terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

DEMOCRACIA DIRETA: O POPULISMO COMO FORMA DE GOVERNO

 

Daniel Oliveira – Expresso, opinião
 
A Suíça ficou a ganhar com os vários acordos que tem com a União Europeia. O desemprego manteve-se baixo para a população em geral (3,4%) e para os suíços em particular (2%). Os salários cresceram 0,6% (mais do que antes dos acordos com a União). A economia cresceu acima da média europeia e mais de metade das exportações da Suíça vão, graças à abertura dos mercados, para a União. Ninguém no seu prefeito juízo põe em causa as vantagens deste país rico, livre dos constrangimentos do euro e dos tratados, cercado por estados membros, manter estes acordos com a União. Mas os referendos não definem políticas coerentes nem estratégias económicas. E recusam o cinzento de que resulta qualquer processo negocial.
 
O que foi perguntado em referendo aos suíços foi apenas se queriam manter a abertura de fronteiras a cidadãos da União Europeia. É verdade que desde que os acordos foram assinados os emigrantes passaram de 20% para 23,5%. Italianos, alemães e portugueses que, com tão parco crescimento, não resultaram em qualquer mudança fundamental na sociedade suíça. E, curiosamente, os resultados mais altos do "sim" não foram nos lugares onde a emigração realmente se sente. Mas o populismo é fácil quando o tema são os imigrantes. Até em Portugal, país que já foi e voltou a ser de emigrantes, e a quem faltam imigrantes que equilibrem as contas da segurança social, é medo que já rendeu votos.
 
Os suíços votaram e disserem o que queriam: manter tudo o que lhes deram estes acordos menos a abertura das fronteiras a estrangeiros. Ou seja, só querem a parte fácil do negócio. O resto, que seria legítimo pôr em causa, no seu conjunto, não interessou ao SVP, partido de extrema-direita que promoveu o referendo. Só que a vitória do sim não conseguiu apenas que a Suíça mudasse a política de imigração para cidadãos comunitários. Não estava na pergunta a que 50,3% dos eleitores suíços responderam afirmativamente, mas também poderá ter conseguido o encerramento das fronteiras do seu país para grande parte das relações comerciais livres que hoje mantem com a União. Ou seja, passar a ser tratado como qualquer país extracomunitário, sem tratamento preferencial. E não me parece os suíços quisessem pôr isso em risco por causa de uns poucos alemães, italianos e portugueses. Este é um dos problemas dos referendos. São parcelares. O que torna as políticas erráticas, incoerentes e incompreensíveis.
 
Neste caso, o referendo, que tinha pelo "não" praticamente todas as estruturas organizadas da Suíça (sindicatos, associações patronais e partidos), até teve uma participação semelhante à das nossas eleições legislativas. Mas a média de abstenção nos sempre tão elogiados referendos suíços, que aos olhos de muitos regenerariam a nossa democracia, costuma andar pelos 60%. E neles decidem-se coisas absurdas, como proibir minaretes em mesquitas, naquilo que qualquer constituição democrática consideraria um ataque à liberdade religiosa.
 
Chegam-me, todos os dias, mensagens e comentários em defesa da "democracia direta". Como o que está a dar é falar mal dos partidos políticos, quem quer aplauso fácil (ou até voto fácil) acompanha a música. Mas eu não me limito a desconfiar da viabilidade da democracia direta. Sou contra ela. Porque o ato de governar (ou até de fazer oposição) não corresponde a tomar decisões avulsas sobre vários temas, em que não há programa, horizonte, modo de olhar o mundo e o país, nada que cole pedaços de opiniões e excitações momentâneas. A política exige a coerência que as estruturas mediadoras lhe podem dar. Saber e informação que não se recolhe nas horas vagas. Exige negociação e compromisso. E a negociação e o compromisso exige que haja partes para negociar e para se comprometerem para o futuro. Partes com representantes.
 
Não acredito na democracia direta, como não acredito na luta dos trabalhadores sem sindicatos ou algo que os substitua, na escola democrática sem associações de pais e de estudantes, na defesa do ambiente, dos consumidores ou da qualidade de vida urbana sem associações e movimentos.
 
Não há participação sem organização e mediação. Há populismo e demagogia. A espontaneidade política é o caos e o caos é o espaço ideal para todas as arbitrariedades. O discurso em defesa da democracia direta é, mesmo que involuntariamente, a defesa do poder sem responsabilização nem escrutínio. Até porque o poder que uma suposta democracia direta ajuda a criar não tem espaço para oposições. E não é por acaso que a única democracia referendária da Europa tem sido um dos palcos preferenciais da extrema-direita para a sua agenda de ódio e medo.
 
Acredito na democracia representativa temperada pela democracia participativa. É uma coisa bem diferente da democracia direta ou referendária. É a garantia de que a democracia representativa deixa espaço para que os cidadãos organizados possam exercer o controlo ao trabalho feito pelos seus representantes. Que a democracia não se exerce apenas de quatro em quatro anos. Que o povo se envolve no governo da coisa pública, seja ela a Europa, o País, a cidade, a rua ou a escola. E que até, para casos extraordinários - na minha opinião, decisões que resultem em perda de soberania -, se permite o referendo.
 
Mas reparem quem nem as autarquias que por esse mundo fora aplicaram de forma mais profunda o orçamento participativo permitem que todo o orçamento (ou sequer a sua maioria) tenha intervenção direta dos cidadãos. Porque se permitissem as nossas cidades seriam uma selva, onde a maioria reservaria para si todos os recursos.
 
A democracia representativa precisa de transparência, de exigência e de participação cidadã organizada (insisto no "organizada"). Não precisa de humores e excitações de cada momento, que mudam ao sabor do talento retórico de populistas. A representação é a moderação do imediatismo e do egoísmo. Funciona mal? Funciona pessimamente. Mas experimentem decidir tudo em referendos e assembleias populares e rapidamente verão surgir nas plateias centenas de candidatos a pequenos tiranos.
 
Por distração (sem sentido, até porque escrevi abundantemente sobre o assunto em 2009), disse aqui que no referendo sobre os minaretes o "não" tinha vencido. O que é obviamente falso. Numa clara violação à liberdade de culto, os suiços aprovaram mesmo a proibição da construção de minaretes nas mesquitas. O texto foi corrigido.
 

Sem comentários:

Mais lidas da semana