Pedro Marques Lopes
– Diário de Notícias, opinião
O Governo vai levar
a cabo um sorteio semanal. Podem concorrer ao prémio, um carro de alta
cilindrada, todos os consumidores que peçam fatura com número de identificação
fiscal.
O objetivo, como
não escapará a ninguém, será obter mais receita fiscal. Poucos duvidarão de que
os resultados a curto prazo serão muito satisfatórios: a possibilidade de
ganhar um prémio sem o mínimo de esforço é, à partida, receita comprovada.
Teríamos então um
caso de uma medida que não correria o risco de ser contestada, que não seria
mais que um bom ato de gestão. É absolutamente claro que é preciso mais
repressão sobre quem foge aos impostos, é preciso dar mais meios à autoridade
fiscal, são fundamentais medidas que promovam a cidadania fiscal; já existem
várias (deduções, incentivos fiscais são alguns exemplos) e outras inovadoras
serão sempre de aplaudir.
Só que, de facto,
este concurso é muito mais do que um incentivo, uma ação de sensibilização, uma
medida dentro da lógica do sistema: é uma verdadeira medida icónica, uma
atitude que revela um certo entendimento da comunidade ou uma visão do que se
pensa ser o sentir dessa mesma comunidade - claro está que com este Governo
nunca podemos pôr de lado a simples incompetência ou a ignorância sobre as
consequências dos seus atos.
Parte-se do
princípio de que a maneira de levar o cidadão a ajudar a que outros cumpram as
suas obrigações fiscais ou, em termos mais simples, ele próprio as cumprir é
oferecer-lhe a possibilidade de ter um carro. Não um carro qualquer, um de alta
cilindrada. Nitidamente vendido como um símbolo do que qualquer cidadão
gostaria de ter. Um símbolo de sucesso individual.
Assume-se que o
cidadão pede fatura ou paga os seus impostos não porque quer um bom serviço de
saúde, melhores escolas, melhores estradas, melhores serviços públicos,
melhores funcionários, menos carga fiscal por todos pagarem. Nada disso, o
Estado desiste dessa mensagem e vende o "cada um por si". A consciência
da defesa do bem--estar do outro, o valor do bem comum, a pedagogia do melhor
para a comunidade é trocada pelo sonho da propriedade de um carro de "gama
alta".
Não vale tudo para
se obter mais receita fiscal, não vale tudo para temos menos défice, não vale
tudo para se poder pagar à troika. Não vale, sobretudo, perder valores e
princípios fundamentais da comunidade. Por muito dinheiro que conseguíssemos
obter, não seria legítimo vender os Jerónimos ou premiar as pessoas que
atropelassem incumpridores fiscais. Os fins não justificam os meios. Mas não
são apenas essas propostas absurdas que não são legítimas. As aparentemente
inócuas são as mais perigosas. As que ajudam a construir mentalidades. As que,
de mansinho, destroem pilares que julgávamos enraizados. E não é a mentalidade
do "cada um por si" que é a dominante, não é aquela em que
acreditamos como comunidade. Podemos ficar revoltados por pagarmos demasiados
impostos, podemos achar que são mal aplicados, mas isso é outra história. Basta
ver os estudos de opinião e o que tem sido o voto dos portugueses, para se
saber da rejeição do modelo em que o Estado pouco ou nada garante - é bom
lembrar que o programa que está a ser aplicado não foi proposto aos eleitores.
E, claro, não seremos tão estúpidos ao ponto de não saber que o dinheiro tem de
vir da nossa contribuição. Equilibrada e bem explicada, bem entendido.
Este sorteio poderá
ser um sucesso pontual para o Governo, mas ajudará a fazer ruir a comunidade
como a vemos. Pensar que é um Governo liderado por um partido que se intitula
social-democrata que toma uma medida destas é, no mínimo, surpreendente. Um
partido social-democrata olhar para o interesse da comu- nidade como uma
eventual consequência de uma medida ultraindividualista é de bradar aos céus.
Ideologia? Falta de
consciência da dimensão da decisão? Parece uma medida claramente imbuída de uma
certa visão da comunidade que amedronta. Como otimista que sou, preferiria que
fosse apenas pouquíssima reflexão. Se assim for talvez fosse bom entender que
há decisões que, por muito necessárias e úteis que sejam no imediato, podem ser
altamente danosas no futuro. E quem governa não pode apenas pensar no presente
e no futuro próximo, tem de ter consciência do passado, do futuro da comunidade
e dos valores em que ela acredita e quer manter.
Revoluções
escondidas ou disfarçadas não, por favor.
Na foto: Pasos num automóvel topo de gama
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