Carvalho da Silva –
Jornal de Notícias, opinião
Nos seus diálogos,
conferências e escritos sobre o que é um povo, nas suas dimensões individual e
coletiva, e sobre os caminhos a encetar para ir construindo o futuro, José
Saramago criou e utilizou, inúmeras vezes, uma síntese extraordinária:
"Somos a memória que temos e a responsabilidade que assumimos. Sem memória
não existimos, sem responsabilidade talvez não mereçamos existir".
O dia 25 de Abril
de 2014 aproxima-se e o conjunto de iniciativas que se conhecem em torno da
evocação dos 40 anos de um dos acontecimentos mais marcantes da história de
Portugal, é, na minha opinião, pobre e desconexo, apesar de significativos
esforços que algumas organizações, instituições e forças políticas - as que não
se submetem - estão a desenvolver.
Abril foi liberdade
e soberania para os portugueses e para outros povos, foi a afirmação de
dignidade humana, de igualdade, de democracia vivida e instituída, foi dizer
não à guerra e ao belicismo, foi progresso social e cultural, foi desenvolvimento
efetivo da sociedade portuguesa. A Revolução de Abril foi tomada como exemplo
na Europa como noutras paragens do Mundo, como uma demonstração da capacidade
de um povo se libertar e concretizar profundas transformações progressistas da
sociedade de forma criativa, participada e pacífica.
Abril foi também
combate político aceso e duro. Exposição e gestão de muitas contradições
próprias da ação empreendedora dos seres humanos. Abril desafia-nos à afirmação
e não à subjugação da política: da participação do povo e do respeito pelo seu
poder soberano.
Há que tudo fazer
para não voltarmos ao tempo de um país de gente submetida, maltratada e
prisioneira num espaço que é o seu. O tempo de imensa pobreza de toda a ordem e
da vergonhosa exaltação da pobreza, de ausência de direito à saúde, ao ensino,
a condições de higiene ou de proteção social, não pode voltar.
Abril abriu enormes
portas. Acima de tudo, tocou os portugueses e portuguesas. Chamou-nos a todos,
novos e mais velhos, para uma participação coletiva capaz de mover montanhas.
Recordo-me das primeiras assembleias populares que começaram a acontecer na
minha aldeia e nas aldeias vizinhas, com a participação de militares e não só,
onde se discutia o que fazer. Participava toda a gente. Camponeses, que jamais
saíam de casa e do seu trabalho, para participar em qualquer ato coletivo que
não fosse a missa e, esporadicamente uma romaria, ali estavam expectantes e a
pensar como construir novos planos de vida.
A todos os que amam
a liberdade, a democracia e o progresso se impõe o desafio de dar contributos
para que a memória de Abril, a memória de um longo percurso coletivo de um
povo, não seja enxovalhada. No atual contexto em que vivemos, emerge a
responsabilidade de revitalizar o combate social e político que sustente novos
rumos para o país.
O Governo e os
partidos que o suportam são dominados por gente que abomina os valores
fundamentais do 25 de Abril. O seu apego à democracia é apenas o inerente à sua
condição de parasitas da democracia. Sugá-la-ão até a secarem, se lhes for dado
tempo para executar a tarefa. Hoje, tudo o que foi construção coletiva para o
todo da sociedade está a ser destruído e individualmente cada português e cada
família ficam mais pobres, mais isolados e desprotegidos.
Temos um presidente
da República que coloca como referência maior do percurso destes 40 anos de
democracia a "presença" de Portugal na Europa, escamoteando o facto
de termos um país a caminhar para o amorfismo e a subjugação total, integrando
uma União Europeia (UE) cujo rumo descambou perigosamente e onde o cheiro a
enxofre vai aumentando. Neste Portugal concreto, primeiro fora da UE e depois
integrado, foi a concretização de valores de Abril que nos permitiu alcançar
níveis elevados de desenvolvimento humano em áreas vitais.
Sem populismos, com
humildade e respeito recíproco, as forças progressistas e os democratas deste
país têm de começar a instabilizar as suas consciências. É possível fazer
frente a estes bloqueios, correr com esta política e com estes governantes.
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