domingo, 2 de fevereiro de 2014

Portugal: TENHAM MEDO, MUITO MEDO

 


Nuno Saraiva – Diário de Notícias, opinião
 
Incrédulo com a afirmação de que "todos os direitos das pessoas podem ser referendados", vista de fugida na televisão, não resisti ao desabafo instantâneo, através do Facebook. Instintivamente, escrevi: "O direito à justiça, o direito à saúde, o direito à educação, o direito ao trabalho e a um salário digno, o direito à não discriminação sexual, racial, política, religiosa ou qualquer outra. Isto para não falar no direito à vida. Tudo é, portanto, referendável e, por consequência, alienável." E acrescentei, a concluir: "Definitivamente, a imbecilidade não tem limites."
 
Minutos depois de exteriorizado o desconforto, Hugo Soares, homem de leis porque advogado, legislador porque deputado, líder da JSD e autor material da golpada que trava, para já, a aprovação da coadoção por casais de pessoas do mesmo sexo, "lamentava", na mesma rede social, a minha conclusão. Que a interpretação era errada, que a frase por ele proferida estava fora do "contexto" e que "se vir o debate, percebe que me estava a referir à questão de o direito de minorias ser ou não objeto de referendo", desafiando-me por isso a "perder cinco minutos" a ouvir a discussão na íntegra. Foi o que fiz, ainda mais assustado com a defesa da honra, quase eugénica, que acabara de ler.
 
Na ânsia de repor a verdade, Hugo Soares acabou ainda mais atolado na sua argumentação e no seu ideário. Portanto, na linha de raciocínio do chefe da Jota laranja, do que se trata é, afinal, de poder referendar todos os direitos, mas... das minorias. Por exemplo, levado à letra aquilo que Hugo Soares parece sugerir, Portugal, Estado laico de maioria católica, poderia referendar o direito à existência de uma minoria islâmica, judaica ou de outro qualquer credo. Por ventura, poderíamos ser convocados a decidir se uma minoria imigrante tem o direito a procurar emprego em Portugal quando há tantos portugueses sem trabalho. Ou, até, barbárie das barbáries, que fosse plebiscitado o direito da minoria homossexual a recorrer aos mesmos hospitais que a maioria heterossexual. Não se trata de demagogia. É apenas a interpretação literal do argumentário discriminatório de Hugo Soares.
 
Seguindo o conselho, lá fui ouvir o debate. E fiquei aterrado. Já não falo da persistente falta de respeito manifestada pelo Parlamento e pela democracia representativa, porque essa ficou absolutamente clara no dia em que o jovem deputado passou um atestado de menoridade a si próprio, enquanto eleito pelo povo, e tirou da cartola o referendo sobre a coadoção, aprovada há vários meses em votação na generalidade. O que me horrorizou foi a ignorância manifestada pelo líder da JSD no que à Constituição da República diz respeito e o desconhecimento face à história dos direitos das minorias, desprezando que as maiores conquistas civilizacionais da história da humanidade foram alcançadas, precisamente, porque não houve referendos. Isto é, se o povo tivesse sido chamado a pronunciar-se sobre o fim da segregação racial nos Estados Unidos, muito provavelmente ela não teria acabado. Se o direito das mulheres a votar tivesse sido submetido a consulta popular, talvez não tivesse sido consagrado. Se a abolição da pena de morte em Portugal, em que fomos, aliás, pioneiros, tivesse sido sujeita a referendo, é provável que, no limite do absurdo, ainda hoje vigorasse. E por aí fora.
 
Os direitos humanos, porque é disso que se trata, não se referendam. Estabelecem-se, respeitam-se e desenvolvem-se e não podem estar à mercê das ditaduras da maioria. E os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não são, constitucionalmente, revisíveis.
 
Dito isto, considero que devo um pedido de desculpas ao dr. Hugo Soares. Na verdade, a afirmação sobre referendar direitos e posterior explicação não é uma imbecilidade, como abusivamente a classifiquei. É, isso sim, uma monstruosidade, uma enormidade, uma barbaridade, uma aberração, uma aleivosia, comparável ao ato de sabotar a proteção de direitos a famílias já constituídas.
 
Talvez se questionem sobre a razão que me leva a "perder cinco minutos" a escrever sobre esta figura aparentemente menor. Hugo Soares, desenganem-se, não é personagem de somenos. Tem já, desde logo, o poder de legislar. Num tempo em que cada vez mais o acesso à política parece reservado e circunscrito a quem faz carreira a partir das juventudes partidárias - vejam-se os casos do atual primeiro-ministro e do líder do maior partido da oposição - determinará a ordem natural das coisas que, um dia destes, o dr. Hugo Soares possa ascender a um lugar de maior peso e relevância. E, à luz do pensamento que até agora lhe conhecemos, será esse o momento para termos medo. Muito medo.
 

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