Irene Pimentel
A
eficácia da PIDE/DGS resultou sobretudo da luta desigual, a seu favor, que
travou contra os presos políticos, possibilitada pelos seus poderes – de prisão
preventiva e medida de segurança – e pelos seus métodos de “Informação” e
“Investigação”. Embora pudesse recorrer a informadores e a métodos de
intercepção postal e escuta telefónica sem qualquer fiscalização, a polícia
política portuguesa prendia habitualmente para poder “investigar” e, como se
sabe, a “investigação” e a instrução do processo, também a cargo dela, era
feita com recurso a interrogatórios onde imperavam as torturar e as maiores
violências, durante o período “legal” de prisão preventiva. Este, como se verá,
era habitualmente de seis meses, nos quais, além dos espancamentos e das
torturas da “estátua” e do “sono”, a PIDE utilizava o isolamento total numa
cela do preso, sem direito a visitas, livros e instrumentos de escrita
Três
lógicas de encarceramento prisional
A
polícia política em Portugal, durante o regime ditatorial de Salazar e Caetano
utilizou assim dois tipos de encarceramento: a prisão preventiva antes do
julgamento e a medida de segurança, que acrescia à pena de prisão maior,
posterior ao julgamento, sentenciada pelos tribunais plenários. Salvo melhor
opinião, por outro lado, a detenção política em Portugal combinou três lógicas:
a de afirmação da autoridade; a de carácter correctivo e, finalmente, uma
terceira, de neutralização. Com base nessas três lógicas de encarceramento e
punição, pode-se dizer que a prisão, inserida no sistema de justiça política
existente em Portugal, durante a ditadura, era uma combinação de todas elas,
consoante se tratava de lidar com a população, com simpatizantes, militantes de
base, compagnons de route do PCP e opositores não comunistas, ou com
os dirigentes e funcionários do PCP/grupos e movimento de extrema-esquerda e de
luta armada.
Assim,
a primeira lógica, de afirmação da autoridade, a sanção tinha carácter
dissuasivo, preventivo e de intimidação do indivíduo, face à ameaça do castigo,
era utilizado para a população em
geral. A “prevenção” passava por instilar o medo, através da
difusão de uma imagem de omnipresença e omnipotência da PIDE/DGS, no seio da
população e, nesse sentido, essa polícia se apresentou sempre como
«preventiva». O certo é que a PIDE e usou e abusou da prisão preventiva,
excedendo o seu prazo legal de seis meses. Por exemplo, num universo estudado
de cerca de 1.800 presos, apenas cerca de 15% foram julgados dentro desse prazo
e houve mesmo alguns, que esperaram, na cadeia, mais de quatro anos, até serem
levados a julgamento. Cerca de metade dos presos já estavam detidos durante um
período entre mais de seis meses a um ano, um quarto deles, entre 1 a 2 anos, e mais de 10% já
havia esperado mais de um ano antes de chegar a tribunal, havendo até alguns
que ficaram mais de 4 anos detidos antes de ir a julgamento.
A
segunda lógica prisional da PIDE/DGS era reservada aos que tinham sido
“momentaneamente transviados” e, através do “susto” da prisão preventiva e
correccional, ficariam vacinados para nunca mais terem a ousadia de actuar
contra o regime. Num universo estudado de cerca de 7.000 presos estudados, a
larga maioria (95,7%) destes só permaneceram detidos durante os seis meses da
prisão preventiva, apenas 15% foram levados a julgamento e cerca de 23% dos
indivíduos julgados foram absolvidos, amnistiados, soltos ou apenas condenados
a multas. Por outro lado, num universo de cerca de 4.000 presos julgados, cerca
de 20% foram condenados a penas de prisão correccional até 1 ano de prisão e
seis meses.
Mas
o facto de, em Portugal, as penas não serem de longa duração, como foi sempre
apregoado pelo regime, não deve fazer esquecer que muitos detidos políticos
acabaram por ficar muito tempo atrás das grades, devido às medidas de
segurança. E Assim, finalmente, chegamos à terceira lógica, de neutralização,
tinha como objectivo retirar do espaço público os dirigentes e funcionários dos
partidos subversivos, nomeadamente os comunistas, de extrema-esquerda e de
organizações de luta armada, através da prisão maior e das medidas de
segurança. Cerca de 5,5% dos presos foram condenados a penas de dois anos de
prisão maior e, nesse caso, apenas era contada metade do tempo de detenção
preventiva cumprida, além de lhes ser habitualmente acrescida uma medida de
segurança. Num universo de 12.385 presos, pouco mais de 4% dos detidos foram
condenados a medidas de segurança, mas, entre estes, mais de 90% cumpriram
entre um ano e três anos de cadeia a mais do que o tempo a que haviam sido
condenados por sentença judicial.
A
prisão preventiva
O
conceito de prisão preventiva da PIDE/DGS já vinha do tempo da antecessora da
PIDE, PVDE, criada em 1933, e era típico dos regimes ditatoriais, de carácter
autoritário ou totalitário. Por exemplo, na Alemanha nazi, a partir de 1936, a Gestapo podia
decidir a detenção «provisória» de quaisquer suspeitos, internando-os sob
«custódia protectora» em campos de concentração à sua guarda. Segundo afirmava
a própria Gestapo, a sua função era, sobretudo, de carácter «preventivo»,
impedindo a actividade «subversiva» antes de ela eclodir. Este conceito de
prisão preventiva, como se verá, tanto foi utilizado no totalitarismo alemão
como na ditadura de Salazar e Caetano.
Entre
1933 e 1945, na prática, a prisão posterior ao cumprimento da pena, aplicada
aos autores de crimes políticos era prolongada indefinidamente com base numa
ordem de prisão preventiva, decidida pelo director da PVDE ou do ministro do
Interior. Quando a PIDE foi criada, em 1945, conservou da sua antecessora a
instrução preparatória dos processos respeitantes aos chamados delitos
“políticos” contra a «segurança interna e externa do Estado», ficou com a
capacidade de determinar, com quase total independência, o regime de prisão
preventiva. A legislação que criou a PIDE visou, assim legalizar o que, na
realidade, nunca deixara de ser uma prática constante – e ilegal, dado que nos
anos trinta, a preocupação com a legalidade era nenhuma - da PVDE,
relativamente à detenção por tempo indeterminado, sem pena, ou para além desta.
Deve-se, assim, dizer que, longe de acabar, a partir de 1945, o arbítrio apenas
foi coberto com o manto da jurisdição.
O
prazo “legal” da prisão preventiva era de três meses, mas a PIDE podia pedir a
prorrogação para mais seis meses, ao ministério do Interior, que o concedia
sempre., pelo não significava que as arbitrariedades dessa polícia fossem
limitadas ou impedidas. A situação do arguido detido, após essa data, era ainda
agravada pela inexistência de prazos de prisão preventiva, depois da formação da
culpa, confundindo-se esta com a duração do próprio processo até ao trânsito da
decisão. Houve diversos presos que tiveram de aguardar até quatro anos em
prisão, pelo julgamento. Além disso o arguido preso só podia requerer para o
Supremo Tribunal diligências para acelerar o andamento do processo, ficando sem
qualquer meio eficiente para provocar o fim da detenção preventiva, se o
julgamento se protelasse para além de certos prazos.
A
ampliação dos poderes da PIDE: as medidas de segurança
Ao
longo dos anos, a PIDE foi reforçando os seus poderes “legais”, entre os quais
se contaram o recurso à prisão preventiva, bem como à medida de segurança
provisória (anterior ao julgamento, cuja aplicação era da competência do
director da PIDE). Quanto à medida de segurança de aplicação posterior ao
cumprimento da prisão, para colocar fora da actividade e neutralizar os presos
políticos - considerados mais perigosos e não passíveis de regeneração -,
foi-se tornando gradualmente uma das principais armas da PIDE.
Nos
dois anos seguintes a 1945,
a PIDE ficou com a possibilidade de aplicar «medidas de
segurança, previstas na Constituição para a defesa da sociedade e reabilitação
dos delinquentes», aos condenados por crimes contra a segurança do Estado. O
advogado Vasconcelos Abreu anotou o endurecimento legislativo quanto à privação
da liberdade física dos cidadãos, no instituto da prisão preventiva, dando como
exemplos as alterações ao Código Penal, através do DL n.º 36 387, de 1 de Julho
de 1947. A
liberdade condicional era fiscalizada pelo ministério da Justiça e a medida de
segurança não tinha ainda um carácter detentivo, mas passou a tê-lo, em 1949,
com a criação do Conselho Superior de Polícia (CSP). O DL n.º 37 447, de 13 de
Junho de 1949 possibilitou a imposição, aos condenados por actividades
subversivas e crimes contra a segurança interior e exterior do Estado, de uma
medida de segurança de «internamento» de um a três anos, aplicada por tribunal
plenário ou pelos juízos criminais de Lisboa e Porto.
Cabia
à PIDE a elaboração das propostas para a aplicação ou prorrogação de medidas de
segurança, aos que fundassem ou aderissem a associações ou agrupamentos de
carácter comunista que tivessem por fim a prática de crimes contra a segurança
exterior do Estado, bem como aos que facilitassem essas actividades fornecendo
local para reuniões, subsídios ou permitindo a sua propaganda. Conjugada a
prisão preventiva (até seis meses) e esta medida de segurança provisória (até
um ano) nos processos em que os arguidos fossem incriminados por crimes contra
a segurança de Estado, passava a verificar-se a possibilidade teórica de
manutenção da prisão, pela PIDE, sem controlo judicial, por um período de um
ano e seis meses.
Quer
a medida de segurança «provisória», antes do julgamento, quer aquela posterior
ao cumprimento da pena imposta pelo tribunal deveriam ambas ser cumpridas em
estabelecimentos dependentes do ministério do Interior – ou seja, da PIDE, no
caso de «crimes contra a segurança interna e externa do Estado». A partir de 1949, a política criminal
do Estado Novo passou assim a assentar em dois pilares: na prisão preventiva e
nas medidas de segurança. Diga-se, porém, que a PIDE habitualmente não aplicava
a medida de segurança «provisória» - ou seja, preventiva - de prisão, preferindo,
depois da detenção sem culpa formada de seis meses, voltar a prender o
indivíduo, por novo período inferior a seis meses, e assim sucessivamente. Foi
o que aconteceu ao padre angolano Joaquim Pinto de Andrade, que, ao completar,
em 5 de Janeiro de 1963, cento e setenta e sete dias de prisão sem culpa
formada, faltando três dias para o máximo de detenção preventiva permitida por
lei, foi posto «em liberdade». No entanto, foi «preso imediatamente a seguir à
porta da cadeia do Aljube e transferido para Caxias».
Em
1954, foram ampliados os poderes da PIDE e prolongado o tempo de prisão
preventiva e, em 1956, um diploma agravou o regime das medidas de segurança
posteriores ao julgamento, permitindo-as por períodos indeterminados de 6 meses
a 3 anos, prorrogáveis por 3 períodos sucessivos de 3 anos, mesmo nos casos de
presos absolvidos. O ministro da Justiça, Cavaleiro Ferreira ergueu-se, aliás,
nesse ano, contra o facto de essas medidas de segurança serem cumpridas em
prisões da PIDE e lembrou que, apesar de esta polícia poder propor a
prorrogação da pena, a decisão pertencia sempre aos tribunais. No entanto, se
era verdade que a PIDE apenas propunha a aplicação e prorrogação das medidas de
segurança e que estas deviam ser aprovadas pelos tribunais, estes raramente
tomaram uma opção contrária ao da polícia. Resultava assim que era esta que, na
prática, «determinava» a sua aplicação.
No
período em que
Marcello Caetano foi presidente do Conselho, a PIDE foi
substituída, em 1969, pela Direcção Geral de Segurança (DGS), depois
reorganizada, em 1972. A
DGS continuou, porém, com os mesmos poderes da sua antecessora, embora o prazo
da prisão preventiva passasse a ser mais curto, ficando esta polícia com três meses
para instruir os processos. Na chamada metrópole, a prisão preventiva começou a
contar por inteiro nas penas de prisão, mas a grande novidade, nesse ano de
1972, foi a abolição das medidas de segurança de internamento para os
«delinquentes políticos». O arguido da DGS passou a ter acesso aos autos da
instrução preparatória, mas apenas quando não houvesse «nisso inconveniente».
E, no caso da DGS, tal como a assistência do advogado aos interrogatórios,
nunca era conveniente. Quer na DGS, quer no tribunal plenário, o «marcelismo»
não representou, assim, uma grande diferença, relativamente ao período
salazarista.
Na
foto: libertação de presos políticos do forte de Caxias, em 26 de Abril de 2014.
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