Nuno Saraiva – Diário
de Notícias, opinião
Incrédulo com a
afirmação de que "todos os direitos das pessoas podem ser
referendados", vista de fugida na televisão, não resisti ao desabafo
instantâneo, através do Facebook. Instintivamente, escrevi: "O direito à justiça,
o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho e a um salário
digno, o direito à não discriminação sexual, racial, política, religiosa ou
qualquer outra. Isto para não falar no direito à vida. Tudo é, portanto,
referendável e, por consequência, alienável." E acrescentei, a concluir:
"Definitivamente, a imbecilidade não tem limites."
Minutos depois de
exteriorizado o desconforto, Hugo Soares, homem de leis porque advogado,
legislador porque deputado, líder da JSD e autor material da golpada que trava,
para já, a aprovação da coadoção por casais de pessoas do mesmo sexo,
"lamentava", na mesma rede social, a minha conclusão. Que a
interpretação era errada, que a frase por ele proferida estava fora do
"contexto" e que "se vir o debate, percebe que me estava a
referir à questão de o direito de minorias ser ou não objeto de
referendo", desafiando-me por isso a "perder cinco minutos" a
ouvir a discussão na íntegra. Foi o que fiz, ainda mais assustado com a defesa
da honra, quase eugénica, que acabara de ler.
Na ânsia de repor a
verdade, Hugo Soares acabou ainda mais atolado na sua argumentação e no seu
ideário. Portanto, na linha de raciocínio do chefe da Jota laranja, do que se
trata é, afinal, de poder referendar todos os direitos, mas... das minorias.
Por exemplo, levado à letra aquilo que Hugo Soares parece sugerir, Portugal,
Estado laico de maioria católica, poderia referendar o direito à existência de
uma minoria islâmica, judaica ou de outro qualquer credo. Por ventura,
poderíamos ser convocados a decidir se uma minoria imigrante tem o direito a
procurar emprego em Portugal quando há tantos portugueses sem trabalho. Ou,
até, barbárie das barbáries, que fosse plebiscitado o direito da minoria
homossexual a recorrer aos mesmos hospitais que a maioria heterossexual. Não se
trata de demagogia. É apenas a interpretação literal do argumentário
discriminatório de Hugo Soares.
Seguindo o
conselho, lá fui ouvir o debate. E fiquei aterrado. Já não falo da persistente
falta de respeito manifestada pelo Parlamento e pela democracia representativa,
porque essa ficou absolutamente clara no dia em que o jovem deputado passou um
atestado de menoridade a si próprio, enquanto eleito pelo povo, e tirou da
cartola o referendo sobre a coadoção, aprovada há vários meses em votação na
generalidade. O que me horrorizou foi a ignorância manifestada pelo líder da
JSD no que à Constituição da República diz respeito e o desconhecimento face à
história dos direitos das minorias, desprezando que as maiores conquistas civilizacionais
da história da humanidade foram alcançadas, precisamente, porque não houve
referendos. Isto é, se o povo tivesse sido chamado a pronunciar-se sobre o fim
da segregação racial nos Estados Unidos, muito provavelmente ela não teria
acabado. Se o direito das mulheres a votar tivesse sido submetido a consulta
popular, talvez não tivesse sido consagrado. Se a abolição da pena de morte em
Portugal, em que fomos, aliás, pioneiros, tivesse sido sujeita a referendo, é
provável que, no limite do absurdo, ainda hoje vigorasse. E por aí fora.
Os direitos
humanos, porque é disso que se trata, não se referendam. Estabelecem-se,
respeitam-se e desenvolvem-se e não podem estar à mercê das ditaduras da
maioria. E os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não são,
constitucionalmente, revisíveis.
Dito isto,
considero que devo um pedido de desculpas ao dr. Hugo Soares. Na verdade, a
afirmação sobre referendar direitos e posterior explicação não é uma
imbecilidade, como abusivamente a classifiquei. É, isso sim, uma
monstruosidade, uma enormidade, uma barbaridade, uma aberração, uma aleivosia,
comparável ao ato de sabotar a proteção de direitos a famílias já constituídas.
Talvez se
questionem sobre a razão que me leva a "perder cinco minutos" a
escrever sobre esta figura aparentemente menor. Hugo Soares, desenganem-se, não
é personagem de somenos. Tem já, desde logo, o poder de legislar. Num tempo em
que cada vez mais o acesso à política parece reservado e circunscrito a quem
faz carreira a partir das juventudes partidárias - vejam-se os casos do atual
primeiro-ministro e do líder do maior partido da oposição - determinará a ordem
natural das coisas que, um dia destes, o dr. Hugo Soares possa ascender a um
lugar de maior peso e relevância. E, à luz do pensamento que até agora lhe conhecemos,
será esse o momento para termos medo. Muito medo.
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