Entrevista
a Mia Couto
Cristiana
Pereira e Tomás Vieira Mário – O País (mz)
Escritor
e biólogo, Mia Couto é um dos autores mais publicados do universo lusófono. Com
um olhar atento e uma voz interventiva sobre o panorama nacional, o membro da
Comissão de Honra do MOZEFO defende que é preciso produzir “uma perspectiva
inovadora” para o país.
Cristiana
Pereira: O que o atraiu no Fórum MOZEFO?
Mia
Couto: Em primeiro lugar, foram as pessoas. Acho que esse é o primeiro
cartão de visita. Também me agrada muito a ideia de promover debates e fazer
circular ideias, que é uma coisa de que temos uma grande carência na nossa
sociedade.
Cristiana
Pereira: O que espera como resultado do fórum?
Mia
Couto: Que o objectivo que esta iniciativa se propõe, que é produzir
ideias, se concretize. Que circulem ideias em público através deste projecto.
Se conseguir fazer só isto, já é uma grande coisa.
Tomás
Vieira Mário: Que canais podem ser usados para que estes assuntos não caiam em
“saco roto”?
Mia
Couto: Já estamos num veículo que é a própria televisão. A rádio pode
desamarrar aquela coisa que é muito concentrada num grupo e num lugar. Hoje há
hipótese dessas conferências que acontecem em salas poderem realmente ser
reproduzidas em escolas, universidades e em centros onde haja pesquisas. Soube
que o primeiro debate que se fez foi muito produtivo. Mas, às vezes, é uma pena
que esses debates fiquem depois confinados, quando se podem desdobrar em
material audiovisual e distribuído.
Cristiana
Pereira: Só para recordar, o primeiro debate foi realizado em Dezembro e
dedicado à Agenda 2025 e ao tema “Que Visão para o Futuro?”. Qual é a sua visão
para o futuro de Moçambique?
Mia
Couto: A visão primeira é de um país que seja unido. Nós temos que estar
conscientes de que existe muito por fazer. Moçambique é um outro país depois de
1975 até aqui. Houve coisas que eu acho que devíamos ter grande vaidade, grande
orgulho, mas é preciso perceber que há muita coisa que temos que ter a verdade
de assumir que ainda falta fazer.
Cristiana
Pereira: Na área social do MOZEFO, foram identificados quatro temas que são:
educação, saúde, riqueza e cultura. Se tivesse que escolher uma das áreas para
ser embaixador, qual é que escolheria?
Mia
Couto: Antes de eu escolher, já fui escolhido pela minha própria história.
Pela minha vida, acho que a área da cultura é aquela em que me sentiria mais à
vontade. Vou dizer algo que acho muito importante. A pior pobreza em Moçambique
é a pobreza de ideias, esta incapacidade de produzirmos uma perspectiva que
seja inovadora, que seja uma agenda nacional e fundada numa certa
originalidade. Penso que a primeira pergunta que se devia fazer a um político
é, que ideias você tem? Hoje, infelizmente, isso transformou-se numa cultura
quase perigosa e ter ideias é ser ousado.
Tomás
Vieira Mário: Durante os primeiros anos da independência, na euforia do país
libertado havia sonhos e a ousadia de pensar alto. Será que os conflitos, a
guerra que tivemos, a fome e a miséria tiraram-nos a capacidade de sonhar?
Mia
Couto: Esta é uma questão que tem várias respostas. Nós sonhávamos e
acordados, mas não sei se tínhamos tantas ideias assim. Algumas vezes tínhamos
as ideias dos chefes e, nessa altura, este tipo de pequena doença de ficar à
espera das orientações já estava presente. Acho que criámos um tipo de modelo
de sociedade em que é preciso agradar.
Tomás
Vieira Mário: No discurso de investidura do Presidente da República, ele
abordou essa questão, ao dizer que, os responsáveis, os dirigentes devem ser
capazes de ouvir críticas e ouvir os subordinados. Parece que se quer mudar um
pouco a prática que era dizer ao chefe aquilo que ele gosta de ouvir e não ao
contrário.
Mia
Couto: Acho que sim. Há uma sugestão de esperança que alguma coisa mude a
este nível. Porque isto é uma armadilha que o poder muitas vezes não se
apercebe. O poder que se rodeia de gente que só diz sim, é um poder que não
está vivo. O presidente Nyusi havia dito que as boas ideias não têm cores
partidárias e isso é uma cultura nova. Não estamos habituados a isso, porque
normalmente escutamos quem é do nosso clube e os outros podem dizer o que
quiserem.
Cristiana
Pereira: Costuma dizer-se que mais importante que as ideias é a acção. Quais
são as pequenas acções que realiza no dia-a-dia para concretizar essa visão que
tem de Moçambique? Por exemplo, o trabalho como biólogo, como contribui para a
mudança ou realização dessa visão?
Mia
Couto: O que eu quero fazer com o meu trabalho, além do meu ganha-pão, é
sugerir que a visão que se tem do ambiente em Moçambique está equivocada. Esta
visão que põe desenvolvimento de um lado e o ambiente do outro já está errada à
partida. O que eu quero fazer no meu dia-a-dia é introduzir, por via de acção,
uma outra maneira de pensar. Também tenho outra coisa que faço com gosto, que é
ajudar as pessoas que se aproximam de mim e dizem, tenho um livro, tenho uma
poesia ou uma peça de teatro e não sei com quem partilhar. Quero criar para essa
gente o que ela procura e é o que eu sempre tive porque fui criado numa casa
onde a literatura vivia.
Cristiana
Pereira: Sabemos que o índice de leitura em Moçambique é muito baixo. Quando
vamos para os bairros, para os distritos e entramos numa sala de aula, vemos
salas superlotadas e crianças que não sabem ler. Como se inverte este cenário?
Mia
Couto: Nós temos que repensar na maneira de ensinar e aí é que deve haver
ousadia. Se insistirmos só em haver mais professores e mais manuais, não
chegaremos lá. Tem que haver uma outra maneira de olhar para o que realmente
precisam de saber. Tenho uma ideia muito crítica da escola no mundo inteiro. A
escola em geral ensina pouco do que fundamentalmente tem que se saber. É uma
escola feita para um universo que já não existe. Mas no nosso caso, acho que é
urgente introduzir logo no início por exemplo, cadeiras sobre cidadania,
moçambicanidade, os valores e isso está profundamente ligada aos problemas mais
sérios.
Tomás
Vieira Mário: Voltando ao tema do ambiente, há uma expressão do Arquitecto
Forjaz que diz que “em Moçambique há crime organizado contra o ambiente”. O que
tem a dizer sobre isso?
Mia
Couto: Esses crimes não são só crimes ambientais. A usurpação de
território nas zonas urbanas ou rurais é um crime contra o país todo. O que se
passa é uma atitude de predação, de alguém que come o que está à vista sem
preocupação nenhuma com aquilo que possa ser o futuro. Quando há um grupo de
gente que se preocupa com os rinocerontes, por exemplo, é preciso pensar que estas
pessoas não são propriamente malucas.
Cristiana
Pereira: Quando se fala do ambiente e da sustentabilidade, fala-se também do
papel dos grandes investidores, dos chamados megaprojectos. Há uma certa
tendência em demonizar a figura dos investidores, como se viessem como
exploradores e não como parceiros do desenvolvimento. Esta visão tem
fundamento?
Mia
Couto: Acho que sim. Há aqui uma posição um pouco ambivalente. Por um
lado, nós declaramos sempre que precisamos de investimento e os investidores
são bem-vindos, mas de repente, no mesmo segundo, eles se transformam em demónios. Acho que
há aqui uma visão também um pouco colonizada, no sentido de que temos a
expectativa de que eles venham resolver os nossos problemas. Nas sessões de
consulta pública dos estudos de impacto ambiental que tenho feito, os próprios
dirigentes do Estado aparecem querer saber como é que ele vai resolver os
problemas do distrito e, de repente, o desenvolvimento total daquela região é
transferido para o investidor, com uma certa desresponsabilização daquilo que
deve ser agenda própria do Governo. Eles devem ser tratados como alguém que, se
está em nossa casa, é porque os convidamos e devem ser bem tratados.
Cristiana
Pereira: Em relação aos estudos ambientais que realiza, há um certo cepticismo
sobre a eficácia. Pode dar-nos um exemplo de alguma decisão de investimento que
foi invertida por causa de um estudo de impacto ambiental?
Mia
Couto: Havia uma decisão de se fazer pesticidas na CIMPOR, e por causa do
estudo ambiental, foi revista e bloqueada. Eu acho que as pessoas têm toda a
razão de pensar que devia haver muito mais acompanhamento, principalmente dos
estados do ponto de vista de monitorar, fiscalizar e fazer uma revisão
permanente da defesa dos interesses do país. Houve um projecto de transporte
fluvial de carvão que foi chumbado, que eu acho que foi um erro do Governo.
Porque nunca o transporte fluvial iria substituir outras vias de transporte, só
iria resolver um problema sério.
Tomás
Vieira Mário: A capacidade do Estado de monitorar quaisquer que sejam as
recomendações é quase nula. Se há, é muito antiquada.
Mia
Couto: Uma coisa que é importante é realmente sentirmos que há aqui alguém
que tem comando nisso e que não há um clima completo de impunidade.
Tomás
Vieira Mário: Um dos fins do MOZEFO é a discussão pública de ideias e dar
também ideias a quem toma decisões. Agora temos o Ministério da Terra, Ambiente
e Desenvolvimento Rural. É dentro deste ministério que estas questões vão cair?
Mia
Couto: Com este novo Governo, de imediato houve sinais de que há uma
abertura para escutar. Há pessoas que estão sendo chamadas e ouvidas, espero
que isso não seja apenas um sinal, mas que depois se converta em prática.
Tomás
Vieira Mário: Há um certo conflito laboral entre os investidores estrangeiros e
a mão-de-obra local, em que dizem que os moçambicanos não têm cultura de
trabalho. Somos tão preguiçosos assim?
Mia
Couto: Isso é uma coisa terrível de se dizer. Por um lado, é preciso mudar
realmente alguma coisa. É preciso que as pessoas não fiquem à espera e tenham
iniciativa. Por outro lado, é preciso pensar que, por essência, as pessoas não
são preguiçosas. As pessoas são o que são dependendo do contexto, porque um moçambicano
que emigra para a África do Sul é reconhecido e respeitado como trabalhador. Há
que se repassar para as pessoas o valor de que o que se tem é pelo empenho no
trabalho. Mas grande parte dos nossos discursos é de reclamação do poder.
Cristiana
Pereira: Falando de inclusão e participação, que são alguns pilares do MOZEFO,
de que forma o fórum pode concretizar de facto esta inclusão?
Mia
Couto: Acho que se deve chamar gente de várias cores partidárias, de
várias religiões que defenda ideias diferentes. Se todos vierem para este fórum
dizer amém, será o fim para o MOZEFO.
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