Tomás Vasques –
jornal i, opinião
Os governos
europeus perderam, com a Ucrânia, qualquer credibilidade para condenar
"manifestações violentas contra o poder legitimado pelo voto"
Os acontecimentos
recentes na Ucrânia, em tempos de profunda crise na Europa, remetem para
disputas fronteiriças passadas, histórias de interesses com mais de um século,
entre a Alemanha e a Rússia, que conduziram o velho continente à barbárie e a
sofrimentos inenarráveis por mais de uma vez. Nunca é de mais lembrar que uma
fagulha pode incendiar uma pradaria, sobretudo quando o vento sopra de feição.
Nem esquecer que, na Europa, a barbárie não é uma coisa de um passado remoto,
como se viu nos Balcãs durante o desmembramento da Jugoslávia, há 20 anos.
Em pouco mais de
uma semana assistimos ao eterno retorno às ameaças de guerra na Europa, com as
mesmas raízes que muitos, por distracção, julgavam secas. Tudo se repete com a
mesma hipocrisia política e os mesmos tiques de sempre. Curiosamente, vimos
governos da União Europeia apoiarem sem reservas as manifestações e a revolta
dos ucranianos contra um presidente formalmente legítimo, eleito
democraticamente, como comprovaram observadores e organizações internacionais
como a OSCE. A revolta dos ucranianos é legítima, mas ver os mesmos governos da
União Europeia que, nos seus países, reprimem violentamente qualquer
manifestação que saia dos parâmetros decorativos aceites, como foi o caso,
entre nós, da carga policial desmedida nas escadarias de São Bento quando uma
centena de manifestantes apedrejou a polícia, brada aos céus. Estes governos
perderam qualquer credibilidade para condenar "manifestações violentas
contra o poder legitimado pelo voto".
Mas também vimos os
velhos amigos da Mãe Rússia, quando ostentava a designação de União Soviética,
apoiarem a repressão sangrenta de milhares de manifestantes por um presidente e
um governo corruptos, que mandaram disparar sem dó nem piedade sobre a
população, com o argumento de que a revolta era chefiada por "fascistas e
nazis". Nem o primeiro- secretário do Comité Central do Partido Comunista
da Ucrânia, Piotr Simonenko, chegou a tanto, quando escreveu, após a fuga de
Yanukovitch: "A participação de grandes massas de pessoas reflecte o
profundo descontentamento na sociedade com o regime político de Yanukovitch e
do seu círculo, que governou o país de forma inepta, enganando as
pessoas." Esta esquerda, órfão da "pátria do socialismo", reage
por "reflexo condicionado" pró-russo, como se Vladimir Putin
oferecesse ao povo ucraniano o paraíso na Terra. Por esta via, perdem qualquer
autoridade para condenar a repressão policial em qualquer país da União
Europeia.
Nesta linha, os
mesmos que dão apoio ao novo governo de Kiev, saído das manifestações de rua,
rejeitam a legitimidade do novo primeiro-ministro da Crimeia, nomeado, nestes
dias turbulentos, em circunstâncias similares, o qual é reconhecido e apoiado
por quem não reconhece legitimidade ao novo governo de Kiev.
O que se está a
passar na Ucrânia, com consequências ainda imprevisíveis mas que é já um foco
de guerra na Europa entre o "Ocidente" e a Rússia, tanto é a revolta
legítima de um povo maltratado e espancado como uma disputa imperialista pela
hegemonia de um país apetecível pelas suas riquezas. E essa justa revolta do
povo ucraniano não deve ser vista como "boa" ou "má",
conforme se tome partido por um lado ou outro na disputa imperialista.
PS - Não se deve
esquecer que continua actual a conclusão de Clausewitz, há quase duzentos anos:
"A guerra é a continuação da política por outros meios." Não foi por
acaso que Karl Marx se agarrou a esta frase, e numa carta dirigida a Engels o
aconselha a ler o livro "Da Guerra" do general prussiano, leitura que
Lenine também não dispensou no seu exílio em Genebra, onde elaborou um conjunto
de notas sobre o livro. E se é verdade que revolução e guerra entre nações
estão intimamente ligadas, como se provou em cada uma das duas guerras
mundiais, não é menos verdade que não faz sentido desejar os horrores de uma
nova guerra e uma intervenção militar russa para, no final, ver um qualquer
outro Gorbachov a vender malas Vuitton.
Jurista, escreve à
segunda-feira
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