terça-feira, 28 de julho de 2015

A TURQUIA EM PERIGO



Thierry Meyssan*

Enquanto a imprensa ocidental saúda a autorização dada pela Turquia aos Estados Unidos afim de utilizar as suas bases militares para combater o Daesh, Thierry Meyssan analisa as tensões internas no país. Segundo ele, a manutenção de Erdoğan no poder, junto com a ausência de nova maioria aquando das próximas eleições parlamentares, conduzirá, de imediato, à guerra civil.

Desde há uma quinzena de anos que George Friedman, o fundador da agência de privada de inteligência Stratfor, tenta persuadir os dirigentes ocidentais que os BRICS não jogarão papel importante no XXIº século, mas, que a Turquia islâmica o fará [1]. Friedman é um antigo colaborador de Andrew Marshall, o estratega do Pentágono de 1973 a 2015 [2].

A propaganda a favor do islamismo turco, como modelo económico e político, foi reforçada pelo patronato islâmico turco, via certas personalidades francesas que se deixaram corromper (Anne Lauvergeon, Alexandre Adler, Joachim Bitterlich, Hélène Conway-Mouret, Jean Francois Cope, Henri de Castries, Augustin de Romanet, Laurence Dumont, Claude Fischer, Stéphane Fouks, Bernard Guetta, Elisabeth Guigou, Hubert Haenel, Jean-Pierre Jouyet, Alain Juppé, Pierre Lellouche, Gérard Mestrallet, Thierry de Montbrial, Pierre Moscovici, Philippe Petitcolin, Alain Richard, Michel Rocard, Daniel Rondeau, Bernard Soulage, Catherine Tasca, Denis Verret, Wilfried Verstraete, para só citar estes).

No entanto, a Turquia está agora à beira da implosão, a ponto da sua sobrevivência como Estado estar directamente ameaçada.

O projecto de desmantelamento da Turquia

Em 2001, os estrategas straussianos do departamento da Defesa delineavam uma remodelação do «Médio-Oriente Alargado», que previa a divisão da Turquia em benefício de um Curdistão independente, reunindo os curdos da actual Turquia com os do Iraque e do Irão. Este projecto supunha a saída da Turquia da Otan, a reconciliação entre as tribos curdas, a quem tudo separa— aí incluindo a língua —e consideráveis deslocamentos de população. O Coronel Ralph Peters evocou este plano num artigo da Parameters, logo em 2001, antes de a publicar em mapa, em 2005. Peters é um discípulo de Robert Strausz-Hupé, o antigo embaixador dos Estados Unidos em Ancara, e o teórico do Novus orbis terranum (a «Nova Ordem Mundial») [3].

Este projecto insano ressurgiu, há um mês atrás, com o acordo israelo-saudita, estabelecido à margem dos negociadores dos 5+1 sobre o nuclear iraniano [4]. Telavive e Riade contavam com a Turquia para derrubar a República Árabe Síria. Na realidade, Ancara tinha-se firmemente empenhado neste sentido, logo que a Otan completara a transferência do Landcom (comando conjunto das Forças Terrestres) para Esmirna, em julho de 2013 [5]. Sentindo-se de mãos atadas pela passividade norte-americana, Erdoğan havia, então, organizado o bombardeamento químico, sob falsa bandeira, da Ghouta (zona rural dos arredores de Damasco- ndT), para forçar a Otan a intervir. Mas em vão. Ele repetiu um ano mais tarde, prometendo usar a Coligação Internacional anti-Daesh para tomar Damasco. Israel e a Arábia Saudita, que têm suportado os custos destas promessas, não cumpridas, não terão qualquer escrúpulo em provocar a guerra civil na Turquia.

A mudança de política em Washington

No entanto, dois factores parecem opôr-se ao desmantelamento da Turquia.

Primeiro, o próprio secretariado da Defesa. A entrada do novo estratega, o coronel James H. Baker, que não é um straussiano, na saída de Andrew Marshall. Ele raciocina no quadro dos princípios da paz de Westfália e orienta o Pentágono para uma confrontação de tipo Guerra fria [6]. A visão de Baker corresponde à da nova National Military Strategy(Estratégia Nacional Militar- ndT) [7]. Além disso, ela é partilhada pelo novo chefe de estado-maior inter-armas, o general Joseph Dundord [8]. Por outras palavras, o Pentágono teria abandonado a «estratégia do caos» [9] e desejaria agora apoiar-se, de novo, na acção dos Estados.

Em segundo lugar, preocupada pelo possível deslocamento do Emirado islâmico («Daesh») do Levante para o Cáucaso, a Rússia negociou —com a concordância de Washington— um acordo entre 

• a Síria (actualmente atacada pelo Daesh),
• a Arábia saudita (actual principal financiadora da organização terrorista)
• e a Turquia (que assegura o comando operacional da organização).

Este plano foi apresentado, a 29 de junho, pelo presidente Vladimir Putin ao ministro sírio dos Negócios Estrangeiros, Walid Mouallem, e à conselheira especial do presidente Bachar el-Assad, Bouthaina Shaaban [10]. Ele foi imediatamente seguido de trocas entre as partes.

• A 5 de julho, uma delegação dos serviços secretos sírios foi recebida pelo príncipe herdeiro saudita, Mohamad ben Salman.
• A Turquia recebeu um emissário oficial de Damasco, e, depois enviou o seu a Damasco. 
Após a assinatura do acordo dos 5+1, parou o seu apoio ao Daesh e prendeu 29 passadores [11].

Dois tipos de desenvolvimento são, pois, actualmente possíveis: seja uma deslocação da guerra da Síria para a Turquia, seja uma coordenação regional contra o Daesh.

A situação na Turquia

Seja como fôr, a Turquia transformou-se no decurso destes últimos quatro anos.

Primeiramente, a sua economia afundou-se. O seu envolvimento na guerra contra a Líbia privou-a de um dos seus principais clientes, e ela não tirou daí nenhum benefício porque esse cliente se tornou insolvente. O seu envolvimento na guerra contra a Síria foi menos dramático, porque o mercado comum sírio-iraniano-turco estava ainda em fase embrionária. Mas, o efeito acumulado destas duas guerras quebrou o crescimento do país, que está a ponto de tornar-se negativo. Por outro lado, uma parte da economia da Turquia está actualmente baseada na venda de produtos fabricados para as grandes marcas europeias, que são desviados dos circuitos comerciais legais sem o conhecimento dos seus comanditários. Esta pirataria maciça traz, agora, dano à economia da União Europeia.

Em segundo lugar, para conservar o poder Recep Tayyip Erdoğan preveniu-se de um golpe militar prendendo oficiais superiores e acusando-os de conspirar contra o Estado. Numa primeira fase, ele atirou-se à rede Gládio da Otan (Ergenekon na sua versão turca) [12]. Depois, numa segunda etapa, ele mandou prender os oficiais que, com o fim da Guerra Fria, encaravam uma mudança de alianças e tinham estabelecido contactos com o Exército Popular Chinês, acusando-os de pertencer ao mesmo grupo do Ergenekon, o que não fazia qualquer sentido [13]. Em última análise, como resultado destas purgas, a maioria dos oficiais superiores foi presa e encarcerada. Com o golpe, os exércitos turcos ficaram enfraquecidos e perderam a sua atração no âmbito da Otan.

Em terceiro lugar, a política islamista da administração Erdogan dividiu profundamente o país e fez nascer um ódio, primeiro entre laicos e religiosos, depois entre as comunidades sunitas, os curdos e alevitas. De tal modo que o paralelo com o cenário egípcio, que eu evoquei há mais de um ano, torna-se hoje em dia possível [14]. A Turquia tornou-se um barril de pólvora. Bastará uma faísca para fazer rebentar uma guerra civil que ninguém poderá parar, e que devastará o país de forma permanente.

Em quarto lugar, a rivalidade entre o clã islamita Erdoğan, o Millî Görüş (criado nos anos 70 pelo antigo primeiro-ministro Necmettin Erbakan), e o Hizmet de Fethullah Gülen destruiu o partido no poder, o AKP. As duas escolas partilham a mesma visão obscurantista do Islão (Islã-br), mas, Fethullah Gulen (que agora vive nos Estados Unidos) foi recrutado para a CIA, por Graham E. Fuller, e prega uma aliança de crentes em redor da Otan cristã e de Israel, enquanto o Millî Görüş defende o supremacismo muçulmano. Além disso, não se percebe como os seguidores do ex-presidente Turgut Özal (igualmente islamistas, e como tal membros do AKP, mas favoráveis ao reconhecimento do genocídio arménio, à igualdade em direito dos curdos, e a uma federação de estados turcófonos da Ásia Central) iriam continuar a vincular o seu futuro ao de Erdoğan.

Em quinto lugar, ao aceitar a proposta do presidente Vladimir Putin para a construção do gasoduto Turkish Stream, o presidente Erdoğan atacou directamente a estratégia global dos Estados Unidos. Na realidade, este gasoduto, se for para a frente, abrirá uma via de comunicação continental e ameaçará a doutrina do «contrôlo de espaços comuns», através da qual Washington mantém a sua supremacia sobre o resto do mundo [15]. Ele permitirá à Rússia contornar o caos ucraniano e, por outro lado, ultrapassar o embargo europeu.

A Otan não quer mais continuar o jogo

Se os laços pessoais de Erdoğan com a al-Qaida foram demonstrados pela Justiça turca, não resta mais a menor dúvida que ele dirige pessoalmente o Daesh. De facto : A organização terrorista é, oficialmente, comandada por Abu Bakr al-Baghdadi. Mas este personagem só é colocado à cabeça porque é um membro da tribo de Qurays e, portanto, um descendente do Profeta. O comando executivo foi confiado a Abu Alaa al-Fadel e Fadel al-Hayali (chamado Abu Muslim al-Turkmani), dois Turcomenos agentes do MIT (serviços secretos turcos). Os outros membros do estado-maior são originários da antiga URSS. As exportações de petróleo em bruto, que foram recentemente retomadas, em violação da Resolução 2701 do Conselho de Segurança da Onu, não são mais asseguradas pela Palmali Shipping & JSC, a companhia do bilionário turco-azeri Mubariz Gurbanoğlu, mas pela BMZ Ltd., a empresa de Bilal Erdoğan, o filho do presidente. Os importantes cuidados aos jiadistas feridos do Daesh são fornecidos pelo MIT, na Turquia, num hospital clandestino situado em Sanliurfa e colocado sob a supervisão de Sümeyye Erdoğan, a filha do presidente [16].

Foi por isso que, no dia 22 de julho, o presidente Barack Obama telefonou ao seu homólogo turco, Recep Tayyip Erdoğan, e o ameaçou a sério. Segundo as nossas informações, o presidente norte-americano disse ter acordado com o Primeiro-ministro britânico, David Cameron, a exclusão da Turquia da Otan – o que implica a guerra civil e a divisão em dois Estados— se a Turquia.

1. não rompe imediatamente o acordo sobre o gaz com a Rússia ;
2. não participa, de imediato, na coligação internacional anti-Daesh.

O presidente Erdoğan que tem uma formação islâmica, mas não uma política [17], reagiu ao mesmo tempo tentando acalmar Washington e prosseguindo os seus caprichos. 

1. A Turquia autorizou a Otan a utilizar as suas bases em território turco para a luta contra o Daesh, prendeu os passadores do Daesh, e participou de bombardeios simbólicos contra o Daesh na Síria;
2. Mas, por outro lado, Erdoğan empreendeu esforços bem mais importantes contra a sua oposição curda que contra o Daesh, bombardeando maciçamente as posições do PKK no Iraque e prendendo membros do PKK na Turquia. O PKK respondeu com um comunicado lacónico registando que o Governo acabava de reiniciar, unilateralmente, as hostilidades;
3. Ignoramos, de momento, as decisões relativas ao gasoduto Turkish Stream.

Chegamos, agora, ao limite dos 45 dias de prazo constitucional, no termo do qual o chefe do principal grupo parlamentar deverá constituir um governo. Como os três principais partidos da oposição, aconselhados pela embaixada dos Estados Unidos, se recusaram juntar com o AKP, Ahmet Davutoglu não teve êxito. Novas eleições legislativas deverão ser convocadas. Tendo em conta, por um lado a divisão do AKP (islamitas) e por outro, o ódio entre o MHP (conservadores) e o HPD (esquerda e curdos), será difícil encontrar uma maioria. Se for este o caso, ou se o AKP conseguir manter-se no poder, a Turquia entrará em guerra civil.

Thierry Meyssan* - Tradução Alva - Voltaire.net

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación(Monte Ávila Editores, 2008).

Na foto: R.T.Erdoğan perdeu o contrôlo da situação

Notas
[1] The Next 100 Years: A Forecast for the 21st Century (Ing- « Os Próximos Cem Anos : Uma Projecção para o Século 21»- ndT), George Friedman (2009).
[2] “Depois de 42 anos, Andy Marshall deixa o Pentágono”, Tradução Alva,Rede Voltaire, 26 de Janeiro de 2015.
[3] A propósito dos trabalhos de Strausz-Hupé e de de Peters, é de se reportar a L’Effroyable imposture 2, pp.117-224.
[4] “Os projectos secretos de Israel e da Arábia Saudita”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 22 de Junho de 2015.
[6] “Ashton Carter nomeia o novo estratega do Pentágono”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 23 de Maio de 2015.
[7] « L’Europe encore en première ligne », par Manlio Dinucci, Traduction Marie-Ange Patrizio, Il Manifesto (Italie), Réseau Voltaire, 16 juillet 2015.
[8] “O general Dunford aponta a Rússia como a ameaça principal”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 16 de Julho de 2015.
[9] “Stumbling World Order and Its Impacts”, by Imad Fawzi Shueibi,Voltaire Network, 5 April 2015.
[10] “A Rússia puxa a brasa às suas sardinhas”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 13 de Julho de 2015.
[11] “Primeiras consequências do acordo 5+1”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 20 de Julho de 2015.
[12] « Ergenekon : une légende urbaine ? », par Orhan Kemal Cengiz;. «L’organisation Ergenekon mise en cause pour ses relations privilégiées avec Hizb ut-Tahrir », par Mutlu Özay et Mustafa Turan, Traduction Nathalie Krieg, Today Zaman (Turquie), Réseau Voltaire, 9 juillet et 3 août 2009.
[13] “Turquia : O Golpe de Estado Judicial do AKP”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Diário Liberdade (Portugal), Rede Voltaire, 19 de Agosto de 2013.
[14] “A divisão da Turquia”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 31 de Março de 2014.
[15] “The Geopolitics of American Global Decline”, by Alfred McCoy, Tom Dispatch (USA), Voltaire Network, 22 June 2015.
[16] « Le rôle de la famille Erdoğan au sein de Daesh », Réseau Voltaire, 26 juillet 2015
[17] “Em direção ao fim do sistema Erdoğan”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 17 de Junho de 2015.

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