segunda-feira, 3 de março de 2014

A REVOLUÇÃO UCRANIANA E O REGRESSO DOS FANTASMAS



Tomás Vasques – jornal i, opinião

Os governos europeus perderam, com a Ucrânia, qualquer credibilidade para condenar "manifestações violentas contra o poder legitimado pelo voto"

Os acontecimentos recentes na Ucrânia, em tempos de profunda crise na Europa, remetem para disputas fronteiriças passadas, histórias de interesses com mais de um século, entre a Alemanha e a Rússia, que conduziram o velho continente à barbárie e a sofrimentos inenarráveis por mais de uma vez. Nunca é de mais lembrar que uma fagulha pode incendiar uma pradaria, sobretudo quando o vento sopra de feição. Nem esquecer que, na Europa, a barbárie não é uma coisa de um passado remoto, como se viu nos Balcãs durante o desmembramento da Jugoslávia, há 20 anos.

Em pouco mais de uma semana assistimos ao eterno retorno às ameaças de guerra na Europa, com as mesmas raízes que muitos, por distracção, julgavam secas. Tudo se repete com a mesma hipocrisia política e os mesmos tiques de sempre. Curiosamente, vimos governos da União Europeia apoiarem sem reservas as manifestações e a revolta dos ucranianos contra um presidente formalmente legítimo, eleito democraticamente, como comprovaram observadores e organizações internacionais como a OSCE. A revolta dos ucranianos é legítima, mas ver os mesmos governos da União Europeia que, nos seus países, reprimem violentamente qualquer manifestação que saia dos parâmetros decorativos aceites, como foi o caso, entre nós, da carga policial desmedida nas escadarias de São Bento quando uma centena de manifestantes apedrejou a polícia, brada aos céus. Estes governos perderam qualquer credibilidade para condenar "manifestações violentas contra o poder legitimado pelo voto".

Mas também vimos os velhos amigos da Mãe Rússia, quando ostentava a designação de União Soviética, apoiarem a repressão sangrenta de milhares de manifestantes por um presidente e um governo corruptos, que mandaram disparar sem dó nem piedade sobre a população, com o argumento de que a revolta era chefiada por "fascistas e nazis". Nem o primeiro- secretário do Comité Central do Partido Comunista da Ucrânia, Piotr Simonenko, chegou a tanto, quando escreveu, após a fuga de Yanukovitch: "A participação de grandes massas de pessoas reflecte o profundo descontentamento na sociedade com o regime político de Yanukovitch e do seu círculo, que governou o país de forma inepta, enganando as pessoas." Esta esquerda, órfão da "pátria do socialismo", reage por "reflexo condicionado" pró-russo, como se Vladimir Putin oferecesse ao povo ucraniano o paraíso na Terra. Por esta via, perdem qualquer autoridade para condenar a repressão policial em qualquer país da União Europeia.

Nesta linha, os mesmos que dão apoio ao novo governo de Kiev, saído das manifestações de rua, rejeitam a legitimidade do novo primeiro-ministro da Crimeia, nomeado, nestes dias turbulentos, em circunstâncias similares, o qual é reconhecido e apoiado por quem não reconhece legitimidade ao novo governo de Kiev.

O que se está a passar na Ucrânia, com consequências ainda imprevisíveis mas que é já um foco de guerra na Europa entre o "Ocidente" e a Rússia, tanto é a revolta legítima de um povo maltratado e espancado como uma disputa imperialista pela hegemonia de um país apetecível pelas suas riquezas. E essa justa revolta do povo ucraniano não deve ser vista como "boa" ou "má", conforme se tome partido por um lado ou outro na disputa imperialista.

PS - Não se deve esquecer que continua actual a conclusão de Clausewitz, há quase duzentos anos: "A guerra é a continuação da política por outros meios." Não foi por acaso que Karl Marx se agarrou a esta frase, e numa carta dirigida a Engels o aconselha a ler o livro "Da Guerra" do general prussiano, leitura que Lenine também não dispensou no seu exílio em Genebra, onde elaborou um conjunto de notas sobre o livro. E se é verdade que revolução e guerra entre nações estão intimamente ligadas, como se provou em cada uma das duas guerras mundiais, não é menos verdade que não faz sentido desejar os horrores de uma nova guerra e uma intervenção militar russa para, no final, ver um qualquer outro Gorbachov a vender malas Vuitton.

Jurista, escreve à segunda-feira

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