Ana
Tomás – jornal i
Associações
e investigadores questionam fiabilidade dos novos métodos de contabilização e
criticam visão economicista destas actividades
Melhorar
as estimativas de cálculo do impacto que actividades como a prostituição, o
tráfico de droga ou o contrabando têm no produto interno bruto (PIB) é uma
tarefa complexa. Há quem tema mesmo que as recentes orientações do organismo de
estatística europeu, o Eurostat, para que os estados-membros da União Europeia
passem a incluir a partir de Setembro no seu PIB projecções sobre o peso dessas
actividades, não só não reflictam a realidade como conduzam a uma lógica
proibicionista e persecutória, em vez de relançarem o debate sobre a
regulamentação do trabalho sexual e das drogas leves.
O
sociólogo Bernardo Coelho, investigador do Centro de Investigação e Estudos de
Sociologia (CIES) e especialista na temática da prostituição, considera que
estas novas projecções, resultantes de simulações e hipóteses e com uma
representação estimada de 0,4% do PIB (676 milhões de euros), são um paradoxo,
uma vez que as regras do Eurostat passam a vigorar em países onde existem
políticas de criminalização da prostituição. "Fazer uma coisa sem fazer a
outra é completamente inaceitável", afirma em declarações ao i.
O
economista Filipe Garcia lembra que as regras de cálculo do PIB já contemplavam
a contabilização de actividades irregulares e ilegais e que o que se pretende
agora é melhorar os métodos estimativos para aferir o seu contributo para a
riqueza nacional. "Tudo o que possa contribuir para um cálculo mais
apurado do PIB é positivo", explica o economista da IMF - Informação de
Mercados Financeiros, embora reconheça que "a contabilização das
actividades denominadas ENO - Economia não observada - recorre a métodos
indirectos que agregam observação com pressupostos sobre a realidade". São
estes pressupostos que são questionados por Bernardo Coelho. "Como é que
uma actividade que é tratada como uma actividade subterrânea pode ser
contabilizada? Só pode ser contabilizada tendo por base os relatórios
policiais, dados oficiais, e a partir daí fazer uma estimativa estatística. Se
fizerem uma rusga e detiverem trabalhadores e clientes, vão contabilizando isso
e fazer alguma extrapolação do que seria de esperar da contribuição da
prostituição para a riqueza nacional. Aí está aberto o caminho é para um
aumento da repressão."
O
investigador refere que o que se está a desenhar é uma "lógica
abolicionista, proibicionista, criminalizadora da prostituição", desde
logo porque a prostituição aparece associada a actividades criminosas que nunca
vão ser legalizadas. "Podem estar aqui actividades como o tráfico de
armas, que nada têm a ver com a prostituição, ou outro tipo de actividades
ilegais, e é aí que ela é colocada", alerta.
Também
Joseph Silva, da Marcha Global da Marijuana Lisboa (MGM), organização que
defende a legalização da canábis, entende que esta nova metodologia representa
um cálculo "fictício" das contas públicas, já que o Estado não tem
instrumentos para contabilizar a riqueza gerada pelo tráfico. "Toda a
contabilidade que se vá fazer basear-se-á em estimativas, que não
corresponderão à totalidade da realidade mercado, simplesmente porque é um
mercado protegido pela clandestinidade." Para a MGM, estas orientações
reforçam ainda "o falhanço da política proibicionista" que tem vindo
a ser seguida pelo governo, mantendo o problema e conduzindo ao seu
agravamento.
Questionado
pelo i sobre se os novos cálculos poderão relançar, pelo menos, o
debate sobre a legalização das drogas leves, Joseph Silva mostra-se céptico,
mas ressalva que dependerá da forma como se analisarem estes resultados.
"Se olharmos para o contributo, com base nos resultado já obtidos para a
contabilidade nacional com o mercado ilegal e da projecção futura possível que
se poderá fazer já num mercado legal, e em que os resultados nos dirão que os
ganhos para a economia nacional serão maiores do que são agora, podemos dizer
que sim, que favorecerá a legalização". No entanto, ressalva que, se a
linha seguida politicamente fosse a de ganhos para o PIB através da
legalização, "não estaríamos a levantar esta questão, porque há muito que
já teria sido legalizado".
Ainda
que cauteloso, João Goulão, director do Serviço de Intervenção nos
Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), admite que esta nova forma
de contabilização possa relançar a discussão, sobretudo porque surge numa
altura em que começam a aparecer novos modelos regulamentares.
"Penso
que não é possível iludir esse debate neste momento. Até agora temos todos
funcionado num paradigma proibicionista e há experiências no Uruguai e em
alguns estados dos Estados Unidos em que se entra num paradigma de regulação.
Tal como outros países seguiram com muita atenção a experiência
descriminalizadora de Portugal, penso que é a nossa vez de acompanharmos essas
experiências, que estão a ensaiar uma nova via. Que resultados e impacto têm
nos níveis de consumo, nos problemas de saúde ocasionados por esse consumo, ao
nível da criminalidade e no possível arrecadar de receitas fiscais? É preciso
avaliar com rigor todas estas vertentes e talvez essas experiências possam vir
a ser inspiradoras para outros países", defende.
Já
no caso da prostituição, o modelo que começa a ressurgir é o da abolição da
actividade, com base na experiência do Norte, que assenta na criminalização dos
clientes e que inspirou a aprovação recente pelo Parlamento Europeu de uma
recomendação aos estados-membros no sentido de criminalizar a compra de
serviços sexuais a prostitutas com menos de 21 anos, que Portugal rejeitou. O
sociólogo considera que essa recomendação não previne o problema do tráfico nem
resolve o problema da exploração sexual como é advogado, considerando abusiva a
confusão entre as duas realidades e alertando para uma maior marginalização da
prostituição com esse tipo de medidas. "É essa a avaliação que se vai
fazendo da experiência, nomeadamente na Noruega, desde que foi implementada a
criminalização dos clientes. A prostituição perdeu visibilidade mas não
desapareceu. Significou perda de condições para quem se prostitui." Por
essa razão, a APDES, membro fundador da Rede sobre Trabalho Sexual, entende que
a inclusão desta actividade nos cálculos do PIB deveria "beneficiar a
transição do trabalho sexual para o mercado de trabalho formal, conferindo aos
trabalhadores do sexo direitos e deveres", e não reflectir apenas
"uma perspectiva simplista e desumana do fenómeno, por considerar apenas
dimensões financeiras".
"O
facto de se tratar de um mercado paralelo, remetido à marginalidade e à
invisibilidade, não permite estimar o número real ou aproximado de pessoas que
se movimentam neste sector e o seu consequente impacto económico. O
enquadramento legal do trabalho sexual deverá promover melhores condições
laborais e de vida e o acesso a direitos laborais por parte destas populações e
fornecer indicadores que permitam uma aproximação à real expressão do fenómeno,
como o número de trabalhadores, de clientes atendidos ou preços
praticados."
Bernardo
Coelho diz, por isso, que esta nova contabilidade do PIB vai afectar sobretudo
a prostituição de rua, por ser a mais exposta, e talvez algumas casas de
alterne. "Há toda uma panóplia de outras formas de prostituição que são
muito difíceis de contabilizar se a prostituição não for profissionalizada. O
que me preocupa mais nem é dificuldade metodológica do cálculo da prostituição
no PIB, é o que está por detrás, tratar isto como uma actividade ilegal e
criminosa. Por si só esta medida, que é uma medida estatística, não traz
abertura suficiente para que se possa pensar uma transformação do enquadramento
jurídico normativo da prostituição e se houver poderá ser no sentido da
criminalização do cliente", remata.
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