Eduardo
Oliveira Silva – jornal i, opinião
O
caso Daniel não é um exclusivo da Madeira e deve ser um alerta para a
degradação social portuguesa
Quando
foi noticiado o desaparecimento na Madeira do pequeno Daniel, levantaram-se
suspeitas quanto às circunstâncias que o envolviam, reforçadas pela estranha
forma como voltou a aparecer.
O
comportamento circunspecto da Judiciária e das outras entidades policiais deu
logo a entender que a história não estava bem contada.
A
recente detenção da mãe demonstra que este caso se reveste de uma gravidade
enorme, estando alegadamente em causa o seu envolvimento num rapto com
subsequente tentativa de venda da criança. Exactamente por isso não deixa de
gerar perplexidade a sua libertação quase imediata com escassas medidas de
coacção.
O
cenário do rapto para venda implica necessariamente uma teia de cumplicidades
de proximidade que permitisse tirar a criança da ilha, onde seria impossível
mantê-la sem ser detectada.
Como
se vê, este caso tem ainda muito por investigar até se perceberem os seus
contornos criminais, mas importa também e desde já olhar para duas questões que
vão para além dessa matéria, e essas têm a ver com a sua natureza social.
Comecemos pelo facto de ser possível em Portugal uma família inteira viver em
condições tão precárias e extremas de miséria como as que estão à vista através
das imagens televisivas, e que podem levar uma mãe a vender um filho. Não
interessa especialmente se é na Madeira ou noutro sítio, mas sempre se assinala
que o arquipélago é das regiões mais desenvolvidas e também com mais desigualdades
em Portugal.
O
caso social podia até não estar referenciado, mas a partir do desaparecimento e
das suspeitas não se percebe como foi possível que tudo se mantivesse
exactamente na mesma, sem que tenha havido diligências para alterar as circunstâncias
das crianças.
Em
Portugal há cada vez mais nichos de pobreza extrema. Essa miséria mistura-se
por vezes com uma degradação de valores morais facilitadora do desenvolvimento
de actividades sórdidas que chegam ao tráfico de pessoas, para não falar no de
drogas, no contrabando ou na prostituição, que a Europa vê agora contar para o
PIB, ou seja, para a soma da riqueza nacional.
Através
de casos destes comprova-se diariamente que a recuperação das contas
macroeconómicas não tem necessariamente repercussão positiva na vida das
pessoas. Pode até haver uma descida do desemprego que não seja mera engenharia
técnica, mas o facto é que há cada vez mais gente a recorrer às cantinas
sociais, enquanto com a aproximação do fim das aulas voltaremos a ver crianças
em situação de carência alimentar se não se mantiverem refeitórios abertos.
Dir-se-á
que situações como a da Madeira sempre ocorreram porque também sempre houve
casos de miséria extrema. É verdade. Mas também é verdade que em anos não muito
recuados os poderes públicos (mesmo os da justiça) tiveram muito mais
capacidade para resolver problemas-limite.
Hoje
não é assim. Há um abandono de grande parte da população excluída socialmente,
sejam crianças sejam velhos, e há cada vez menos instituições do Estado com
capacidade para intervir, por falta de gente, sensibilidade ou dinheiro.
Enquanto
o Estado desaparece, há felizmente algumas instituições de excepção, entre as
quais avulta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que em boa hora já
estendeu a sua acção a outras zonas do país.
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