sábado, 27 de setembro de 2014

Macau: UM DIA DESTES



ISABEL CASTRO – Hoje Macau, em Contramão, opinião

Não espanta que estas coisas aconteçam. É típico de sociedades em que os líderes não percebem o que significa a governação, uma invenção muito antiga que resulta na organização de pessoas e bens, e na delegação de competências a alguém para que as pessoas se possam entender e os bens possam ser geridos. Como em Macau há uma óbvia dificuldade em fazer com que as pessoas se percebam e um problema ainda maior na gestão dos bens, as coisas acontecem assim. Às vezes acontecem bem; outras nem por isso.

Quando os governos falham, as pessoas reagem. Noutros tempos, nos tempos da invenção dos governos, a reacção ao que estava a ser mal feito fazia-se à batatada. Porque os homens não evoluem, da batatada passou-se às guerras sofisticadas em que os dois lados da barricada nem sequer conhecem os rostos das mortes mútuas. Matam-se uns aos outros sem sequer saberem a cor dos olhos de quem morre.

Nós por cá somos mais primários, mais iniciais: ficamo-nos pelo estádio da batatada, aquela fase mais epidérmica, mais quente e, vistas bem as coisas, mais humana. Como não passamos ao lado das novas tecnologias, também vamos exercitando a vocação de justiceiro de forma virtual, a salvo de mazelas e nódoas negras. É todo um conjunto de eu faço-e-aconteço, uma série de promessas de reposição da ordem das coisas. Coisas que, na verdade, nunca estiveram verdadeiramente ordenadas.

As redes sociais vieram ajudar à organização de uma cidade em permanente mudança – mudança de pessoas e mudança de sítios. Há grupos para tudo e mais alguma coisa, numa saudável revelação da imaginação local e de entreajuda também. Criou-se um grupo para a venda de bens em segunda mão (viva a reciclagem), na sequência da debandada geral de um grupo de pessoas que cá vivia; criou-se um grupo de pessoas desesperadas à procura de uma casa a preços comportáveis, num sinal muito revelador do estado a que isto chegou; criou-se um grupo que tem como objectivo denunciar os maus taxistas e que rapidamente se transformou numa associação, organizada nos termos em que manda a lei.

Assisti – virtualmente – ao aparecimento deste grupo e fui acompanhando a evolução de um movimento social pouco vulgar em Macau. Não é comum vermos por aí grupos que têm como objectivo denunciar maus professores, maus médicos, maus jornalistas ou maus advogados. Ou maus políticos. A flor de Lótus murchava se aparecesse um grupo com milhares de pessoas a denunciar profissões tidas como mais nobres. Pois que este grupo entretanto transformado em associação denuncia maus taxistas – sendo que, a dada altura do campeonato, alguém teve o cuidado de criar uma lista de bons taxistas para equilibrar as coisas.

Acredito piamente que, na origem de tudo, esteve uma boa intenção: no início, eram desabafos de pessoas cansadas com o facto de não se conseguirem deslocar em Macau, cansadas com as irregularidades praticadas pelos taxistas, cansadas com a inércia das autoridades perante esta força maior e superior de quem detém e conduz veículos de aluguer. Acredito também que, na nova associação, há gente empenhada em contribuir para a resolução de um problema que, nos últimos meses, se tem agravado muito.

Acontece que esta boa intenção rapidamente evoluiu também para aquilo que pode ser perigoso: a delação e – mais do que a denúncia e a criação de listas negras que tanta confusão nos fazem quando são da autoria de quem manda em nós –, a congeminação de planos para apanhar taxistas prevaricadores, como se coubesse aos cidadãos comuns a função de agente provocador. Eu gosto de ver a sociedade a reagir. A sério que gosto. Mas não gosto de homens armados que saem à noite em bandos para proteger a vizinhança dos ladrões.

Não espanta que estas coisas aconteçam. O Governo – sobretudo este Governo de Chui Sai On – anda há cinco anos em modo loop com a diversificação económica, os estudos e as consultas públicas, a harmonia e o centro internacional de turismo e lazer, os festivais de fogo-de-artifício e as medidas eternamente provisórias que só funcionam para quem não sai dos gabinetes. Não espanta, por isso, que a sociedade reaja.

Está na hora de o Governo encomendar a uma instituição pública de ensino superior de reconhecido mérito um estudo sobre as novas reacções virtuais dos residentes de Macau. Talvez assim, lá para 2016, quando a ponte de Hong Kong chegar a Macau e o metro já ligar a Taipa de uma ponta a outra, o Executivo perceba que pode ser perigoso, mas muito perigoso, deixar que os residentes cheguem ao estado de cansaço que está aí, e que promete ser cada vez maior.

Sem comentários:

Mais lidas da semana