“Memes” falsos são
apenas ponta do iceberg. Estratégia para derrubar governo democrático inclui
inventar violência e criar caos
Romain Migus, do Memóire des Luttes -
Tradução: Cauê Amenim em Outras Palavras
Uma mudança
surpreendente produz-se no cenário internacional desde há alguns meses – e está
relacionada à onda de revoltas iniciada em 2011. As táticas baseadas em enormes
manifestações de rua e, muitas vezes, em ocupação física de praças, estão em
disputa. Foram empregadas, a princípio, por movimentos que enfrentavam
ditaduras (como no Egito e Tunísia) ou eram muito críticos ao capitalismo
(15-M, Occupy). Agora, estão sendo adotadas também por grupos claramente
conservadores, capazes de mobilizar parcelas importantes de suas sociedades.
É o que ocorre, por
exemplo, na Ucrânia, onde três organizações de ultra-direita, participam da
ocupação da Praça Maidan. Lá, segundo algumas análises, sãohegemônicas.
Cresceram num cenário marcado
por desgaste extremo de um governo autoritário, paralisia da esquerda,
vacilações dos partidos da ordem tradicionais. Algo semelhante ocorre na
Tailândia. Dezenas de milhares de jovens estão nas ruas. Fazem barricadas,
bloqueiam as entradas de prédios públicos. Apoiados pela mídia e pela
hierarquia do Judiciário, apresentam um programa espantoso, porque abertamente
elitista e pré-moderno. Querem derrubar uma primeira-ministra que ensaia
tímidas reformas sociais. Rejeitam eleições (tentaram sabotar as
últimas). Exigem um governo não-eleito (sic), formado por “notáveis” e
encarregado de reescrever as leis do país…
Esta tentativa de
“capturar” as ruas já foi vivida,
no Brasil, em junho de 2013. Dá-se agora na Venezuela, onde os setores mais
extremados da oposição ao governo de Nicolas Maduro promovem atos violentos.
Desta vez, incorpora um fator novo: o uso sistemático das redes sociais como
arma de manipulação de informações – portanto, de produção de desigualdades
simbólicas.
Os “memes” que
acompanham a matéria a seguir ilustram esta “novidade”. Nos últimos dias, cenas
de violência policial ou de tortura, registradas em muitas partes do mundo
(inclusive no Brasil…), são apresentadas, em postagens no Twitter e Facebook,
como se tivessem se passado na Venezuela. Não se trata de um caso – mas de um
padrão, repetido em sequência. Não é, tudo indica, brincadeira de adolescentes
ingênuos.
Uma questão mais
profunda sobressai. Libertadora a princípio, por permitir que seres humanos
comuniquem-se sem intermediários ou hierarquias, a internet nada garante,
em termos de transformações sociais. Em sociedades (auto-)oprimidas pelo
preconceito, marcadas pela alienação e pela quase incapacidade de escutar o
outro, “memes” falsificadores podem tornar-se virais. Quem os transmite não
desejacompartilhar algo, mas impor uma forma violenta de
ver o mundo – que não se abre nem à razão, nem ao sentimento. É a versão
virtual dos que amarram pobres pretos aos postes.
A resposta, óbvio,
não é rejeitar as redes – mas compreender que elas, por si mesmas,
não são capazes de transformar nada. Podem converter-se, ao contrário, em
multiplicadoras aceleradas da barbárie em que vivemos. Para mudar o mundo,
continuam indispensáveis visões, lógicas, projetos e políticas… (A.M.)
Quem acompanha o
noticiário internacional nesse fevereiro de 2014 pode acreditar que a Venezuela
– novamente ela – está sob fogo e sangue. O culpado, segundo as grandes
empresas de comunicação, é o mesmo, há quinze anos: o governo bolivariano
massacra seu povo – mais uma vez –, como se esse fosse o passatempo favorito
dos governantes, desde a ascensão de Hugo Chávez à presidência da República.
São esquecidos, porém, os onze chavistas assassinados no dia seguinte à vitória
eleitoral de Nicolas Maduro, em abril de 2013; a larga vitória municipal do
campo bolivariano em dezembro de 2013. Tenta-se apagar o apoio popular à
Revolução Bolivariana, alegando que os venezuelanos estão enfrentando uma
“regime” que não hesita em disparar contra seu povo. Um olhar sobre os eventos
que sacudiram a Venezuela é, por isso, necessário para compreender o que esta
acontecendo agora na terra de Bolívar e Chávez.
Guerra interna na
oposição
A oposição
venezuelana não é um bloco monolítico. Embora todos os partidos compartilhem de
um programa comum (1), as estratégias para tomar o poder, e sobretudo a ambição
pessoal, sempre reavivam tensões. A liderança que Henrique Crapriles Rodanski
construiu desde sua vitória na principal coalizão opositora (Mesa de Unidade
Dmocrática – MUD), em fevereiro de 2012, sofreu erosão ao longo de suas quatro
derrotas eleitorais. Nas eleições municipais de dezembro de 2013, o partido de
Leopoldo Lopez, Voluntad Popular, ganhou mais prefeituras que o Primero
Justicia, organização de Capriles.
Os questionamentos
internos, em sequência a repetidas derrotas nas urnas e reviveram os velhos
demônios de uma oposição pronta para considerar legitimo qualquer caminho
possível para conquistar o poder.
Aproveitando-se do
descontentamento compreensível de uma parte da população, diante de uma guerra
econômica que afeta os venezuelanos cotidianamente (3), o setor mais radical da
oposição decidiu passar ao ataque. Nos primeiros dias de 2014, Leopoldo Lopez,
Maria Corina Machado ou Antonio Ledezma apelam ao “levante” como meio
“democrático” para derrubar o governo (4). A Constituição venezuelana prevê,
como dispositivos democrático, a convocação de um referendo revogatório, na
metade dos mandatos, para confirmá-los ou não. No caso de Capriles, em abril de
2016, Leopoldo Lopez não ficará por ai. Em meio a um encontro, em 2 de
fevereiro de 2014, disse a seus apoiadores: “Os problemas que o povo sofre têm
um culpado. O culpado é o poder nacional (…) nós não podemos dizer que o
problema é apenas Nicolas Maduro. O problema, são todos os poderes públicos
nacionais” (5). Golpe de Estado?
No decorrer do
mesmo encontro, Maria Corina Machado afirma que “a única resposta possível é a
rebelião (…) Alguns dizem que temos que esperar as eleições em não sei quantos
anos (…) Mas a Venezuela não pode mais esperar” (6). A mensagem de confronto
foi lançada contra o governo, mas também ao MUD e a Capriles. A tentativa de
controle da oposição pelo setores mais antidemocráticos do antichavismo foi
confirmado por Leopoldo Lopez, quando convocou uma manifestação para 12 de
fevereiro de 2014: “Nossa luta passa pela rua (…) eu tenho certeza que, no dia
12 de fevereiro, nós veremos Henrique Capriles na rua. Eu lanço uma chamada [a
todos os dirigentes da oposição] mas sobretudo à Henrique, que tem grande
responsabilidade, para que se junto a esse clamor de mudanças” (7).
Dito e feito
Dia 12 de
fevereiro, a manifestação dirige-se contra a sede do Poder Judiciario
(Ministério Publico, na Venezuela), situada no centro popular da capital. A
maioria dos dirigentes da oposição, incluindo Henrique Capriles Radonski, está
ausente. A pequena procissão é composta principalmente de estudantes de classe
média alta de universidades privadas. No local, Leopoldo Lopez e Maria Corina
Machado inflamam a multidão com falas semelhantes às de alguns dias atrás.
Antes de dispersar o evento, enquanto a maioria dos estudantes deixam o local
sem ser perturbados, grupos extremistas tomam o lugar. Sinais pacifistas dão
lugar a pedras e coquetéis molotov. E tudo muda.
No meio do
confronto, tiros. Juan Montoya (“Juancho”), um militante chavista presente ao
local, e Basil da Costa, um estudante da oposição, morrem assassinados com um
tiro na cabeça. A policia nacional consegue repelir os provocadores, que se
reagrupam em Chacao, bairro chique de Caracas, cujo prefeito, Ramon Muchacho, é
membro do partido Primeiro Justicia. Algumas horas depois, os confrontos deslocam-se
para esta região da cidade. Roberto Redman, um militante da oposição, que
trouxe o corpo do jovem Basil, é também assassinado. A maquina midiática
internacional se anima. O governo é acusado de ter originado a sangrenta
repressão, embora as forças policiais não utilizem qualquer arma letal para
lidar com facções armadas da oposição (8).
Os meios privados
de comunicação passam a denunciar a censura governamental depois que um canal a
cabo colombiano, NTN24, foi retirado do ar pelos próprios operadores privados,
por ter infringido a lei venezuelana que proíbe a retransmissão ao vivo de
imagens de violência na rua. Não se trata de uma censura orquestrada pelo
poder: a mídia internacional e nacional cobriu vastamente a parte pacifica da
manifestação. Em contrapartida, nenhuma mídia internacional denunciou os
ataques com armas de fogo contra a sede da televisão pública VTV, em que uma
funcionária foi atingida por um tiro nas costas. Liberdade de expressão com
dois critérios?
Na noite do dia 12
de fevereiro, havia um saldo de três mortos e diversos feridos, inclusive entre
a polícia e os funcionários do metrô de Caracas, apanhados pelos grupos
extremistas da oposição. Havia também seis carros da policia queimados,
escritórios de instituições públicas destruídos, sem levar em conta os danos
colaterais sofridos pelos habitantes da cidade.
Estas atitudes são
criticadas mesmo entre a oposição. Um jornalista do El Universaldenuncia a
irresponsabilidade e a falta de liderança de Leopoldo Lopez quando ele
abandonou os estudantes, assim que os confrontos começaram (9). O prefeito de
Chacao publica um tweet contundente: “Nós reconhecemos a falta de liderança da
oposição. Só a anarquia reina. É isso que queremos?” (10). Henrique Capriles
ecoa, “garras de grupos violentos sobre uma manifestação pacifica” (11).
Uma investigação
revelará, conforme o ministro do Interior e da Justiça, Miguel Rodriguez
Torrez, que as duas pessoas assassinadas nas proximidades do Ministério
Público foram alvejadas com a mesma arma, o que reforça a hipótese de
infiltração de mercenários paramilitares da oposição, com objetivo de criar o
caos e de atiçar as tensões entre os venezuelanos. Um cenário similar ao vivido
durante o golpe de Estado de 11 de abril de 2012 (12). Os mais vulneráveis,
diante desta estratégia, são, infelizmente, os jovens estudantes, que pensam
poder destituir um governo apoiado pela maioria da população e pelo exército.
Henrique Capriles
Radonski solidarizou-se, na sequência, com Leopoldo Lopez, mas insistiu sobre a
diferença de estratégia que o opõe a seu antigo aliado (13). O antigo candidato
presidencial chegou a convocar para uma manifestação contra a violência e o
“paramilitarismo”, esperando atrair os manifestantes dos dias anteriores.
Cúmulo da ironia por quem deveria assumir a responsabilidade intelectual pelo
assassinato de onze militantes chavistas, logo após sua derrota eleitoral nas
eleições presidenciais de abril de 2013 (14).
A mão do Império
não é fantasia
Nicolas Maduro
recebeu mensagens de solidariedade – e de critica à violência da oposição –
enviadas por diversos governos do mundo a União das Nações Sulamericanas
(Unasur). Enquanto isso, o governo dos Estados Unidos adotou um tom de ameaça.
Num discurso pela TV, o presidente Maduro denunciou as propostas do
subsecretário de Estado adjunto para América Latina, Alex Lee. Este havia
apresentado uma série de exigências (libertação dos responsáveis pela
violência, fim dos processos contra Leopoldo Lopez, diálogo imediato com a
oposição), sob ameaça de “gerar consequências negativas em nível internacional”
(15)
Esta chantagem,
apenas agora, revelada, resulta da participação ativa dos Estados Unidos nos
eventos recentes que sacodem a Venezuela. Em resposta, o presidente Maduro
decide expulsar do país três diplomatas norte-americanos, por sua participação
ativa no financiamento e formação de estudantes em técnicas de golpe de Estado soft(16).
Na nebulosa de
informações sobre a situação atual, manipulações mediáticas grosseiras tentam
legitimar o discurso da oposição, que fala de tortura e de repressão sangrenta
por parte do governo. Este ciberataque é, sobretudo, um meio de desacreditar a
Venezuela em plano internacional, de agitar os espíritos dos partidários da
oposição, para gerar uma situação de ingovernabilidade.
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