Baptista-Bastos –
Diário de Notícias, opinião
Nas celebrações dos
500 anos das Misericórdias, as televisões filmaram o ministro Pedro Mota
Soares, compungido e piedoso, a assistir à liturgia na igreja de Castelo
Branco. Um momento de estremecida devoção. Nas orações que acompanhou,
afeiçoado de dó e ungido de evidente santidade, o ministro Mota persignou-se,
genuflectiu, beijou a mão, tomou a hóstia, certamente pedindo perdão ao Criador
pelas malfeitorias infligidas ao mundo dos que trabalham ou que trabalharam.
Nós.
O ministro Mota
denuncia um rosto de santo de altar, atormentado e macerado, como convém à
clemência exposta. O ministro Mota não é uma criatura de Deus: é um adjectivo.
Diz-se militante do CDS, mas não propende para "democrata-cristão",
tendo em conta a violência dos decretos que assina. Será, quando muito, um
servente do ideário neoliberal, que tem desgraçado o País e destruído o que de
melhor a pátria possui: a história e a juventude. Depois, pelo que se ouve e
diz, vai às missas de domingo, acaso pedir as bênçãos do céu e a absolvição a
Jesus.
Que têm a ver as
práticas governativas do CDS com a compaixão subjacente ao catolicismo, de que
aquele partido se diz estrénuo paladino? Este farisaísmo repartido entre os
infames cometimentos de segunda a sexta-feira, e as práticas religiosas como
salvação apaziguadora devolvem-nos a imagem de quem está no poder, e se diz
católico. Haja Deus e haja Freud!
Talvez Freud seja a
explicação mais recomendável para se entender esta corja de hipócritas que
invadiu os territórios da decência e transformou o embuste em culto. Talvez.
Deus, como precaução de celestes bonanças, serve de ocorrência momentânea, não
como devoção e crença.
A repugnante cena
de Mota na igreja fez-me recordar um poema de Guerra Junqueiro, recolhido em A
Velhice do Padre Eterno, que cito de cor, pelo que me desculpo de qualquer
incorrecção: "No meio de uma feira / uns poucos de palhaços / andavam a
mostrar/ em cima de um jumento / um aborto infeliz/ sem mãos, sem pés, sem
braços/ aborto que lhes dava um grande rendimento. / E o monstro arregalava /
uns grandes olhos baços / e sem entendimento. / Ao ver esse quadro, apóstolos
romanos/ funâmbulos da cruz/ eu lembrei-me de vós / hipócratas, devassos / que
andais pelo universo/ há mil e tantos anos/ exibindo e explorando o corpo de
Jesus."
Em Os Irmãos
Karamazov, o mais velho deles afirma: "Se Deus não existe, tudo é
permitido." Deus existe mesmo para esta súcia que tripudia na política e
no espírito, no amor pelos outros, na consciência e na fé, com desenvolto
desprezo?
Atingimos o grau
zero da ignomínia. Socorro.
Por decisão
pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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