sábado, 28 de março de 2015

ALGUMAS LIÇÕES GREGAS PARA BOM ENTENDEDOR, SEM MEIAS PALAVRAS




Ou o governo grego continua a apresentar listas de novas medidas, que serão sempre criticadas por Berlim, ou prepara um referendo para medidas excepcionais

Francisco Louça – Carta Maior

Circula na internet esta notável comparação entre duas fotos dos primeiros-ministros da Alemanha e da Grécia na capa de jornais de referência, o Financial Times e o Frankfurter Allgemeine Zeitung: há fracções de segundo entre uma e outra e vejam a diferença que isso faz, Merkel está como é mas Tsipras aparece desconfiado numa e descontraído noutra. O olhar, que será o espelho da alma, muda tudo. A escolha editorial é aliás reveladora da abordagem de cada um dos jornais: o diário alemão apresentou a reunião como um alívio da tensão entre o dois governos, o diário britânico continua a insistir em que não há solução europeia se a economia grega continuar a ser destruída.

Os dias das listas

Os dois olhares serão também reveladores de uma tensão crescente. Na carta que Tsipras enviou a Merkel uns dias antes do mini-congresso em Bruxelas e do encontro de Berlim, a razão é explicada em detalhe: a Grécia já não tem dinheiro e aproxima-se do risco de incumprimento, não tendo até agora conseguido uma solução negociada com a União Europeia. O encontro de Berlim deixou tudo na mesma.

Em artigo anterior, analisei as condições do acordo de 20 de fevereiro. Como agora é ainda mais evidente, desde então o tempo correu contra os gregos. Esse acordo permitiu algum recuo da tensão imediata (no dia 1 de março não foi aumentado o IVA nem reduzidas as pensões, como o governo da direita e do partido socialista tinham previsto), mas prometeu vantagens que não podia cumprir (suspender a austeridade e permitir o início da recuperação econômica) ou que foram imediatamente congeladas (melhorar a liquidez do sistema bancário e permitir-lhe comprar dívida pública de curto prazo). O que se iniciou foi uma guerra de manobras e de pressões em que a Grécia tem ficado sempre a perder.

Essa guerra tem sido implacável. O BCE proibiu os bancos gregos de comprarem dívida pública e, de fato, não permite que o Estado grego se refinancie. O protectorado continua e está mais aguerrido pela derrota dos seus embaixadores. A União Europeia protestou contra a única lei aprovada, e por quase unanimidade no parlamento grego, que estabeleceu medidas de alívio de emergência para os mais pobres. Não houve nem um centavo dos empréstimos prometidos e são exigidas mais listas de medidas, incluindo a retomada das privatizações, o adiamento da recuperação do salário mínimo e o recuo nas promessas de alívio fiscal. Mesmo os dinheiros que são dos gregos (a sua parte nas operações do BCE) não lhes são entregues se as suas medidas não forem aprovadas num exame em abril.

De
nada lhes serve poderem hoje ter provas de que as contas do défice de 2009 foram falsificadas para exagerar a sua dimensão, abrindo caminho ao encarecimento da dívida e posteriormente ao resgate. De nada serve que anteriores ministros sejam condenados por terem favorecido a família e escondido as suas responsabilidades em fraudes fiscais. Agora é a hora dos acertos de contas. E, portanto, já não há mais tempo.

A política de Merkel e da União é muito evidente e ela não tenta camuflá-la: levar a Grécia à beira da bancarrota a curtíssimo prazo para a obrigar a prosseguir a política que o eleitorado rejeitou, humilhando assim o país, exibindo a sua derrota como vacina europeia, mostrando ainda que Merkel só permite outro Hollande, nunca um opositor.

Esta corrida para o abismo é implacável e está por poucas semanas. Não é para fim de junho, pode ser em abril. A 9 de abril, a Grécia poderá ainda conseguir os 450 milhões de euros para pagar a conta ao FMI, mas já é duvidoso que tenha o suficiente para pagar os salários no fim do mês se não houver uma nova entrada de recursos que reforce a tesouraria. Por isso, o governo está a recorrer a todas as medidas possíveis: usa alguns fundos de pensões, adia pagamentos, mobiliza subsídios que eram para agricultores (300 milhões), está a tentar contrair empréstimos de curto prazo em mercados monetários (600 milhões). Se a sua operação de antecipação de impostos resultar, então ficará com uma pequena folga, mas cada semana terá que fazer contas. Se não for assim, em abril fica sem dinheiro e pode entrar em incumprimento.

A
hipótese da saída da Grécia do euro torna-se por isso mais forte. Ao admiti-la, Draghi aceitou desencadear a especulação sobre essa possibilidade e, assim, aproximar-se da sua concretização. Resta saber se ela já está a ser negociada em segredo ou, se acontecer por acidente ou por desígnio, se estão prontos os necessários planos de contingência. O impacto desta escolha, para a Europa e para a esquerda em todos os países vitimados pela crise dos últimos anos, pode ser essencial para o mapa político do nosso tempo.

A força da razão grega

Num relatório recente, o Bank of America Merril Lynch apresenta três cenários para a Grécia. O cenário “bom” é Tsipras assumir o papel que Lula desempenhou, escrevem os analistas: alguém que chega ao governo com pergaminhos de esquerda para depois aplicar uma política que proteja os mercados. Mas esse cenário é ingênuo, porque os mercados financeiros saem de uma grave crise mundial, recompuseram a sua rentabilidade garantindo rendas, nomeadamente sobre as dívidas públicas, impuseram mudanças de contratos sociais, generalizaram a austeridade e a transformação do trabalho em mercadoria precarizada – numa palavra, não recuam, não permitem alívio, antes exigem destruição. Mais ainda, os agentes políticos dessa adaptação estão radicalizados: o SPD alemão, social-democrata (e parceiro internacional do PT de Lula) faz parte do governo de Merkel e é fiel à sua política.

O cenário “mau” para o Bank of America é continuar tudo na mesma. Tem razão, a Grécia já cumpriu o ajustamento de austeridade como nenhum outro país e o resultado foi o agigantar da dívida para 177% e portanto o agravamento da austeridade. A OCDE classifica a Grécia como campeã das “reformas estruturais”, ou seja, da austeridade, ao longo de todo o tempo da crise internacional (2007 a 2014). O resultado é que a economia não consegue evitar uma longa depressão.

Finalmente, o cenário “feio” é a saída do euro, o controlo de capitais e perdas dos credores. Ou seja, a incerteza e o risco.

O meu argumento é que a Grécia já não tem outra alternativa senão o risco e é melhor preparar-se bem. Por duas razões, uma estrutural e outra conjuntural, e vai ser a última que vai decidir. A razão estrutural é verificável na comparação entre a dinâmica da produção industrial na Europa antes do euro (a Grécia cresce mais do que a Alemanha) e depois do euro (a Alemanha beneficia e todos os outros perdem). O euro foi o problema para as economias mais frágeis. Portanto, para recuperar a capacidade industrial e para criar emprego, é preciso sair do colete de forças. Já não há compromisso bondoso que seja possível no quadro do euro.

Mas tudo vai ser decidido brevemente e por outra razão. É que um governo que esteja submetido à provação de lutar dia a dia pelo pagamento dos salários fica sem capacidade para resolver os problemas fundamentais do desemprego. Para se salvar, a Grécia não pode aceitar esse condicionamento que é a austeridade, ou seja, não pode submeter-se a continuar a ter a certeza de falhar e ficar pior.

Marquem nos vossos calendários, caros leitores e leitoras, é no mês de abril que se vão dar passos fundamentais para escolher entre um programa de austeridade ou uma saída, negociada ou não.

Para os que acompanham com esperança a Grécia e a promessa do seu governo, a lição é forte e deve ser enunciada com todas as palavras: tem ficado evidente que o euro não permite uma política de esquerda para corrigir ou combater os efeitos da crise financeira e social. Se a esquerda quer fingir que a Grécia ensina algo de regenerador sobre a União Europeia, é melhor começar a fazer uma procissão a Berlim, porque será o seu destino.

A força externa da Grécia: a questão da dívida da Alemanha

Mas poderia a Grécia evitar este conflito, ganhar tempo e conseguir fazer ceder os seus parceiros europeus, apesar desta intransigência e da firmeza que Merkel tem demonstrado? Tudo depende da relação de forças.

Para melhorar a sua capacidade de iniciativa, o governo de Tsipras relançou a questão da dívida nazi à Grécia. Na recente conferência de imprensa ao lado de Merkel, Tsipras reafirmou que pretende uma negociação sobre a dívida da Alemanha à Grécia em resultado da ocupação nazi, de 1941 a 1944. Fez bem e foi importante que mostrasse que não há duas linguagens, uma em Atenas e outra em Berlim.

O
acordo de 1953 entre a Alemanha e os seus credores, permitindo uma gigantesca reestruturação da dívida alemã e garantindo as condições para a recuperação do país, não incluiu as reparações de guerra, que ficaram adiadas para um futuro tratado. Esse tratado só foi estabelecido em 1990, quando da reunificação das duas Alemanhas, e foi assinado com as potências aliadas de 45 anos antes, os EUA, a Inglaterra, a França e a União Soviética. Juridicamente, as autoridades alemães clamam que este acordo encerra a questão, mas essa não é a opinião dos Estados que nem participaram nessa negociação nem assinaram esse tratado. Reconhecendo esse problema, a Alemanha negociou em separado com a Polônia uma reparação, que foi paga.

Em 1960, tinha havido um entendimento com vários países europeus, para o pagamento de indenizações a vítimas da guerra. A Alemanha desembolsou então 71 mil milhões de euros (em termos da moeda de hoje), dos quais 57,5 milhões de euros às vítimas gregas, ou, como alguém disse então, 2,5 euros por cada dia em Auschwitz. No entanto, esse acordo não indenizou o empréstimo forçado, ou seja a pilhagem do banco central grego, pelas autoridades nazis: 476 milhões de marcos da época, ou 11 bilhões de euros hoje, pelos quais assinaram um título de dívida, que ainda vale.

Na década de 1960, o chanceler Ludwig Erhard garantiu mesmo que pagaria esse empréstimo quando da reunificação da Alemanha, porventura esperando que a promessa nunca tivesse que ser chamada à pedra. Mas houve a reunificação e o tratado de 1990, mas a dívida ficou por pagar.

A Grécia tem portanto razão do ponto de vista do direito internacional. É certo que o pagamento desta dívida não resolveria as suas contas públicas (outra coisa seria se fossem liquidadas as reparações de guerra). Mas significaria que a negociação seria diferente no tempo (os próximos meses estariam assegurados) e na relação de forças (a Alemanha ficou a dever durante 70 anos). E, o que não seria menor, a história seria corrigida segundo o princípio da responsabilidade.

Pode então a Grécia conseguir esta reparação? A resposta pragmática é que não tem a relação de forças que lhe permita impô-la, sobretudo porque na Alemanha não mobiliza o apoio suficiente para desequilibrar o governo de Merkel e dos social-democratas do SPD.

A força interna de Tsipras: o apoio popular

Não é portanto entre os governos da Europa que a Grécia encontra aliados. A força do governo está antes na sua popularidade interna: uma pesquisa de 21 de março dava ao Syriza 47,8% de intenções de voto, um resultado esmagador.

Numa Europa sem alternativas, como argumenta o Prémio Nobel da Economia Edmund Phelps, esta resistência da sociedade grega é um sinal forte. Como vai ser utilizada, no entanto, é ainda uma questão em aberto. Berlim pretende usar o desgaste, para assim ganhar tudo: vergar a Grécia, vacinar a Europa, impedir o sucesso de um governo de esquerda, destruir a sua estrutura política. A Grécia parece estar a usar táticas dilatórias mas, em vez de ganhar tempo, tem perdido tempo e tem sacrificado o momento do impacto inicial da novidade e da surpresa: a rotina está a instalar-se nas negociações e nas chantagens europeias.
 
Abril poderá ser por isso o mês em que o jogo se joga. Ou o governo continua a apresentar listas de novas medidas, que serão sempre criticadas por Berlim e Bruxelas por serem austeridade a menos, e haverá sempre a exigência de mais medidas, ou prepara um referendo ou outra mobilização democrática para medidas excepcionais. Tem várias ao seu dispor: o incumprimento da dívida e o controle de capitais, mesmo sem sair imediatamente do euro, porque não há meio legal nos Tratados europeus para o obrigar a tal. Mas, para essa resposta, precisa de controlar o sistema bancário que, aliás, será imediatamente estrangulado pelo Banco Central Europeu. E essa guerra só pode conduzir à emissão do dracma, ou seja, à soberania monetária. A dificuldade evidente é que o que é mais necessário é cada vez mais difícil, com o tempo a correr contra os gregos.

Créditos da foto: Martin Schulz / Flickr

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