tratado entre as partes. Para esse fim, a
Austrália terá colocado escutas em gabinetes governamentais timorenses, usando
a sua agência de cooperação internacional, a AUSAID, como capa do processo,
evidenciando que se tratou de uma acção deliberada e não de qualquer subproduto
de uma rotineira escuta de comunicações. Terão sido equipamentos oferecidos a
Timor-Leste no âmbito da cooperação a ser manipulados pelos serviços secretos –
fazendo assim pairar uma nuvem de suspeição sobre toda a actividade de
cooperação. Espiar as autoridades timorenses terá oferecido à Austrália uma
vantagem comercial indevida. Com base nesta acusação, Timor-Leste – que tem
visto no incidente um grave atentado à sua soberania, que concita uma
unanimidade de posições dos vários sectores políticos – pretende obter to TJI
uma resolução que invalide o tratado e permita a reabertura de negociações
sobre a material contemplada no mesmo, à luz da lei internacional. De que se
trata, afinal?
Timor-Leste e a
Austrália não possuem uma fronteira claramente demarcada. Apesar disso, várias
negociações permitiram obter acordos que autorizam a exploração de recursos
naturais no Mar de Timor, e estabelecem modalidade de divisão dos respectivos
proventos.
Em 1972, a
Austrália estabeleceu um acordo muito favorável com a Indonésia, a que Portugal
se recusou a juntar, preferindo aguardar o resultado das negociações
internacionais que culminariam em 1982 com a Convenção da ONU sobre Direito do
Mar (UNCLOS). A recusa de Portugal aderir ao acordo de 1972 criou uma espécie
de “buraco” que recebeu a designação de “Timor Gap” na fronteira
australo-indonésia. Em 1989, a Austrália e a Indonésia celebraram um acordo
para a exploração dos recursos do Timor Gap, na base 50/50, numa chamada “Zona
de Cooperação”. Portugal opôs-se a este acordo, mas o facto de a Indonésia não
reconhecer a autoridade judicial internacional impediu que tal oposição tivesse
sentido prático.
A independência de
Timor-Leste em 2002 abriu as portas para que se procedesse a nova negociação.
Nesse intervalo, a lei marítima internacional havia progredido
significativamente no sentido de estabelecer fronteiras no ponto médio entre
dois estados, abandonando o princípio das plataformas continentais em que se
baseava a pretensão australiana – que no entanto aderira à Convenção em 1994.
Este foi aliás o princípio usado pela Austrália para determinar a sua fronteira
com a Nova Zelândia em 2004. Mas, antecipando a independência timorense, a
Austrália abandonou a Convenção no início de 2002, dificultando a resolução de
disputas no âmbito que esta definia, e que se traduziam no reconhecimento da
jurisdição do TJI.
Na sequência da
independência, a antiga “Zona de Cooperação” foi rebaptizada como Joint
Petroleum Development Area (JPDA), e Timor-Leste (que poderia aspirar a ter
total controle sobre a mesma) ficou com 90% dos seus rendimentos. De fora
ficaram outros campos mais importantes, como o Greater Sunrise.
Num novo documento
intitulado Certain Maritime Arrangements in Timor Sea Treaty (CMATS), ficou
decidido que 20% do Greater Sunrise cabiam na JPDA, e que nos restantes 80% se
observaria uma partilha igualitária de rendimentos. Uma condição, porém, estava
por detrás deste acordo: é que Timor-Leste abdicava de reivindicar, por um
prazo de 50 anos, a definição da sua fronteira marítima com a Austrália
(período mais alargado do que o prazo estimado de vida útil destes campos
petrolíferos). Não dispondo da opção de uma arbitragem internacional em virtude
da saída da Austrália do sistema de resolução de disputas, Timor-Leste aceitou
o CMATS em 2007, prescindindo da determinação de uma fronteira a meio caminho
entre as respectivas costas, que colocaria uma percentagem substancialmente
maior dos recursos petrolíferos do seu lado.
O que Timor-Leste
deseja, com a actual acção judicial, é que seja aplicado um princípio
reconhecido pela Convenção de Viena sobre Tratados Internacionais, que estipula
que a sua validade depende de terem sido estabelecidos com “boa-fé”. A
espionagem deliberada praticada pelas autoridades australianas, a ser
reconhecida, retirar-lhes-á o argumento de terem agido de boa-fé. Se se provar
que o fizeram com o intuito de obter ganhos comerciais ilícitos, então o
argumento ainda ganharia maior força. Obtendo ganho de causa, abrem-se as
portas a uma nova negociação sobre a divisão de proveitos no Mar de Timor.
Trata-se de uma
opção arriscada para uma nova nação, sobretudo dado que a efectiva exploração
dos recursos naturais pressupõe uma definição clara dos termos em que pode
ocorrer, e uma negociação deste tipo poderia adiar significativamente o
recebimento de rendimentos que são críticos para o desenvolvimento nacional.
Por outro lado, a força da argumentação australiana, baseada no princípio das
plataformas continentais, tem recuado significativamente nos últimos anos, e
abrem-se assim perspectivas para que uma melhor acordo possa vir a ser
alcançado. Para uma jovem nação tão dependente deste recurso finito para
combater a pobreza e fomentar o seu progresso, o que está em jogo em Haia é de
suprema importância. Não está em causa o princípio da partilha de recursos que
legitimamente possam ser considerados comuns – mas tão só abrir a porta para
que se encontre uma solução consentânea com o direito internacional e que
represente uma partilha justa e equilibrada desses mesmos recursos. Ainda bem
que a via escolhida por Timor-Leste para cumprir esse desiderato tenha sido a
das instâncias jurídicas internacionais. Oxalá justiça venha a ser feita.
- Professor da
Swinburne University of Technology, Melbourne, Australia
- Professor do Centro
de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra
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