terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

UCRÂNIA: A MIRAGEM DA PAZ OU A PAZ DA MIRAGEM?



Rui Peralta, Luanda

Segundo a ONU desde Abril de 2014 a Janeiro de 2015 os números da desgraça causada pelos combates entre as forças armadas ucranianas e as forças populares de Donetsk e de Luhansk elevam-se a 5 mil e 300 mortos e mais de 1 milhão e 500 mil deslocados. A intensificação dos combates (antes dos acordos de Minsk assistiu-se a uma escalada violenta, marcada pela ofensiva - falhada - do exercito ucraniano) levou a administração Obama a considerar (embora os serviços de informação russos refiram que chegou a ser efectuada, pelos USA, uma operação-relâmpago de entrega de armas e munições ao governo de Kiev, durante as conversações em Minsk). Os USA já fornecem equipamento militar não-letal, mas alguns responsáveis norte-americanos pretendem alargar o leque  de fornecimento, colocando espingardas, metralhadoras e armas antitanques â disposição de Kiev.

Enquanto isso o ex-líder da URSS, Mikhail Gorbatchev, acusou o Ocidente de mergulhar o mundo numa nova guerra fria. Se atendermos nas palavras de Jen Psaki, porta-voz do Departamento de Estado, ficamos a saber que o objectivo dos USA é "alterar o comportamento da Rússia" e que para atingir esse objectivo a Casa Branca analisa "um vasto leque de opções", as acusações de Gorbatchev possuem um profundo significado, porque descrevem, como um quadro hiper-realista, o actual cenário.

Ora, é nesse cenário que a posição da Alemanha e por arrasto da maioria da U.E. (sendo a minoria encabeçada pelo Reino Unido, um partidário incondicional da nova guerra fria) que assumiu a conversação directa. Minsk foi, assim, uma conversa directa entre Merkel e Putin, tendo Hollande como testemunha e Poroshenko no papel de aluno com orelhas de burro, que teimosamente teima em olhar para o outro lado do Atlântico, esquecendo-se que no Velho Mundo os novos-ricos vindos do Novo Mundo não têm o "pedigree" necessário para efectuar estes negócios, que vêm do tempo em que o Novo Mundo ainda não tinha lugar no Mundo, porque o Velho Mundo ainda não o colonizara.

O acordo obtido em Minsk é frágil, mas contem medidas de curto-prazo (no âmbito do cessar-fogo) e de médio-prazo (a alteração na Constituição de Kiev). No curto-prazo o cessar de fogo obriga á retirada imediata da artilharia pesada, de ambos os lados, para uma distância não inferior a 140 km da frente. Tem em Debaltsev (uma cidade separatista onde decorrem fortes combates) o seu ponto fraco. Por outro lado o acordo permitirá á Ucrânia receber um balão de oxigénio para a sua economia - através do FMI - no valor de 17 mil e 500 milhões de USD, evitando (ou adiando, se o cessar-fogo não for implementado e o acordo não for cumprido) a bancarrota do país.

A médio-prazo o acordo prevê alterações na Constituição ucraniana que garantirão um estatuto especial às regiões fronteiriças com a Rússia (o que representa um esboço das futuras dinâmicas geoeconómicas entre a U.E. e a União Euroasiática) e uma total autonomia a Donetsk e Lushensk. Por sua vez a Rússia garantiu a sua presença nas negociações com a Alemanha a França com vista á reconstrução das Republicas rebeldes, processo que inicia-se com a permissão das transferências bancárias e com o reinício das  actividades bancárias nestas regiões (um bolo repartido a três: Alemanha, França e Rússia).

Afastada deste processo a Casa Branca reagiu ao acordo com algumas cautelas e Perry limitou-se - amuado - a um apelo ao cumprimento do cessar-fogo (nos bastidores os USA prosseguem as pressões sobre a U.E. para auxiliar militarmente o governo de Kiev, contando com a Grã-Bretanha e com os lobies dos monopólios globalizadores do sector da defesa e da segurança).

Os separatistas (que não estiveram em Minsk) apoiaram o acordo (Putin, com o apoio discreto de Hollande e de Merkel, forçou Poroshenko a negociar directamente com os separatistas) de 13 pontos e um anexo sobre o estatuto de autonomia. Alexander Zakharchenko, dirigente da Republica Popular de Donetsk considerou o tratado como "uma importante vitória para as Republicas Populares de Donetsk e Luhansk" e Igor Plotnitsky, líder das forças rebeldes separatistas da Republica Popular de Luhansk considerou o acordo como uma "hipótese para a Ucrânia alterar a sua Constituição e o seu comportamento".

O cessar-fogo iniciou-se à meia-noite e 1 minuto (hora local) do dia 15 e é monitorizado pela Organização para a Segurança e Cooperação Europeia (OSCE), o que parece não agradar a Kiev que já pediu a intervenção de uma força de paz da ONU (um indicador negativo. Aparentemente a camarilha de Kiev - sem "pedigree"- dispõe-se a mudar de dono, trocando Bona por Washington, um tique comportamental característico dos rafeiros). Kiev faz os possíveis por desacreditar a garantia de não ingerência e de respeito da integridade territorial ucraniana oferecida pela Rússia e não vê com bons olhos (próprio da miopia em pacientes com arteriosclerose) o facto de a U.E. "reforçar" (na cóptica distorcida da oligarquia de Kiev) o papel da Rússia nas negociações trilaterais (Ucrânia, U.E. e Rússia) sobre política energética e fornecimento de gás russo (Talvez Kiev pretendesse a participação de Washington, transformando o triângulo em quadrado, para facilitar a actuação do Pentágono).

O Partido da Nova Guerra Fria

Os ideólogos da Nova Guerra Fria reuniram-se recentemente e apresentaram-se, publicamente, em forma de "troika", ou de triunvirato. A Brookings Institution, o Atlantic Group e o Chicago Council on Global Affairs publicaram um relatório onde consideram urgente prover ajuda militar a Kiev, no valor de 3 mil milhões de USD. Strobe Talbot, ex-Secretário de Estado, Presidente da Brookings Institution e coautor do relatório, considera que houve um "acto de guerra por parte da Federação da Rússia" e que os acontecimentos na Ucrânia revelam uma "invasão literal, levada a cabo pelas forças armadas russas. É uma ocupação efectiva de vastas áreas da Ucrânia". Segundo Talbot esta é a "maior ameaça á paz na Europa e na Eurásia e uma ameaça aos interesses dos USA".

Este documento, colocado na mesa dos decisores em Washington e na NATO é um texto de marketing do monopólio globalizador da defesa e da segurança (um dos cinco monopólios globalizadores, sendo os restantes: tecnologia, finanças, exploração de recursos naturais e comunicação social), o monopólio mais agressivo, que nos últimos anos, fruto dos incomensuráveis lucros que gera, ataca em toda a extensão da economia-mundo, aparecendo como parceiro insubstituível dos restantes monopólios (o seu papel agigantou-se com o 11 de Setembro) e dos Estados, tanto a Ocidente como a Oriente, a Norte e a Sul, nas economias avançadas e nas emergentes, do Novo Mundo ao submundo da miséria humana e da pobreza generalizada.

Em paragem forçada durante a Ordem Mundial estabelecida após a II Guerra Mundial (1945 - 1995) este monopólio surge agora revigorado, depois de ter hibernado meio-século. Despertou, cauteloso, na segunda metade da década de oitenta, desenvolveu-se sem dar nas vistas na década seguinte, acompanhando o desenvolvimento dos restantes 4 monopólios e aproveitando os recursos destes. A 11 de Setembro, quando o poder dos monopólios globalizadores  estava cimentado, surge a oportunidade deste sector do Capital afirmar o seu poder e influencia. Daí para cá assistimos a uma louca cavalgada (ou talvez a um estouro de manada) que espezinha a paz, a estabilidade, os direitos, liberdades e garantias. Este é um monopólio que utiliza os burocratas como agentes comerciais, o aparelho repressivo dos Estados (Forças Armadas e Policias) como fonte de financiamento camuflado e - através da insegurança diversa e do terrorismo - as sociedades humanas como agentes publicitários. Fosse eu crente e consideraria este monopólio como o Anticristo, ou o Grande Satã...

Washington como parte do problema

Os mais de cinco milhões de pessoas que habitam as regiões orientais da Ucrânia sentem na pele, na carne e na alma, os "negócios" deste monopólio, entranhado no aparelho estatal de Kiev, que submeteu a nova oligarquia ucraniana aos seus desígnios (o mesmo já aconteceu na Geórgia). Estas populações habitam por aqui á séculos. Os antepassados instalaram-se, os tetravôs já eram bisnetos dos que por aqui nasceram e por aqui foram, nascendo, vivendo, procriando e morrendo, geração após geração  homens e mulheres.

Para a comunicação social dominante no Ocidente (e para a maquina de propaganda de Kiev) estes homens e mulheres, são "bandos separatistas", "grupos terroristas a soldo de Moscovo", "marionetas de Putin". Se fossem isso tudo não estariam a morrer, não teriam um número tão elevado de desalojados, nem andariam a refugiar-se nos abrigos, para fugir aos bombardeamentos de Kiev (mais de um milhão de pessoas é forçada a pernoitar nos abrigos, regressando a casa durante o dia. As forças governamentais de Kiev costumam bombardear as áreas residenciais de Donetsk  e da região de Luhansk durante a noite). Têm apoio russo? Claro que têm, da mesma forma que Kiev tem apoio do Ocidente.

As forças governamentais de Kiev recebem treino e instrução militar da NATO. O 2° Regimento de Cavalaria dos USA, no início deste ano foi enviado para as Republicas Bálticas, onde se desenrolou um exercício da NATO. O General Ben Hodges, comandante-geral do Exercito norte-americano estacionado na Europa, foi o responsável pelas acções de formação que foram efectuadas após o exercício. A seu mando foram enviados 200 tanques e largas dezenas de veículos de transporte de tropas, entregues na Letónia, Lituânia, Estónia, Polónia, Romênia e Bulgária. Actualmente Hodges e "sus muchachos" encontram-se em Kiev, instruindo a Guarda Nacional ucraniana.

O Partido da Guerra está em marcha e com ele os negócios da guerra e da segurança. Figuras como Talbot e Hodges são "bonecos belicistas" ao serviço dos falcões da Casa Branca, lobistas que tentam amedrontar as pombas. Os "Senhores da Guerra" de Washington, "Guardiões da Segurança" impõe-se nos negócios e na política. Sob a administração Obama prossegue "a modernização das armas nucleares" (como referiu Obama).

A CIA infiltrou as organizações que foram para a rua durante o Maidan (fossem elas liberais, neoconservadoras, ultranacionalistas ou fascistas), como já o fizera durante a "Revolução Laranja". A NATO foi a responsável pela instabilidade que conduziu á guerra civil na Ucrânia. Os USA são os promotores da discórdia, conforme se pôde verificar em Minsk e agora, durante o cessar-fogo.

Desde Abril de 2014 Kiev afirma que as operações militares em curso estão inseridas no "combate global ao terrorismo", um produto de grande consumo e de enorme lucro, amplamente divulgado pelo aparelho propagandístico camuflado de comunicação social. Para Kiev não existem rebeldes ou opositores, apenas terroristas. Para Kiev não existem questões históricas-culturais a resolver. É tudo como um filme norte-americano de série B, ou como as legendas da BD: Catrapum! Pum! Pum!

Enquanto Poroshenko continua a espalhar a sua idiotice na comunicação social (a ultima refere-se á "semelhança" entre as guerras na Síria e na Ucrânia. Tal semelhança, a existir, só no bombardeamento ás áreas civis. De resto a Síria é um país agredido e o governo de Kiev um Estado agressor, pelo que qualquer semelhança passa pela inversão da imagem no espelho), Washington diaboliza Putin, que por sua vez não é flor que se cheire, mas que - ao contrário de Washington - é parte da solução.

Aliás, na Ucrânia, aplica-se (e mais adequado não há) a lei de Pareto (80 / 20): 20% do problema é constituído por Poroshenko, o governo de Kiev e os bandos fascistoides; 80% é o papel dos USA...

Alemanha: solução final?

Ângela Merkel, a chanceler alemã, afirmou (perante Obama) que a "Alemanha não suporta uma Ucrânia em guerra". A Alemanha mantem as sanções á Rússia e aposta na diplomacia e, aparentemente, tomou conta das operações no terreno, conjuntamente com a Rússia. 
E esta é uma questão histórica. Rússia e Alemanha mantêm um tradicional relacionamento no que respeita à Europa de Leste e acumulam muitas lições do passado. Falam com conhecimento de causa dos problemas da região e partilham a convicção que será das negociações (e não da via militar) que nascerão soluções para os diversos problemas que a região comporta.

A Alemanha tem responsabilidades políticas na desestabilização da Ucrânia (tal como na desintegração da ex-Jugoslávia, em toda a região balcânica e nas Republicas Bálticas) e por uma razão: reassumiu o papel-chave geopolítico e geoeconómico que foi impossibilitada de prosseguir na Ordem Mundial pós II Guerra Mundial (1945 - 1995). O país é determinante na economia-mundo, afirma a sua hegemonia na U.E. e nos palcos geoeconómicos mundiais (observe-se o seu relacionamento com a USA, a China e com a Rússia).

A Alemanha não será a "solução final" da Ucrânia (a solução compete aos ucranianos), mas, tal como a Rússia e ao contrário dos USA, é parte da solução...

O (in)cessar-fogo

Debaltsev é um importante nó rodoviário e ferroviário do Este da Ucrânia, crucial para Donetsk e para a política do governo de Kiev, que recusa-se a perder o controlo sobre a região, pressionando militarmente a região. È aí que reside o ponto mais difícil de implementação imediata do cessar-fogo.

Durante Janeiro e Fevereiro as forças de Kiev foram cercadas, nesta região, pelas forças populares de Donetsk e quando o acordo de Minsk foi assinado, as unidades ucranianas continuavam cercadas. Poucos desenvolvimentos foram conseguidos, posteriormente e situação no terreno continua complexa para Kiev, que recusa-se a aceitar a derrota das suas forças e partiu para uma campanha de falsas acusações â Rússia, o que em nada resolve o assunto.

As forças separatistas acusam, por sua vez, o governo de Kiev de bloquear a actuação dos observadores da OSCE. O vice-chefe da missão da OSCE, o suíço Alexander Hugh, assinalou que ainda não estavam criadas, na região, as condições mínimas de segurança que permitem aos observadores exercer as suas funções. Referindo-se a este assunto a porta-voz da Comissão Europeia, Catherine Ray, apelou ao fim dos combates e ao cumprimento do cessar-fogo. Enquanto isso Andrei Lissenko, porta-voz das forças governamentais de Kiev acusa a Rússia de ter enviado aos separatistas 12 carros de combate e 54 camiões carregados de munições.

O Conselho de Segurança da ONU reuniu-se e considerou que o cessar-fogo tem de ser imediatamente cumprido por ambas as partes, para que os observadores cumpram a sua missão. Aos poucos a situação parece melhorar e tanto Kiev como os separatistas iniciaram a retirada da artilharia pesada. Mas a situação ainda não é de cessar-fogo...continua no ar uma sensação de desconfiança e um clima de predominante "(in)cessar-fogo"...

Pax Russa ou Pax Germânica?

Um quarto de século depois da queda do muro de Berlim a Alemanha apresenta-se ao mundo na plenitude dos seus atributos. Por sua vez nestes últimos 25 anos a Rússia viu, enquanto URSS em agonia, depois como Comunidade de Estados Independentes e agora como Federação Russa, o incremento da "segurança europeia" e da NATO, nas suas fronteiras. Ambos, nestes 25 anos últimos, assistiram á ascensão dos USA a "potência única" e "polícia mundial", pouco depois á sua queda num mundo incontrolável e apolar e finalmente a uma situação de "império moribundo", que arrasta perigosamente a sua hegemonia entre convulsões de apatia e assomos de esclerose.

Os acontecimentos de Maidan (tal como as Primaveras Árabes e outros cenários) revelam uns USA com capacidade de infiltrar as dinâmicas internas nos momentos em que estas se cruzam com as dinâmicas externas, mas já incapazes de controlar "per si" estes processos. A actual situação ucraniana é, em grande parte, consequência destes processos.

Não serão em ultima análise a Pax Germânica nem a Pax Russa, ou muito menos um novo Pacto Russo-Germano (de triste memória e trágicas consequências) que poderão devolver a paz à Ucrânia e a resolução dos problemas das autonomias ou das aspirações independentistas, mas sim a soberania popular. Aliás, a paz, aquela que é efectiva e sincera só é possível de alcançar através da vontade dos povos e do respeito pelas suas soberanias.

Tudo o resto são fórmulas de gabinete... e que trazem consigo o cheiro nauseabundo dos genocídios da paz podre...

Bibliografia
Coehen, S. Soviet fates and lost alternatives: from Stalinism to the New Cold War Princeton University Press, 2013
http://www.democracynow.org
http://www.thenation.com
http://www.rebelion.org
http://www.pagina12.com.ar
http://www.lavanguardia.com

Washington Post, Archives
The New York Times, Arvhives
The Guardian, Archives

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