Colonialismo
e escravatura
Político
indiano faz em Oxford defesa robusta de reparações e recebe apoio do
primeiro-ministro
Alberto
Castro, Londres
O
primeiro-ministro indiano, Narenda Modi, apoia as reivindicações para que a
Grã-Bretanha pague reparações pelos danos causados durante o domínio colonial.
O
posicionamento de Modi surge na sequência de um vídeo de Shashi Tharoor,
político e escritor indiano, postado no YouTube no passado 14 de julho e que
rapidamente se tornou viral, com mais de dois milhões de visualizações e
provocando um vigoroso e debate online. No vídeo, de 15 minutos, Tharoor
defendeu, em robusto argumento em favor da reparação, que o Reino Unido deve
compensar economicamente as suas antigas colônias, para com as quais
tem igualmente uma dívida moral. Ele foi um dos oradores convidados pela Oxford
Union Society, uma associação de debates na cidade de Oxford, Inglaterra, para
a defesa favorável da moção ''Esta casa crê que a Grã-Bretanha deve reparações às
suas antigas colônias'', evento realizado em 28 de Maio último.
"A
ascensão da Grã-Bretanha por 200 anos foi financiada pelas
suas depredações na Índia'', disse Tharoor argumentando que os
indianos ''pagaram literalmente pela sua própria opressão'' na medida em que,
sustenta, no final do século 19 a Índia tornara-se na maior vaca
leiteira do Império Britânico, seu maior produtor e exportador de bens a nível
mundial e fonte de empregos altamente pagos para funcionários britânicos.
Mas
o assunto só ganhou destaque nas mídias britânicas e mundial quando em evento
no parlamento de Nova Deli na última quinta-feira, o primeiro ministro Narendra
Modi, com visita prevista para Londres no final do ano, elogiou assim a
reivindicação do compatriota: '' O discurso de Tharoor refletiu os sentimentos
de patriotas indianos sobre o assunto e mostrou quanta impressão alguém pode
deixar com argumentos efetivos ao dizer coisas certas no lugar certo'', citado
pela imprensa inglesa.
Quanto
ao grande debate da Oxford Union, associação independente da famosa
universidade mas cujos membros derivam primeiramente dela, ele foi justificado
pela organização como necessário perante crescentes reclamações para compensações às
antigas colônias por séculos de exploração e abuso. Lembrando posicionamentos
prós e contras de políticos britânicos sobre o assunto, a Oxford Union
perguntou: ''Devem os políticos britânicos mais do que suas palavras?''
A
reivindicação de reparações aos países afetados pelo passado colonial da
Inglaterra e pela sua participação no comércio transatlântico de escravos
sempre foi um tema presente desde o fim do Império mas quase todos os
governantes britânicos sempre se mostraram relutantes e mesmo desconfortáveis
no tratamento do assunto. Poucos o abordam com firmeza e seriedade.
Em
2007 o trabalhista Ken Livingstone, então prefeito de Londres, em um discurso
emotivo alusivo ao aniversário dos 200 anos de abolição da escravatura, pediu
sinceras desculpas pelo papel da cidade no comércio de escravos. ''É
chocante que o nosso país tenha uma vez participado na venda de seres humanos em
grande escala'', escreveu o conservador William Hague, autor da biografia
sobre William Wilbeforce, famoso ativista pela abolição da escravatura, em um
artigo publicado no ano passado no Evening Standard. No entanto, enquanto
ministro dos Negócios Estrangeiros, não foi além das palavras quando em 2013
foi pressionado para o fazer pelos países do Caricom, bloco de cooperação
política e econômica do Caribe. Em uma nota o seu gabinete nada mais fez do que
lamentar as iniquidades da escravatura, considerando a mesma um assunto do
passado fora da responsabilidade de governos de hoje.
Voltando
ao debate, além do político indiano, o painel em favor da moção contou com
Aloun Ndombet Assamba, advogado, político e diplomata jamaicano,
George Ayittey, economista e autor ganense, fundador e presidente do Free
Africa Foundation. Do lado oposto estiveram Richard Ottaway, político
conservador inglês e ex-presidente do Comitê dos Assuntos Estrangeiros,
William Roger Louis, historiador americano do Império Britânico e John M
MacKenzie, historiador britânico.
Contrariando
o argumento que sugere que compensações não ajudariam as pessoas certas, que
houve sacrifícios de ambos lados e que, pelo contrário, poderiam mesmo ser
usadas como instrumentos de propaganda política e de encorajamento de ditadores
como Robert Mugabe, Tharoor usou de humor para lembrar que antigamente no
Caribe se costumava a assustar as crianças mal comportadas com o fantasma de
Francis Drake, famoso corsário e pirata elisabetiano. ''Agora dizem que o
Mugabe vem aí. Ele é uma espécie do Drake dos nossos tempos''. disse arrancando
risos e aplausos da audiência, como em quase toda a sua fala.
Usou
de uma analogia para criticar os que falam jubilosamente em sacrifícios de
ambos os lados: ''O ladrão chega em tua casa, arromba a porta e despoja-a
violentamente e você diz que o que aconteceu foi sacrifício de ambos os lados.
Lamento dizê-lo mas esse não é um argumento aceitável'', disse obtendo mais
ovações.
Dizendo-se
preparado para aceitar o argumento de que ''não se pode calcular uma quantia
exata'' para avaliar as formas de horror que as pessoas sofreram salientou
porém a premissa de que as reparações não devem ser consideradas como
uma "ferramenta para capacitar"alguém, mas sim como um instrumento
através do qual os britânicos podem "expiar" pelos
pecados do passado. ''O problema é que existe uma dívida e ela deve
ser reparada'', salientou nas suas conclusões finais. Esgrimidos os
argumentos prós e contras, a moção terminou com uma votação de 185
contra 56 favorável ao lado de Thaoor.
Mas
dois pontos do discurso do político indiano mereceram reparos de um conhecido
compatriota seu, o editor, colunista e escritor Minhaz Merchant. Em um artigo
de opinião publicado na passada quinta-feira (23) no DailyO, um portal de
opinião online do conglomerado midiático India Today, ele subscreve a
validade de quase todos os argumentos do compatriota mas defende que não basta
um pedido de desculpas e que a dívida da Grã-Bretanha à Índia pode
ser quantificada, rondando hoje a casa de três trilhões de dólares americanos.
Para
o colunista, o comércio de escravos é ''um dos grandes segredos escondidos da
colonização britânica'' e a África, atingida duas vezes pela rapacidade
europeia (primeiro pelo comércio de escravos, depois pela divisão colonial do
continente no século 19), ainda não desenvolveu estudos acadêmicos
históricos para lidar com o assunto e expor os horrores completos do tráfico de
escravos. Merchant sustenta que a razão para que não seja pedida uma
desculpa oficial aos africanos é que a mesma abriria comportas para imensas
reparações financeiras e substanciais danos punitivos que levariam os europeus à bancarrota.
Eis
alguns dos pontos da argumentação de Shashi Tharoor:
Economia
e desindustrialização da Índia
Quando
os britânicos chegaram à costa da Índia no inicio do século 18, a
quota deste país na economia mundial era de 23%, tão grande quanto a de toda a
Europa junta. No momento de sua saída ela diminui para menos de 4% pela simples
razão da Índia ter sido governada para o benefício da Grã-Bretanha cuja
ascensão nos 200 anos seguintes foi financiada à custa da depredação
da ex-colônia.
A
Revolução Industrial britânica foi feita com a desindustrialização da Índia
cuja industria têxtil foi destruída e substituída pela manufatura na Inglaterra
usando matéria prima indiana e exportando o produto final de volta, à
semelhança do que fez com outras ex-colônias. Tecelões indianos
tornaram-se em pedintes e em vez de grande exportador de produtos têxteis
acabados a Índia tornou-se em um importador de produtos britânicos ao mesmo
tempo que a sua cota de exportação mundial caía de 27% para 2%.
A
desumanidade de Churchill
Enquanto
a Grã-Bretanha explorava impiedosamente a Índia, entre 15 a 29 milhões de
indianos morriam de forma trágica, mortes desnecessárias em resultado da fome.
A última fome em larga escala a ter lugar na Índia foi quando o país estava sob
domínio britânico. Cerca de quatro milhões de bengalis morreram na Grande Fome
de Bengala em 1943 depois de Winston Churchil ter deliberadamente ordenado o
desvio de alimentos de civis indianos famintos para soldados britânicos bem
equipados e para estoques europeus. ''A fome de uns bengalis mal alimentados é
menos séria de que a de gregos resistentes''- disse o tão celebrado herói
inglês. Quando alguns oficiais conscientes alertaram em telegrama o então
primeiro-ministro sobre a escala da tragédia causada por suas decisões, a única
resposta de Churchill foi perguntar irritadamente: ''Porque Gandhi ainda não
morreu?''.
O
mito do despotismo iluminado
O
imperialismo britânico justificou-se a ele mesmo com o pretexto de que era um
despotismo iluminado, conduzido para o benefício dos
governados. A conduta desumana de Churchill em 1943 desmascarou este
mito. Violência e racismo eram a realidade da experiência colonial. Não
admirava que o sol nunca se punha no Império britânico porque nem mesmo Deus
confiaria nos ingleses na escuridão. O imperialismo britânico triunfou não
apenas por conquista e fraude em grande escala, mas por fazer explodir os
rebeldes aos bocados das bocas dos canhões, massacrando manifestantes
desarmados em
Jallianwala Bagh e sustentando a iniquidade através de um
racismo institucionalizado. Nenhum indiano na era colonial foi autorizado a
sentir-se britânico, sempre foi um vassalo, nunca um cidadão.
Vangloriação
de colonialistas e escravocratas
Um
quinto da elite britânica victoriana deve o seu dinheiro ao transporte de 3
milhões de africanos através do Atlântico. Quando da abolição da escravatura
nas colônias britânicas em1833, o que aconteceu foram compensações de 20
milhões de libras esterlinas pagas na altura pelo governo britânico como
reparação aos que perderam suas propriedades, entre eles John
Gladstone.(I) Nenhuma compensação para os escravizados que sofreram,
foram oprimidos e perderam suas vidas.
Por
seu turno, colonialistas como Robert Clive (II) compraram ''burgos carcomidos''
na Inglaterra com o produto de suas pilhagens na Índia. Gabavam publicamente de
sua autocontenção em não roubar mais do que fizeram. E os britânicos tiveram a
ousadia de o chamar de ''Clive da Índia'', como se ele pertencesse ao país,
quando o que ele realmente fez foi assegurar-se de que grande parte do país o
pertencia.
Estradas
e Ferrovias
A
construção dos Ferroviárias e estradas é muitas vezes apontado como uma dádiva
do governo britânico, ignorando o fato óbvio de que muitos países construíram
estradas e caminhos de ferro sem terem de ser colonizados para o fazer. Não
foram construídas para servir populações locais mas para servir os interesses
britânicos, para transportar matérias-primas do interior para os portos e
serem depois embarcadas para a Grã-Bretanha. A necessidade de movimento
das populações locais eram acidentais, exceto quando servia interesses
coloniais. Nenhum esforço foi feito para garantir que o transporte de
matérias primas combinasse com a demanda de transporte para pessoas. Na
verdade, as ferrovias indianas foram construídas com imensos incentivos
oferecidos pelo governo britânico ao seus investidores e garantidos com
impostos da Índia pagos pelos indianos. Em consequência o custo de uma
milha de uma ferrovia indiana era o dobro de uma milha no Canadá e na Austrália
porque havia muito dinheiro sendo pago para retornos extravagantes. A
Grã-Bretanha obteve todos os lucros, controlou a tecnologia e forneceu todo o
equipamento. Os benefícios resultaram da iniciativa privada britânica
e do risco público indiano
Ajuda
britânica e democracia
Em
anos recentes, mesmo com o debate sobre reparações a aumentar de tom, políticos
britânicos têm, de facto, se perguntando se países como a Índia devem ainda
receber ajuda econômica básica às custas do contribuinte britânico. Para
começar, a ajuda recebida é de 0,4%, o que é menos da metade de 1% do PIB da
Índia. A ajuda britânica, que está longe de montantes que um debate
reparação lançaria, é apenas uma fração do subsídio de fertilizantes
da Índia aos seus agricultores, o que pode ser uma metáfora apropriada para
este argumento. Os britânicos podem ver o nosso amor pelo cricket ou pelo
idioma inglês, ou até mesmo pela democracia parlamentar, evocando memórias do
Raja como em séries de televisão como Indian Summers, com Simla, festas no
jardim e indianos gentis. Para muitos indianos, no entanto, é uma história
de pilhagem, massacres, derramamento de sangue, do desterro do último imperador
Mogol em um carro de boi para a Birmânia. É um pouco enriquecedor oprimir, escravizar, matar,
torturar, mutilar pessoas por 200 anos e no
finalcomemorar o fato de que eles são democráticos. A democracia
foi-nos negada, por isso tivemos de arrebatá-la, apreendê-la de
vocês.
A
Índia nas guerras mundiais
A
Índia contribuiu com mais soldados para as forças britânicas que lutaram na
Primeira Guerra Mundial do que a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e África do
Sul juntos. Um sexto de todas as forças britânicas era indiana e 54
mil indianos perderam suas vidas. Apesar de sofrer recessão,
pobreza e uma epidemia de gripe, as contribuições da Índia em dinheiro, pessoal
e material diverso amontam para 8 bilhões de libras esterlinas em dinheiro de
hoje.
Dois
milhões e meio de indianos também lutaram pelos britânicos na Segunda Guerra
Mundial. Do total da dívida de 3 bilhões de libras (em 1945) da Grã-Bretanha, 1,25
bilhão é devido à Índia. Ainda não foi paga.
Devolução
do diamante Koh-i-Noor
Tanto quanto sei, a capacidade de reconhecer um erro do passado, o simples pedir de desculpas vai muito além de alguma percentagem do PIB em forma de ajuda. O que é importante não é o quantidade das reparações que o Reino Unido deve pagar, mas o princípio da expiação. Pessoalmente ficarei feliz com uma libra por ano pelos próximos duzentos anos como sinal de desculpas. E talvez a Grã-Bretanha pudesse gentilmente devolver o diamante Koh-i-Noor ao país do qual ele foi tirado!
Notas:
(I) Esclavagista e mercador escocês, pai de William Gladstone, político do século 19 que foi quatro vezes primeiro-ministro. Um estudo da UCL, Universidade de Londres, publicado em 2013 no The Independent com o título ''Vergonha colonial britânica'', mostra que cerca de 3,000 famílias britânicas beneficiaram de 20 milhões de libras em compensações pagas em resultado da abolição da escravatura. Entre elas, antepassados do atual premiê David Cameron. John Gladstone teria recebido o equivalente a 83 milhões de libras hoje como ressarcimento pela perda dos 2,508 escravos que tinha espalhados nas suas nove plantações na Jamaica e na Guiana, a maior de todas as compensações pagas pelo então governo britânico. O filho esteve fortemente envolvido nas reclamações do pai, segundo o estudo.
Tanto quanto sei, a capacidade de reconhecer um erro do passado, o simples pedir de desculpas vai muito além de alguma percentagem do PIB em forma de ajuda. O que é importante não é o quantidade das reparações que o Reino Unido deve pagar, mas o princípio da expiação. Pessoalmente ficarei feliz com uma libra por ano pelos próximos duzentos anos como sinal de desculpas. E talvez a Grã-Bretanha pudesse gentilmente devolver o diamante Koh-i-Noor ao país do qual ele foi tirado!
Notas:
(I) Esclavagista e mercador escocês, pai de William Gladstone, político do século 19 que foi quatro vezes primeiro-ministro. Um estudo da UCL, Universidade de Londres, publicado em 2013 no The Independent com o título ''Vergonha colonial britânica'', mostra que cerca de 3,000 famílias britânicas beneficiaram de 20 milhões de libras em compensações pagas em resultado da abolição da escravatura. Entre elas, antepassados do atual premiê David Cameron. John Gladstone teria recebido o equivalente a 83 milhões de libras hoje como ressarcimento pela perda dos 2,508 escravos que tinha espalhados nas suas nove plantações na Jamaica e na Guiana, a maior de todas as compensações pagas pelo então governo britânico. O filho esteve fortemente envolvido nas reclamações do pai, segundo o estudo.
(II)
Oficial inglês tido como o responsável por garantir a Índia para a Coroa
Britânica.
Link para o video: https://www.youtube.com/watch?v=f7CW7S0zxv4
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