Martinho Júnior,
Luanda
1 – A Ucrânia está
a ser um dos episódios inscritos na história da longa disputa sobre as riquezas
naturais do planeta, tal qual acontece neste momento com o episódio corrente da
Venezuela.
As disputas existem
a partir do momento em que se consumou a Revolução Industrial e o homem começou
a utilizar armas de cada vez maior alcance e poder de destruição; aqueles que
mais armas, mais sofisticadas e de maior poder destrutivo tinham, que ganhavam as guerras, passaram a deter a tendência para o exercício do poder, primeiro regional, depois global.
Se tal aconteceu
com o poder militar, acabou também por acontecer com o poder da inteligência.
Durante a evolução
da competição houveram conflitos longos e sangrentos que foram alastrando por
todo o globo, conforme as duas Guerras Mundiais que ocorreram na 1ª metade do
século XX e a miríade de conflitos que foram forjados quase sempre pelo império
anglo-saxónico em sua ascensão e ânsia de hegemonia, sob o impulso da aristocracia financeira mundial, dos seus bancos, dos seus poderosos consórcios
e dos seus cartéis, surgidos à medida que a acumulação de poder e riqueza foi
sendo construída à custa de outros.
Nos alvores dessa
profunda alteração global que foi a Revolução Industrial, marcando a passagem
entre os poderes feudais e os poderes da burguesia nascente, por ironia da
história há como referência a Guerra da Crimeia cujos episódios mais sensíveis
ocorreram entre 1853 e 1855.
A Guerra da Crimeia
do século XIX, introduziu novas armas criadas pela industrialização e a adopção
de novas tecnologias, no quadro da Revolução Industrial, que foram decisivas às
vitórias da coligação anglo-francesa sobre as tropas da monarquia russa.
O episódio
localizado de confrontação, marcou uma época de transição, entre a invasão de
Napoleão Bonaparte à Rússia e a Iª Guerra Mundial.
Enquanto a nascente
burguesia industrial da Europa Ocidental se assumiu, sem ser necessário
derrubar sequer a monarquia (caso da Grã Bretanha, em que a monarquia se aliou a
ela), na Rússia imperava um poder monárquico despótico, feudal e com uma incipiente burguesia comercial…
As disputas contemporâneas, no rescaldo dos processos que foram desencadeados a partir da
Revolução Industrial, recaem agora com maior ênfase em relação ao petróleo e ao
gás (em função do incremento no uso de motores de combustão) e sofreram uma
maior evidência após o fim do bloco socialista, a implosão da União Soviética e
a dissolução do Pacto de Varsóvia, fazendo parte dos procedimentos de
capitalismo neoliberal típicos da ofensiva da hegemonia do império sobre o
resto do mundo.
A perspectiva do
esgotamento do petróleo e do gás devido à sobre-exploração, não pode também ser
negligenciável e desde o início do século XXI que se entrou num período muito
difícil para toda a humanidade, em particular por causa das disputas que tendem
a ser cada vez maiores entre os principais interesses concentrados e em jogo.
Enquanto no
ocidente o capitalismo neoliberal determinou a fermentação de elites que têm
vindo a impor a ditadura do capital e a impulsionar as “revoluções coloridas” a
leste da Euro-Ásia, em consonância com os interesses hegemónicos do império
anglo-saxão, a Rússia experimentou no seu tecido sócio-político uma das
primeiras “revoluções coloridas” durante a era Gorbatchov-Ieltsin e logo após a
implosão da União Soviética, o que provocou o volte-face das oligarquias
nacionais que sacudiram os interesses estranhos das questões estratégicas,
aprontando a sua corrente opção.
O “cavalo de Tróia”
da Yukos e os seus mentores internos e internacionais (em nome da aristocracia
financeira mundial) tornaram-se os opositores ao poder do tandém
Putin-Medvedev, pelo que Mikhail Khodorkovsky, na presente situação, só podia
tornar-se no mais excepcional convidado da Praça Maidan e dos golpistas de
Kiev!
As oligarquias
ucranianas fojadas a partir da “Revolução Laranja” sabem-no e sabem também que
o alinhamento às oligarquia russas comportaria um estatuto condicional de
relativa dependência, pelo que preferem o agenciamento alemão e ocidental, uma
ideia propalada desde pelo menos há dez anos a esta parte… que deu espaço ao
surgimento dos ultra nacionalismos de cariz fascista e nazi!
Os acontecimentos
correntes na Ucrânia são assim uma radiografia das tensões sócio-políticas na
Ucrânia, mas também em relação aos interesses e fenómenos no quadro das
disputas globais correntes.
2 – A Ucrânia
independente tornou-se num país de dupla periferia política, económica e
financeira:
- Por um lado, da
União Europeia e da panóplia de interesses Atlânticos seus aliados (NATO incluída).
- Por outro da
Rússia, no rescaldo da implosão da União Soviética, mas com o poder sobre o
petróleo e o gás do seu lado, para além dos laços industriais e comerciais
tradicionais.
Em relação a
qualquer aglomerado de interesses a oeste e a leste, a periferia constituída na
Ucrânia. resultou numa dependência cada vez maior, sob o ponto de vista
geo-estratégico e energético, uma vez que Ucrânia passou a ser a fronteira entre
uma Rússia produtora e fornecedora de petróleo e de gás, face os compradores do
ocidente europeus.
O território ucraniano, tal como o da Polónia, passou a garantir a passagem dos oleodutos e gasodutos entre o fornecedor a oriente, (Rússia) e os compradores do ocidente,
(Europa), com todo o tipo de percalços que tal implica.
Esse jogo foi
rapidamente compreendido pela Alemanha que estabeleceu com a Rússia um gasoduto
submarino através do fundo do Mar Báltico, sem passar por terceiros
territórios… enquanto alinhava na formatação agenciada dos oligarcas polacos e
ucranianos.
Sob o ponto de
vista sócio-político essa dupla dependência tornou-se ainda mais sensível em
época de capitalismo neoliberal (União Europeia) e de capitalismo de estado
(Rússia): a oligarquia nacional ucraniana enriqueceu-se rapidamente e tornou-se
tanto no pivot das engrenagens políticas como nas disputas do poder
inclinando-se, a partir da “Revolução Laranja”, a favor dos compradores
ocidentais que a foram agenciando, ao ponto de agora até por via do oligarca ucraniano
do aço, Viktor Pinchuk, ficar tão próximo dos circuitos de Bill Clinton, um dos
mais proeminentes “rhodes scholarships” contemporâneos e um dos esteios do “lobby
dos minerais, democrata” aptos à junção ao “lobby do petróleo e do armamento,
republicano”!
A aristocracia
financeira mundial, tutora do império anglo-saxónico e de sua panóplia de
interesses coligados, gere os interesses a ocidente com fulcro na Alemanha e
encontra oposição na Rússia do capitalismo de estado e dos oligarcas apoiantes
do tandém Putin-Medevdev, a oriente: uma vez que a fronteira é na Ucrânia
duplamente periférica e geo-estrategicamente transversal, é a mercenária
oligarquia nacional ucraniana, cada vez mais manipulável pelo ocidente, que se
situa deliberadamente no eixo das disputas em curso.
3 – O jogo
sócio-político do império, Ucrânia adentro, arrastou consigo outros “recursos
humanos” só antes percebido no quadro das redes “stay behind” fomentadas de há
muito pela inteligênia da NATO.
Essas redes “stay
behind” tiraram partido do agenciamento de sectores fascistas e nazis
existentes na Ucrânia durante a IIª Guerra Mundial, que são hoje representados
por remanescentes ultra nacionalistas como o Svoboda e o Pravyi Sektor,
presentes no novo poder em Kiev em função de sua aliança com os oligarcas
pró-ocidentais fermentados a partir da “Revolução Laranja”.
O espectro
sócio-político ucraniano em época de eleições reflecte essa dicotomia de
dependências a oeste e a leste:
Quanto mais a oeste
(cidade de Lvov) mais apoiantes ultra nacionalistas, “pró ocidentais” e pró
Iulia Timochenko existem e quanto mais a leste (cidade de Donetz) mais
apoiantes “pró russos”, apesar do ocaso de Vikor Yanukovich…
Essa dicotomia é
reflexo também do estado da economia no quadro da dupla periferia:
Área rural a
ocidente, pobre e descapitalizada, área industrial localizada a oriente,
estratégica e umbilicalmente ligada à Rússia e por isso alvo da oligarquia
agenciada sobretudo pelos interesses da Alemanha.
Esse quadro é
acompanhado ainda pelo seguinte espectro humano: a maioria dos que falam
ucraniano estão a ocidente da transversal ucraniana e a maioria dos que se
expressam em russo (em função da geneologia), vivem a oriente e a sul, jnto à
costa do Mar Nego, tendo como “baluarte” a Crimeia.
A oligarquia
ucraniana estando a inclinar-se desde a eclosão da “Revolução Laranja” a
ocidente (a entidade melhor pagadora), gere como mercenária os outros extractos
sociais, tirando proveito das opções dos partidos por si criados, que estiveram
presentes na EuroMaidan e estão agora no poder em Kiev: o campo de manobra do
Partido Pátria, de Iúlia Timochenko atraiu os ultra nacionalistas ao “poder
transitório” (as eleições gerais presidenciais estão marcadas par 25 de Maio)
excluindo as sensibilidades representativas do leste, entre eles o Partido das
Regiões e, dada a natureza fascista e nazi do poder, o Partido Comunista da
Ucrânia!
Iúlia Timochenko é
ela mesmo um produto do jogo de interesses da Alemanha na Ucrânia: tornou-se
numa poderosa oligarca surgida da “Revolução Laranja”, que ocorreu em 2004, há
dez anos, o tempo suficiente para, com as possibilidades oferecidas pelo poder,
se tornar multi milionária…
Derrubado Victor
Yanukovich, o poder instalado em Kiev foi nomeno oligarcas para ficarem à
frente das regiões administrativas, deixando de lado os partidos, o que demonstra o carácter excluente da “transição”.
Esse poder
excluente indexado ao fascismo e aos nazis, feriu outras sensibilidades particularmente a leste, fazendo com isso subir a fasquia das tensões internas e
externas.
De certo modo esta
é uma reedição da conjuntura imediatamente anterior à Iª Guerra Mundial no que
diz respeito às disputas entre a Alemanha e a Rússia em relação à Ucrânia…
4 – A ascensão ao
poder na União Europeia por parte de sectores identificados com as oligarquias
nacionais, os grandes interesses financeiros e as políticas típicas de
capitalismo neoliberal, tendo a Alemanha como fulcro, está a acarretar não só
dispositivos que se reflectem em todos os componentes europeus, ainda que eles
estejam em crise (recordo os PIIGS), como também na “viragem à direita” na
Ucrânia, despoletada após a inclinação de Viktor Yanukovich em direcção à
Rússia, contrariando os outros oligarcas.
Os povos europeus
estão a sofrer as pressões, manipulações e contingências das políticas da austeridade impostas a partir da Alemanha e agora esse mesmo “modelo” está a ser
estendido à Ucrânia através das fórmulas mais perversas, características da
contra revolução liberal, com recurso a franjas da oligarquia ucraniana e no
eixo das manobras ocidentais… sacrificando as (pseudo)-liberdades de Maidan.
Os povos na Europa
estão a ser oprimidos pelos interesses da alta-finança Atlântica, num processo de autêntica ditadura do capital, mas a Rússia está a assumir uma contradição
difícil de transpor, até por que o capitalismo de estado russo tem permitido
fazer fluir os interesses dos poderosos oligarcas russos numa aliança singular
com outras classes que revitalizam o contexto emergente.
De facto, o
projecto de dividir a Federação Russa foi até agora neutralizado e o efeito
boomerang reflecte-se na elástica arquitectura da concorrência.
A titubeante
oligarquia ucraniana forjada com a “escola” da “Revolução Laranja” situa-se no
cerne da crise e esquece que apesar do poder mercenário, está longe de
conquistar a Ucrânia por inteiro, muito menos quando instrumentaliza fascismo e
nazismo.
O braço-de-ferro
entre o ocidente e o oriente na Ucrânia, disputando as rotas do petróleo e do
gás, como a região mineral e industrial do leste da Ucrânia, não só está longe
de ter acabado, como provavelmente ainda não provocou os seus mais dramáticos
episódios.
Os povos ficarem
subjugados a processos de exclusão, ao fascismo e ao nazismo, por imposição de
oligarquias nacionais sem escrúpulos ao ponto de se tornarem mercenárias, é
algo que será repelido pela sua evidente nocividade humana e sócio-política.
Esse é também um
sinal de desespero: se o fascismo pegou de estaca durante várias décadas no
Chile, o mesmo não acontecerá na Europa do Leste, com tradições anti-fascistas
assumidas historicamente durante toda a segunda metade do século XX.
Uma situação como
esta da Ucrânia, poderá provocar efeitos imprevisíveis que se espalharão, mais
tarde ou mais cedo e em cadeia por toda a Europa.
Para tal bastará
seguir o fluxo dos oleodutos e gasodutos transeuropeus e saídos da emergência
russa!
Luanda, 11 de Março
de 2014 - só agora (17/3) publicado por limitações de Página Global
Imagem: Exposição
dos oleodutos e gasodutos que atravessam a Ucrânia, fluindo de oriente para
ocidente.
Consultas:
. The Crimean war –
http://www.bbc.co.uk/history/british/victorians/crimea_01.shtml
. A crise na
Ucrânia: o que significa ser saqueado pelo ocidente – http://resistir.info/ucrania/roberts_25fev14.html
. Ucrania y las
opciones de Obama y Putin – http://blogs.publico.es/puntoyseguido/1445/ucrania-y-las-opciones-de-obama-y-putin/
. A Ucrânia e as
sanções económicas contra a Rússia – http://resistir.info/russia/katasonov_sancoes_06mar14_p.html
. EEUU e OTAN
planean desmantelar la Federacion Rusa – http://blogs.publico.es/puntoyseguido/1414/eeuu-y-la-otan-planean-desmantelar-la-federacion-rusa/
. Ukraine – How
Foreign Intervention is Tearing the Country Apart - http://www.globalresearch.ca/target-ukraine-how-foreign-intervention-is-tearing-the-country-apart/5371613
. William Engdahl
Exposes the Western Agenda in Ukraine - http://www.corbettreport.com/interview-830-william-engdahl-exposes-the-western-agenda-in-ukraine/
. Ukraine Coalition
Government is Putting the Armed Forces under Neo-Nazi Command. Speech of Ousted
President Viktor Yanukovych – Full transcript of the speech of Viktor
Yanukovych in Rostov-on-Don – http://www.globalresearch.ca/ukraine-coalition-government-is-putting-the-armed-forces-under-neo-nazi-command-speech-of-ousted-president-viktor-yanukovych/5372988
. L’axe de
l’espoir, de Pékin à Beyrouth, en passant par Moscou, Téhéran et Damas – http://www.voltairenet.org/article182570.html
. Des organisations
nazies font irruption sur la scène européenne - http://www.voltairenet.org/article182424.html
. Déclaration
dindépendance de la République autonome de Crimée et de Sébastopol – http://www.voltairenet.org/article182655.html
. RÚSSIA E CHINA EM
SINTONIA QUANTO À SITUAÇÃO NA UCRÂNIA – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/03/russia-e-china-em-sintonia-quanto.html
. Russia says Nato
pressure 'will not help stabilise the situation' – live – http://www.theguardian.com/world/2014/mar/03/ukraine-crisis-russia-control-crimea-live
. O dia seguinte na
Ucrânia – http://paginaglobal.blogspot.com/2014/02/o-dia-seguinte-na-ucrania.html
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