Daniel Oliveira –
Expresso, opinião
A Suíça ficou a
ganhar com os vários acordos que tem com a União Europeia. O desemprego
manteve-se baixo para a população em geral (3,4%) e para os suíços em
particular (2%). Os salários cresceram 0,6% (mais do que antes dos acordos com
a União). A economia cresceu acima da média europeia e mais de metade das
exportações da Suíça vão, graças à abertura dos mercados, para a União. Ninguém
no seu prefeito juízo põe em causa as vantagens deste país rico, livre dos
constrangimentos do euro e dos tratados, cercado por estados membros, manter
estes acordos com a União. Mas os referendos não definem políticas coerentes
nem estratégias económicas. E recusam o cinzento de que resulta qualquer
processo negocial.
O que foi
perguntado em referendo aos suíços foi apenas se queriam manter a abertura de
fronteiras a cidadãos da União Europeia. É verdade que desde que os acordos
foram assinados os emigrantes passaram de 20% para 23,5%. Italianos, alemães e
portugueses que, com tão parco crescimento, não resultaram em qualquer mudança
fundamental na sociedade suíça. E, curiosamente, os resultados mais altos do
"sim" não foram nos lugares onde a emigração realmente se sente. Mas
o populismo é fácil quando o tema são os imigrantes. Até em Portugal, país que
já foi e voltou a ser de emigrantes, e a quem faltam imigrantes que equilibrem
as contas da segurança social, é medo que já rendeu votos.
Os suíços votaram e
disserem o que queriam: manter tudo o que lhes deram estes acordos menos a
abertura das fronteiras a estrangeiros. Ou seja, só querem a parte fácil do
negócio. O resto, que seria legítimo pôr em causa, no seu conjunto, não
interessou ao SVP, partido de extrema-direita que promoveu o referendo. Só que
a vitória do sim não conseguiu apenas que a Suíça mudasse a política de
imigração para cidadãos comunitários. Não estava na pergunta a que 50,3% dos
eleitores suíços responderam afirmativamente, mas também poderá ter conseguido
o encerramento das fronteiras do seu país para grande parte das relações
comerciais livres que hoje mantem com a União. Ou seja, passar a ser tratado
como qualquer país extracomunitário, sem tratamento preferencial. E não me
parece os suíços quisessem pôr isso em risco por causa de uns poucos alemães,
italianos e portugueses. Este é um dos problemas dos referendos. São
parcelares. O que torna as políticas erráticas, incoerentes e incompreensíveis.
Neste caso, o
referendo, que tinha pelo "não" praticamente todas as estruturas
organizadas da Suíça (sindicatos, associações patronais e partidos), até teve
uma participação semelhante à das nossas eleições legislativas. Mas a média de
abstenção nos sempre tão elogiados referendos suíços, que aos olhos de muitos
regenerariam a nossa democracia, costuma andar pelos 60%. E neles decidem-se
coisas absurdas, como proibir minaretes em mesquitas, naquilo que qualquer
constituição democrática consideraria um ataque à liberdade religiosa.
Chegam-me, todos os
dias, mensagens e comentários em defesa da "democracia direta". Como
o que está a dar é falar mal dos partidos políticos, quem quer aplauso fácil
(ou até voto fácil) acompanha a música. Mas eu não me limito a desconfiar da
viabilidade da democracia direta. Sou contra ela. Porque o ato de governar (ou
até de fazer oposição) não corresponde a tomar decisões avulsas sobre vários
temas, em que não há programa, horizonte, modo de olhar o mundo e o país, nada
que cole pedaços de opiniões e excitações momentâneas. A política exige a
coerência que as estruturas mediadoras lhe podem dar. Saber e informação que
não se recolhe nas horas vagas. Exige negociação e compromisso. E a negociação
e o compromisso exige que haja partes para negociar e para se comprometerem
para o futuro. Partes com representantes.
Não acredito na democracia
direta, como não acredito na luta dos trabalhadores sem sindicatos ou algo que
os substitua, na escola democrática sem associações de pais e de estudantes, na
defesa do ambiente, dos consumidores ou da qualidade de vida urbana sem
associações e movimentos.
Não há participação
sem organização e mediação. Há populismo e demagogia. A espontaneidade política
é o caos e o caos é o espaço ideal para todas as arbitrariedades. O discurso em
defesa da democracia direta é, mesmo que involuntariamente, a defesa do poder
sem responsabilização nem escrutínio. Até porque o poder que uma suposta
democracia direta ajuda a criar não tem espaço para oposições. E não é por
acaso que a única democracia referendária da Europa tem sido um dos palcos
preferenciais da extrema-direita para a sua agenda de ódio e medo.
Acredito na
democracia representativa temperada pela democracia participativa. É uma coisa
bem diferente da democracia direta ou referendária. É a garantia de que a
democracia representativa deixa espaço para que os cidadãos organizados possam
exercer o controlo ao trabalho feito pelos seus representantes. Que a
democracia não se exerce apenas de quatro em quatro anos. Que o povo se envolve
no governo da coisa pública, seja ela a Europa, o País, a cidade, a rua ou a
escola. E que até, para casos extraordinários - na minha opinião, decisões que
resultem em perda de soberania -, se permite o referendo.
Mas reparem quem
nem as autarquias que por esse mundo fora aplicaram de forma mais profunda o
orçamento participativo permitem que todo o orçamento (ou sequer a sua maioria)
tenha intervenção direta dos cidadãos. Porque se permitissem as nossas cidades
seriam uma selva, onde a maioria reservaria para si todos os recursos.
A democracia
representativa precisa de transparência, de exigência e de participação cidadã
organizada (insisto no "organizada"). Não precisa de humores e
excitações de cada momento, que mudam ao sabor do talento retórico de
populistas. A representação é a moderação do imediatismo e do egoísmo. Funciona
mal? Funciona pessimamente. Mas experimentem decidir tudo em referendos e
assembleias populares e rapidamente verão surgir nas plateias centenas de
candidatos a pequenos tiranos.
Por distração (sem
sentido, até porque escrevi abundantemente sobre o assunto em 2009), disse aqui
que no referendo sobre os minaretes o "não" tinha vencido. O que é
obviamente falso. Numa clara violação à liberdade de culto, os suiços aprovaram
mesmo a proibição da construção de minaretes nas mesquitas. O texto foi corrigido.
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