domingo, 20 de julho de 2014

Macau: DAR VISTOS A QUEM NÃO TEM DENTES



LEOCARDO – Hoje Macau - em Bairro do Oriente, opinião

Um grupo de residentes de Macau abriu recentemente na rede social Facebook um grupo onde manifesta a sua insatisfação pelo serviço de táxis no território, e convida quem tem tiver uma história relacionada com abusos cometidos por parte dos taxistas a partilhá-la. Alguns destes episódios relatados pelos utentes deste serviço são de deixar a boca aberta de espanto, e chegam a assumir contornos de filme de terror, tal é a prepotência e a ganância dos motoristas. A maior parte prende-se com indiferença perante mulheres grávidas, idosos, cidadãos diminuídos fisicamente ou quaisquer outros que não compense apanhar, pois não lhes vão pagar além do que é exigido por lei pela corrida, e preferem procurar quem lhes faça ganhar de uma assentada o turno de trabalho. A Direcção dos Serviços de Assuntos de Tráfego diz-se impotente para resolver o problema, e por mais fiscalização que se faça, os taxistas prevaricadores persistem na conduta, pois mesmo no caso de serem autuados, continua a ser “lucrativo” infringir a lei. Quando se pesa isto na balança e se chega à conclusão que vale mais a pena ser desonesto do que honesto, então estamos mesmo muito mal.

Tentando identificar a origem do problema, é comum ouvir dos residentes que a culpa é dos turistas da China continental, que mal chegados a Macau não se importam de pagar um montante à revelia do taxímetro, o único método efectivamente legal para determinar o preço da corrida. Em alguns casos não se importam de pagar 400 ou 500 patacas por um percurso que ficaria por menos de cem em circunstâncias normais, daí que os taxistas prefiram este tipo de clientes, pois em duas em três viagens fazem tanto como transportando 20 passageiros durante todo o tempo do turno. E não só no que diz respeito aos táxis os turistas do continente servem de desculpa; é por culpa deles que se torna quase impossível andar na rua, especialmente durante os fins-de-semana e feriados, são eles que esgotam das farmácias e supermercados o estoque de leite em pó das crianças, conhecido por “baby formula”, é por culpa sua que aumenta a criminalidade e disparam os preços dos bens de consumo. Puxando o fio à meada encontramos a principal causa de todo este chinfrim: a política dos vistos individuais, que a China implementou para as RAE de Macau e Hong Kong, e que permite que mais turistas da República Popular venham visitar os seus “compatriotas” deste lado, e com mais frequência.

Esta política dos vistos teve o seu início mais ou menos na altura em que o Executivo da RAEM decidiu liberalizar o sector do jogo, o que levou à entrada no mercado das concessionárias de Las Vegas – e em boa hora, pois com o aumento da oferta turística, era fundamental que se abrissem as portas à entrada de um grande número de visitantes. Esse número tem vindo a aumentar nos últimos anos, e tornou-se praticamente incomportável. Se em Hong Kong, com uma área muito maior, os residentes se queixam do excesso de turistas do continente, em Macau a situação é ainda mais grave, pois a juntar à exiguidade do território há ainda a escassez de recursos, que não dão resposta a um influxo de turistas desta dimensão. Mas se na RAEHK, praça financeira por excelência com capacidade para ser auto-suficiente, com ou sem vistos, em Macau é impensável dispensar esta modalidade, e todos ficam com os dedos cruzados para que a China não feche a “torneira”. No início as coisas até corriam de feição, pois o dinheiro ia entrando a magotes, mas se as pessoas acharam graça à novidade, cedo se aperceberam que pouco ou nada beneficiavam com isso – antes pelo contrário: com os que chegam para gastar dinheiro nas compras e nos casinos vêm também os vigaristas, carteiristas, assaltantes, prostitutas e outros amigos do alheio.

Entendo que exista um certo preconceito com os turistas do continente, sobretudo por razões culturais, mas não posso de todo concordar com esta culpabilização sem nexo. Se os táxis estão como estão, a culpa é sobretudo dos taxistas, que se comportam como maus profissionais. O que seria se no âmbito das minhas funções eu estivesse no serviço de atendimento ao público, e escolhesse quem queria atender? Os turistas vêm tratar da sua vida, talvez estejam habituados a este sistema, e com toda a certeza não têm em mente prejudicar os residentes de Macau. Falta leite em pó? Não chega? Manda-se vir mais, e do que estão à espera? Fossem fichas de casino, e já as tinham mandado vir “para ontem”. Prostitutas? Estas não obrigam ninguém a nada, e quanto a vigaristas, larápios, agiotas e afins, isso é da competência das autoridades policiais, e que eu saiba os que chegam de fora não estão a cobro de nenhum tipo de imunidade, e se forem apanhados têm que responder pelos seus crimes, como os de cá: a lei é igual para todos.

A política dos vistos individuais foi pensada no sentido de que todos beneficiassem dela: o Governo de Macau, que assim enche os cofres do erário público, a população, que deveria usufruir desses montantes, e os turistas, que assim ficam com mais liberdade de movimentos. Estes últimos fazem a sua parte, vindo até Macau, e a população recebo-os – que remédio – mas o que ganha com isso? Os tais cheques do “plano de comparticipação pecuniária” vão dando para pagar umas contas, mas começa a ser mais que evidente que não compensam que se sacrifique a sua qualidade de vida. Para o terceiro vértice deste triângulo, é até conveniente que se empurrem as responsabilidades para os turistas do continente, que são uma massa colectiva e anónima que ainda por cima nem tem acesso ao Facebook. Enquanto isto estes vão arrecadando as suas receitas, de acordo com o plano estabelecido, e pouco se importam que Macau seja actualmente o território da região Ásia-Pacífico onde é mais difícil apanhar um táxi. E para que se haviam de preocupar, se eles nem precisam de andar de táxi, ou a pé pelas vias congestionadas da cidade. Sim, essa é uma mentira em que fica mais fácil acreditar. Pelo menos desabafam.

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