Elena, Shajar, Yuri, Bianca e Bruno: eles romperam com o sionismo e apoiam a causa palestina – Fotos: Mikhail Frunze/Opera Mundi |
Patricia Dichtchekenian, São Paulo – Opera Mundi
Eles
não apoiam o Estado de Israel. Mesmo vindo de famílias judaicas tradicionais,
seus corações e mentes são solidários à causa palestina. Parentes e amigos
reagem com rancor, mas este grupo de jovens rechaça as crenças sionistas
Yuri
Haasz, Elena Judensnaider, Shajar Goldwaser, Bruno Huberman e Bianca Neumann
Marcossi gostam dos quadrinhos pró-palestinos de Joe Sacco e têm simpatia pelo
polêmico “A Invenção do Povo Judeu”, de Shlomo Sand. Aplaudem filmes como
“Lemon Tree” e documentários como “Defamation” ou “The Gate Keepers”,
narrativas críticas ao Estado de Israel.
Para
além de um repertório cultural pouco comum entre os judeus, os cinco chamaram
atenção quando se reuniram, no dia 8 de julho, junto com outros colegas, para
repudiar a ação militar de Israel na Faixa de Gaza. Diante do consulado desse
país em São Paulo ,
ergueram cartazes de protesto que horrorizaram parte da comunidade judaica.
Estes
jovens, em roda de conversa com Opera Mundi, relataram sua trajetória de
contestação ao sionismo e a reação que sua atitude provoca entre familiares.
Discutiram também o que é ser judeu no século 21, problematizando a proposta de
dois Estados para dois povos e repensando a própria existência de um lar
nacional judaico encarnado por Israel.
“Queremos
deixar claro, em nossa condição judaica, que não compactuamos com a opressão ao
povo palestino e o massacre de civis em Gaza”, afirma Yuri Haasz. “Israel não
atua em autodefesa, mas com a intenção de ocupação territorial, para
inviabilizar a criação de dois Estados.”
“Eu
queria entender a raiva dos palestinos”
Yuri
é o mais velho integrante deste recém criado grupo de jovens que romperam com o
sionismo. Nasceu na cidade israelense de Haifa, em 1971. Seus pais,
filhos de judeus imigrantes que escolheram viver no Brasil, tinham retornado a
Israel em 1967, a
bordo de um navio, porque acreditavam ter o dever de defender o país na guerra
então travada contra nações árabes. Quando chegaram, o conflito já tinha
acabado, após seis dias. Mas permaneceram até 1985, quando retornaram ao
Brasil.
Quando
estava em idade de serviço militar, Yuri repetiu o movimento dos pais. Voltou a
Israel por uma temporada e decidiu se alistar na Força Aérea. Era a época da
primeira Intifada, irrompida em 1987 e que se estenderia até 1993. Tinha muitos
pesadelos e, aos poucos, começou a se sentir atormentado pela escolha que
fizera, e decidiu retornar ao Brasil.
A
tensão árabe-israelense, porém, se já não o animava a pegar em armas,
continuava a ser de seu interesse como estudo, para entender sua lógica. “Li
muito dos novos historiadores israelenses, autores da sociologia crítica e
acadêmicos pós-sionistas”, relata. “Eu queria entender a raiva dos palestinos.
Fui encontrar essas explicações em escritores como Avi Shlaim, Ilan Pappe,
Benny Morris e Tom Segev, que descreviam a criação do Estado de Israel de forma
antagônica à narrativa nacionalista convencional, mostrando a expulsão dos
árabes de suas terras e o processo de limpeza étnica inerente à construção do
Estado judaico.”
Yuri
fez mestrado em
Relações Internacionais , decidido a estudar resoluções de
conflito. Foi parar em Tóquio, já casado com Sandra Caselato, uma brasileira goy (uma
não-judia, em hebraico). A bolsa incluía uma pesquisa de campo para passar seis
meses em Jerusalém e nos territórios palestinos ocupados na Cisjordânia.
“Foquei
minha pesquisa nos principais ativistas israelenses em ONGs de direitos
humanos que lutam por justiça social e histórica para os palestinos, e são
altamente críticas das políticas israelenses e como lidavam com sua educação
sionista padrão”, explica. “Alguns vinham de famílias religiosas ortodoxas,
outros de colônias nos territórios palestinos, e outros de famílias da esquerda
sionista, e quase todos tinham experiência militar. Viram absurdos que ocorriam
nos territórios palestinos, praticados pelas forças de segurança ou colonos
israelenses, e se sentiam em um conflito profundo entre tudo o que sua educação
os levou a acreditar, e a realidade em que se encontravam. Alguns entrevistados
confessaram tentativas de suicídio em meio à profunda confusão e depressão. Uma
situação dramática, na qual se perde a identidade que você sempre acreditou que
deveria ter.”
“O
problema de fundo é o sistema erguido pelo sionismo”
“Apesar
de não ser religioso, sou muito judeu”, brinca Shajar Goldwaser, de 21 anos.
Assim como Yuri, ele nasceu em
Israel. Mais precisamente, em Jerusalém. Aos
quatro meses, partiu para Buenos Aires e em 2001 chegou a São Paulo, sempre
frequentando escolas judaicas tradicionais. “Volto para Israel ao menos uma vez
por ano. Sempre falei hebraico em casa, é minha língua materna”, conta.
O
estudante de Relações Internacionais relata que um momento decisivo para sua
guinada crítica foi quando participou da Marcha da Vida, em 2011. Trata-se de
uma viagem de duas semanas que engloba colégios judaicos de todas as partes do
mundo com o intuito de conhecer antigos campos de concentração na Polônia e
destinos sagrados em Israel.
“Na
volta da viagem, a professora pediu para escrevermos uma redação e ‘A
hipocrisia judaica’ foi o título que dei a meu trabalho”, relata Goldwaser. “A
viagem me fez questionar se o sentimento dos palestinos não seria, atualmente,
o mesmo dos judeus naquela época.”
A
partir de suas reflexões acerca dessa experiência, Shajar começou a repensar o
papel de Israel. Militante do Dror, movimento juvenil sionista alinhado com
setores mais progressistas, seus questionamentos passaram a ir além de
questionar eventualmente politicas do governo israelense. “O problema de fundo
é o sistema erguido pelo sionismo, cujos resultados não podem ser diferentes
que a segregação e o colonialismo”, ressalta.
Saindo
do armário
“Falar
que deixou de ser sionista, na maioria dos ambientes judaicos, é como sair do
armário: você já sabe, sempre sentiu, mas quando fala para a família, é pura
tensão”, brinca a socióloga Elena Judensaider, de 22 anos.
Embora
tenha frequentado o clube Hebraica na infância, Elena se desligou da
instituição após a separação dos pais e se afastou da convivência com a
comunidade judaica. Por muito tempo manteve-se distante de qualquer discussão
sobre o tema Israel-Palestina.
“Sabia
que, se fosse enfrentar esta questão, iria me incomodar com suas contradições”,
relata Elena. “Um dia, porém, acordei assim, do nada, e decidi estudar esse
conflito – e meu trabalho de conclusão do curso foi sobre isso. Minha opinião
era clara: o Estado de Israel era a origem de tanto ódio e sofrimento do povo
palestino.” Lembra-se que não demorou a sofrer retaliações, na medida em que
começou a difundir suas opiniões críticas nas redes sociais.
“Uma
amiga de infância colocou mensagens em hebraico, no mural do meu Facebook”,
recorda. “Eram frases do tipo ‘você tem que morrer com esses terroristas’. Até
uma prima me ligou chorando e berrando que eu era antissemita.”
Sua
relação com a mãe, porém, passou por transformações positivas. “Nunca tínhamos
conversado a respeito de Israel”, conta Elena. “Quando eu passei a estudar
sobre o tema, ela via os filmes e lia os livros que eu deixava no meu quarto.
Um dia, escreveu em seu blog que, pelo exemplo da filha, tinha mudado a cabeça
em seis meses sobre temas que tinha acreditado por 40 anos.”
“Pra quê você foi para a Palestina?”
Ao
contrário de Elena, a professora de história Bianca Neumann Marcossi, de 25
anos, teve uma formação sionista forte. Após o suicídio da mãe e do pai, a
comunidade judaica foi um dos seus principais alicerces. “Aprendi na escola que
tinha que salvar Israel e tinha pesadelos com palestinos”, relata.
A
mudança viria ao ingressar no curso de história, na USP (Universidade de São
Paulo). O ambiente crítico às atitudes tomadas pelo governo de Israel foi um
verdadeiro choque. “Fiquei assustada. Ou eu estava no meio de antissemitas e
precisava sair dali ou era a ignorante e precisava estudar”, conta.
Durante
a formação universitária, Bianca descobriu um programa que tinha como objetivo
levar pessoas estrangeiras para passar uma temporada na Cisjordânia e reportar os
problemas da região para ONGs de direitos humanos. “Estar na Palestina mudou
tudo. Ficou tudo muito claro. Ver as leis da ocupação, as terras roubadas.
Sofri bastante”, suspira.
O
problema mesmo viria depois da excursão. Bianca dava, à época, aulas de História
Geral em um colégio judaico. Quando voltou da viagem aos territórios ocupados,
foi informada que tinha sido demitida. A direção da escola não lhe deu
satisfações sobre os motivos, mas descobriu que muitos pais pediram para ela
ser afastada. “Foi um choque muito grande quando voltei. Eu tinha tanto a
dizer, mas ninguém queria ouvir minhas histórias”, conta.
“Nem
vamos conversar que vai dar merda”
O
espaço para discutir sobre a vivência na região também afetou o jornalista e
mestre em
Relações Internacionais Bruno Huberman, de 26 anos. Ele conta
que em 2011 foi pela primeira vez a Israel por meio do Taglit, uma excursão de
10 dias organizada por entidades judaicas. “Foi uma imersão sionista, uma
lavagem cerebral”, classifica.
Huberman
aproveitou a viagem para fazer um especial sobre territórios palestinos para a
revista Carta Capital. “Foi o primeiro choque. Muitos primos me xingaram”,
conta. A tensão na família piorou depois do ato diante do consulado. “Fui ao
aniversário de uma priminha e minha tia já veio falando: ‘nem senta aqui, nem
vamos conversar que vai dar merda’.”
Como
a recusa ao sionismo é encarada como uma verdadeira subversão, situações como
essas com familiares e amigos fazem parte da rotina de Yuri, Shajar, Elena,
Bianca e de Bruno. “Eles não querem entrar em uma discussão sobre o conflito.
Se entrarmos em uma conversa mais profunda, nem sei aonde isso vai chegar”,
rebate Bruno.
Voz
dissidente
Aos
poucos estes cinco jovens judeus, ao lado de mais duas ou três dezenas de
outros colegas com trajetórias similares, foram se agrupando para estudar
coletivamente o tema e organizar sua participação no debate dentro da
comunidade.
O
primeiro espaço no qual se aglutinaram foi no Forum 18,
surpreendentemente incentivado pela B’nai B’rith, a mais antiga organização
sionista e dedicada a temas de direitos humanos. Disposta a enfrentar o debate
sobre um conflito que permeia a juventude judaica no Brasil, a entidade
resolveu abrir uma série de seminários que abrigassem as distintas narrativas
sobre Israel e a questão palestina. Incluindo os pontos de vista não-sionistas.
“Aqueles
que haviam rompido com o sionismo foram criando uma nova identidade, dissidente
da posição majoritária na comunidade”, explica Yuri Haasz. “Não nos definimos
por uma solução específica para o problema, ainda que sejamos favoráveis à
autodeterminação palestina. A verdade, porém, é que não acreditamos no
comprometimento de Israel com essa solução. Dentre as várias correntes que
existiram no início do movimento Sionista, a que se consolidou e deu forma ao
Estado foi a corrente que promove a exclusividade judaica, o expansionismo e a
colonização, e é contrária à existência de um Estado palestino. Muita gente se
assusta, mas essa situação nos faz entender claramente a resistência do povo
palestino.”
O
grupo não tem nome, mas se identifica com grupos como o Jewish Voice for Peace,
que nos EUA já conta com milhares de apoiadores da comunidade judaica. Vários
de seus integrantes trabalham em programas de educação focados em direitos
humanos, como a FFIPP (antiga
Faculty for Israeli-Palestinian Peace, renomeada como Educational Network for
Human Rights in Palestine/Israel). A associação organiza anualmente
estágios com ONGs de direitos humanos nos Territórios Palestinos Ocupados
e em Israel, para quem quiser conhecer de perto a realidade do conflito, a
partir de um roteiro que se desafia a narrativa oficial Israelense.
“Nós
trabalhamos e nos organizamos para denunciar os crimes cometidos pelo Estado de
Israel”, afirma Haasz. “Queremos que mais judeus possam enxergar o que se passa
e romper com os dogmas de sua formação, abrindo-se para a solidariedade
anticolonial com o povo palestino.”, e na busca por soluções na região que
atendam à dignidade de todos, tanto judeus quanto palestinos”.
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