Miguel Gaspar – Público, opinião
A presunção de
importância dos actores políticos é uma constante, da direita à esquerda.
Portanto, está tudo
a correr bem. Pelo melhor. As exportações correm sobre rodas, as emissões de
dívida são um êxito. Prossegue a onda de entusiasmo. Como um missionário que
conduziu o rebanho pelo caminho das pedras, o primeiro-ministro vê chegar a
terra da abundância que nos é oferecida após a purificação.
Com um sorriso
cúmplice, o vice-primeiro-ministro já deixa escapar uma eventual baixa de
impostos em 2015. Tudo isto são exemplos de um problema que percorre o tecido
político português de um extremo ao outro. Esse problema é a presunção de
importância. Se na justiça a inocência se deve presumir até prova em contrário,
na vida normal devemos ter o cuidado de não nos presumirmos demasiado
importantes. Na política portuguesa é ao contrário. Da maioria que festeja a
redenção do país pela austeridade à esquerda que se esfarela até ao infinito em
busca da unidade sacrossanta, todos se presumem pessoas absolutamente
indispensáveis, sem os quais a Terra estacionaria na sua órbita, como uma obra
embargada.
Portanto, tudo
parece estar a correr bem. A entrar nos eixos. A ilusão é parte da presunção de
importância. E o que acontece se olharmos mais de perto? As exportações, por
exemplo, crescem, mas olhá-las à lupa não vai tranquilizar-nos. As exportações
de combustíveis (que são importados antes de serem refinados e exportados)
ocupam uma parte de leão. Com a economia a reanimar, as importações começam a
crescer, mesmo que pouco, pondo em xeque o equilíbrio entre importações e
exportações, que era um dos sucessos da aplicação do memorando da troika.
Olhando sem incluir a euforia na contabilidade final, temos a impressão de que
tudo está mais ou menos na mesma. Ou seja, sim, as exportações crescem e isso é
bom e sinal de um tecido económico resiliente, mas não aconteceu nenhuma
mudança estrutural da economia. Quem constrói empresas sabe que está a
conseguir coisas apesar deles e não por causa deles. Não sofre de presunção de
importância.
A Terra move-se,
mas não é por magia. Às exportações somam-se as emissões de dívida bem-sucedidas.
Com elas a ilusão de que é possível saltar a etapa do programa cautelar e
correr o risco de uma saída do programa de ajustamento à irlandesa. Não convém
confundir coragem e desprezo com o risco. A solução corajosa é assumir que o
conforto de um programa cautelar salvaguarda o país de vários perigos,
incluindo ter mesmo de pedir um programa cautelar para o caso de a saída à
irlandesa correr mal. E porque é que a prudência parece não habitar os
espíritos deste Governo, após dois anos de sacrifícios? Fácil. Porque se espera
que o panache da saída limpa renda votos e que governar um ano sem as
restrições de um cautelar permita ao Governo avançar com as políticas
eleitoralistas que afirma querer banir para sempre. O Governo e os partidos que
o apoiam presumem-se mais importantes que o país. E, por causa disso, estão
dispostos a pôr em causa dois anos de sacrifícios.
Se olharmos para a
oposição, muda o discurso, mas não a desconexão com a realidade. António José
Seguro devia estar a dizer ao Governo que em nome do interesse nacional tem a
obrigação de se deixar de brincadeiras e seguir a rota do programa cautelar.
Mas no jogo do debate partidário, o líder do PS desenhou uma teia onde
“cautelar” e “resgate” são como que uma e a mesma coisa e onde só em caso de
saída limpa não acusará o Governo de fracasso na aplicação do programa de
ajustamento. Para Seguro, no entanto, o mais grave é a borrasca interna em
véspera das eleições europeias, nas quais tem a obrigação de esmagar a direita.
Essa borrasca é uma réplica silenciosa do chinfrim que se faz ouvir um pouco ao
lado, na curva do Bloco de Esquerda e derivados. Seguro corre sozinho sob os
olhos de antigos e supostos novos líderes; não há entendimento quanto ao cabeça
de lista e a discussão programática dentro do partido parece contaminada pelo
receio de parecer mal aos olhos da nebulosa da Aula Magna.
À esquerda, todos
se presumem sumamente importantes e indispensáveis. Em nome da unidade na
acção, a esquerda está a dissolver-se numa chuva de estrelas cadentes. Em vez
de consensos programáticos, procura uma ideia mítica de unidade. Mas a unidade
tornou-se uma querela em nome da qual todos divergem. Mais do que sobre
políticas, o debate é sobre imperativos morais nos quais cada um se apresenta
como mais purista do que o vizinho. Na farsa que é o debate entre o Bloco, o
Livre e o 3D, os dois últimos querem entrar a todo o custo na festa para a qual
não foram convidados (as eleições europeias). É a chamada convergência à força:
quem não quiser convergir leva!
Com a esquerda
paralisada por causa da suprema importância de cada um dos condóminos, a
direita pode dizer que tudo vai pelo melhor. Os eleitores não sabem o que a
esquerda está a discutir, mas sabem que são lutas fractricidas. O PS corre
contra si próprio e a esquerda bloquista e afim está a destruir-se a si mesma.
Sobra o PCP, que não sofre de presunção de importância. Talvez por presumirem
que importante é a história, que um dia lhes dará razão. Afinal de contas,
todos têm direito à sua ilusão.
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