Pedro
Marques Lopes – Diário de Notícias, opinião
1-E
pronto, lá terei de escrever que não faço ideia se José Sócrates é culpado ou
inocente dos crimes pelos quais está indiciado. Embarco assim, conscientemente,
numa perversa nau, naquela que impõe que eu faça uma declaração que não devia
ser necessária: presumir a inocência de um cidadão até sentença transitada em
julgado.
Mas
a minha parcial capitulação não fica por aí. Declaro que, à luz da minha moral,
fiz o meu julgamento sobre algumas condutas de José Sócrates; que, segundo
aquilo que considero uma boa prática política, fiz uma apreciação sobre atos
praticados pelo ex-primeiro-ministro. E, tendo necessidade de o afirmar, cedo
aos que desconhecem os fundamentos do Estado de direito ou que, pura e
simplesmente, não o apreciam. Cedo - e acabo por colaborar com os que teimam em
confundir julgamentos morais e/ou políticos com processos judiciais, fazendo
que se misturem na opinião pública, trazendo apreciações e julgamentos morais
ou políticos para territórios que são apenas os da justiça. Nos processos em
que o Estado precisa de provar que alguém praticou um crime devidamente
tipificado, em que as evidências para condenar um cidadão têm de ser
irrefutáveis, em que não se pode condenar alguém porque uma ou muitas pessoas
estão convencidas de que esse alguém praticou crimes mesmo não havendo provas
suficientes e em que essas provas têm de ser recolhidas através de
procedimentos definidos na lei.
Quem
apregoa que quer os direitos fundamentais assegurados, as garantias processuais
protegidas, o Estado de direito estritamente respeitado no caso Sócrates, como
em qualquer outro processo, é calmamente apelidado de advogado do
ex-primeiro-ministro. Mais, basta que se diga que é preciso que as provas da
eventual prática de crimes sejam claras - na Operação Marquês ou noutra
qualquer - e o processo transparente para se estar a fazer campanha pelo
ex-primeiro-ministro. Chega a estes limites a perversidade ou a inconsciência
dos valores em causa.
Os
que há muito dizem que existem problemas graves na justiça, que tem havido
demasiadas condenações por convicção, que se utilizam os media para julgamentos
que não se conseguem fazer em tribunais, que não podemos confundir avaliações
políticas ou morais com justiça, que o sistema judicial está com gravíssimos
problemas e que esses problemas estão a afetar as liberdades e os direitos dos
cidadãos estão a perder. A perder face àqueles que lhes bastam as suas
percepções, as suas fezadas para acharem que podem pedir para que alguém vá
para um calabouço, face a quem pensa que chega que "toda a gente sabe que
o gajo é malandro" para que a culpa esteja formada.
Mas
lembrem-se bem dessa possível vitória, porque quando perceberem que não é de
Sócrates que se está a falar mas dos direitos de todos nós, é capaz de ser
tarde demais. Nessa altura pode ser que percebam que perdemos todos.
2-Estou
cansado, sempre que se fala do caso Sócrates, da conversa do deixar à justiça o
que é da justiça e à política o que é da política. Mas afinal de que falamos
quando falamos de política? É que não há questão mais política do que as
garantias processuais de um cidadão. Nada mais político do que a necessidade de
um arguido saber do que o acusam e porque é que o acusam. Nada mais político do
que deixar alguém preso seis meses sem lhe dizer do que é acusado e em que
provas é sustentada essa acusação. Nada mais político do que aparecer um
interrogatório nas páginas de uma revista depois de nos ser dito que se ia ser
especialmente rigoroso na preservação do segredo dum processo. Nada mais
político do que o direito de alguém apenas em casos absolutamente excepcionais
ser privado da liberdade sem julgamento. Nada mais político do que a luta
contra os julgamentos na praça pública. Nada mais político do que fazer sair
peças processuais em segredo de justiça para gerar presunções de culpabilidade.
Nada mais político do que deixar que desembargadores fundamentem decisões com
frase como "quem cabritos vende e cabras não tem, dalgum lado lhe
vem". Nada mais político do que prender para investigar.
Mas
então não é politicamente relevante tudo o que diz respeito ao funcionamento da
justiça? Bom, claro que podemos concluir que quem começa sistematicamente o seu
discurso pela tal frase acha que está tudo bem com a justiça portuguesa, que
não há indícios suficientemente graves para que haja uma discussão sobre os
evidentes problemas, que há assuntos mais prementes do que a saúde do edifício
judicial.
Com
uma campanha eleitoral em curso, não será a melhor altura para que os partidos
nos digam se estão confortáveis com os atropelos que estamos a observar num
processo como o do ex-primeiro-ministro e tantos outros e quais são as medidas
que propõem para mudar o que precisa de ser mudado?
Se
calhar não dá jeito, seria, às tantas taticamente, mau falar de justiça durante
uma campanha estando um ex-primeiro-ministro em prisão preventiva. Não sei o
que será pior: um líder de qualquer um dos partidos concorrentes às eleições
que não percebe que temos um problema sério com a justiça ou um que não fala
desses problemas por não lhe dar jeito.
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