Walter
Tondela é o responsável pela defesa de sete dos quinze activistas detidos o mês
passado em Luanda. A
equipa inclui outros seis advogados.
Walter
Tondela é o responsável (a equipa inclui outros seis advogados) pela defesa dos
activistas Luaty Beirão, Hitler Samussuku, Albano Evaristo Bingo Bingo, Afonso
Matias “Mbanza Hamza” e Sedrick de Carvalho.
A
história já é conhecida. No dia 20 de Junho, 13 jovens (os restantes são Manuel
“Nito” Alves, José Hata, Inocêncio Brito “Drux”, Fernando Tomás “Nicola”,
Nelson Dibango, Arante Kivuvu, Nuno Álvaro Dala, Benedito Jeremias, que ainda
não têm advogado) reuniram-se numa residência da Vila Alice. Analisavam e
discutiam um livro. Pensavam em formas de mudar o país. Osvaldo Caholo e
Domingos da Cruz foram detidos nos dias seguintes – e também são clientes de
Walter Tondela.
Foram,
de certa forma, surpreendidos com um efectivo policial totalmente armado e que
interditou várias ruas. Foram detidos – para a maioria, os problemas com a
Polícia começaram no dia em que decidiram ser críticos da liderança do país. No
dia em que quiseram manifestar-se contra o marasmo.
Ainda
no dia 20 de Junho, Luaty Beirão foi levado a sua casa para que a Polícia
pudesse recolher material informático e livros. Parte desse material não lhe
pertencia – era da esposa. Fala-se em flagrante delito.
Concorda
com as alegações da Procuradoria-Geral da República (PGR) quando diz que os 15
detidos foram apanhados em “flagrante delito” – e depois são conhecidos os
mandados de captura?
Como
é que podemos assumir um flagrante delito se depois o Serviço de Investigação
Criminal (SIC) divulgou os mandados de captura? Não se compreende esse paradoxo
entre o flagrante delito e o mandado de captura.
Se
alguém é apanhado a cometer um crime em flagrante delito não é preciso mandado
de captura para ser detido?
Não.
O flagrante delito diz respeito a uma acção criminal praticada e identificada
pela Polícia. Se já existiam mandados de captura logicamente não faz sentido
falar em flagrante delito. Tudo isto é contraditório. Os meus clientes estavam
a ler um livro de um autor norte-americano chamado Gene Sharp. O livro chama-se
“Da ditadura à democracia – Uma abordagem conceptual para a libertação”. Como
deve compreender, a leitura e a interpretação de qualquer livro – tenho à minha
frente o código de direito canónico e também costumo fazer as minhas
interpretações – não constitui nenhum delito criminal. Crime é toda a acção
típica, dolosa e punível pela lei penal. Fazer leituras em grupo não é crime
nenhum, seja qual for o livro.
Então
que conclusões podemos tirar deste caso – temos uma forte acção policial, que
prendeu 13 cidadãos que estavam numa casa a ler um livro (posteriormente,
outros dois cidadãos foram também detidos – Domingos da Cruz e Osvaldo Caholo)?
A
conclusão a que chegamos é que houve muitas arbitrariedades. Todos foram
detidos mas a Constituição, nos termos do artigo 64.º e seguintes, diz que no
momento em que o cidadão é detido pela Polícia tem de lhe ser exibido o
competente mandado de captura.
Mas
entretanto surgiram alguns documentos nesse sentido, alegadamente provenientes
do SIC. Quando os seus clientes foram detidos receberam algum documento ou
mandado de captura?
Não.
Nestas situações a Polícia deve também, segundo a lei, explicar as razões da
detenção e deixar que os detidos se comuniquem com os familiares ou com o
advogado – se tiverem advogado constituído. Estas formalidades todas foram
imediatamente violadas.
Osvaldo
Caholo é militar no activo, supostamente da Força Aérea Nacional. Isto muda
alguma coisa na abordagem jurídica do seu caso?
Falei
com alguns colegas que me estão a acompanhar na equipa de defesa e a conclusão
a que chegamos é que a responsabilidade criminal é individual. A reflexão que
fazemos é que este jovem, que nem se encontrava na casa da Vila Alice, foi
detido alguns dias depois apenas por ser amigo dos outros jovens. Todos temos
amigos ligados às forças de segurança. E aparece no processo, no nosso
entendimento, para sustentar a ideia que o grupo até tinha militares a querer
atentar contra o Estado. Foi uma detenção para fundamentar o caso.
O
objectivo é dar mais força à acusação, por envolver um elemento das Forças
Armadas?
Sim,
para dar mais força ao processo. Tanto mais que a própria comunicação social
pública até enfatiza a situação: “com realce a um oficial das Forças Armadas”.
É incompreensível.
Julga
que estão a utilizar todos os argumentos possíveis para compor o processo?
Talvez.
Porque nos interrogatórios que acompanhei não havia matéria criminal. Deveria
subsistir o princípio “in dubio pro reo”: em caso de dúvida, as decisões devem
reverter a favor do réu. Parece que começa a ser um risco, principalmente para
os jovens, que os cidadãos se encontrem para reflectir qualquer matéria
relativa ao país. Porque daqui a pouco qualquer tipo de reflexão será olhada
como um atentado – se a pessoa for a uma discoteca, a uma festa, se beber
muito, se incomodar as pessoas com barulho, aqui já é tudo normal. Mas os
jovens que estão a estudar ou a ler são um perigo. Isto desincentiva as pessoas
que querem seguir o caminho do saber, da leitura, da actividade intelectual. Há
uma contradição de valores.
Como
analisa o posicionamento do Procurador-Geral da República, João Maria de Sousa,
ao longo dos últimos dias?
Eu
acompanhei os interrogatórios do Nito Alves, do Luaty Beirão, do Domingos da
Cruz e do Evaristo Bingo Bingo. Em todos os interrogatórios, apesar de terem
sido feitos em separado, tive o cuidado de dizer ao procurador responsável pelo
caso que não havia nenhuma matéria criminal. O magistrado respondeu que há
matéria criminal: as provas. Isto está a complicar bastante o trabalho da
defesa. Ficamos sem compreender quais são as provas. Só que Sua Excelência, o
Procurador-Geral da República (conforme foi possível acompanhar pela TPA) foi
apresentar eventuais provas, ou factos relativos ao processo, aos grupos
parlamentares. Ficamos sem compreender esta atitude.
Porquê?
Este
é um processo judicial ou é um processo político? O parlamento é um órgão
legiferante por excelência, onde está expressa a vontade popular sufragada nas
urnas. Ali está o poder legislativo (que é o poder político). O poder judicial
é soberano e independente. Enquanto mandatários e defensores oficiosos não nos
foram ainda apresentadas quaisquer evidências (até porque o processo está em
segredo de justiça). Sendo assim, como é possível terem apresentado eventuais
provas ao poder político?
A
própria PGR, ao fazer este tipo de diligências junto da Assembleia Nacional,
poderá estar a violar o segredo de justiça?
Sim,
em sentido lato podemos dizer que sim. Numa fase em que decorrem as devidas
investigações estão a apresentar provas ao sector político do país… No sentido
lato da palavra, admitimos que a PGR está a violar o segredo de justiça.
José
Eduardo dos Santos falou sobre o caso na passada quinta-feira (2 de Julho), na
reunião do Comité Central do MPLA, e disse que quem quer atingir o poder por
“via da força não é democrata”. Lembrou o 27 de Maio de 1977. Deu a sua
opinião. Mas o caso ainda nem foi julgado, o que significa que os detidos são
inocentes (até que a sentença transite em julgado). Que análise faz destas
declarações?
Enquanto
técnico de Direito e como advogado não gosto de politizar o Direito. Prefiro
jurisdicionalizá-lo e, como não pude acompanhar os posicionamentos de Sua
Excelência, não tenho ainda comentários a fazer. Sobre os aspectos políticos, e
como apartidário que sou, assumo que o meu partido é a Igreja Católica. E o meu
líder é Jesus Cristo.
Quais
são os próximos passos que a defesa vai seguir? Sabemos que a lei permite a
detenção preventiva por 30 dias (com uma possível prorrogação) sem acusação
formada.
A
lei prevê 30 dias de prisão preventiva. Na nossa opinião, o legislador
constitucional defende a liberdade das pessoas. Então não conseguimos entender
esta detenção. Todos são réus primários, são muito jovens, e se a lei nos
termos do Artigo 28º (Crime contra a segurança do Estado) admite que o crime
tenha uma pena de prisão até três anos, também admite a liberdade provisória ou
a conversão da pena em multa de 360 dias. Actualmente estão a privar os
cidadãos de um direito fundamental. Seria perfeitamente normal restituir-lhes a
liberdade – é de lei – e as eventuais investigações poderiam continuar. Dentro
deste contexto estivemos, no dia 1 de Julho (quarta-feira), na penitenciária
onde os jovens estão detidos. E logo com um incidente preocupante. Chegamos por
volta das 14 horas e encontramos o Oficial Superior de serviço.
O
que aconteceu?
O
senhor oficial Manuel Hoji, acompanhado pelos adjuntos Alfredo Marques e
Firmino Bunga, disse-nos, a mim, ao meu colega Emanuel Rafael (que também faz
parte da equipa de defesa) e ao Kyari Duarte (irmão do Luaty Beirão) que o
acesso aos presos estava interdito. O Oficial Superior alegou que tem ordens
superiores nesse sentido. Lembrei-lhe que a Constituição garante o direito dos
advogados se comunicarem privadamente com os seus clientes. Foi-nos interdito
esse direito. É um problema sério para a defesa. Porque neste momento apenas o
Domingos da Cruz tem procuração junto aos autos – a confirmar que eu sou o seu
representante – e apenas por uma questão de lógica: há dois anos ele enfrentou
um processo na justiça que foi defendido pelo nosso escritório. Os restantes
continuam sem advogado formalmente constituído por falta de uma procuração.
Esse
facto limita as acções da defesa porque, formalmente, os detidos ainda não têm
advogado.
Nos
interrogatórios do Luaty Beirão, Evaristo Bingo Bingo e Nito Alves assinei como
defensor oficioso. Se tivéssemos as procurações, seria nossa pretensão dar entrada,
na semana passada, de um recurso relativo à detenção dos meus clientes. No dia
1 de Julho fomos até à Penitenciária de Calomboloca para resolver esta
situação. Apelei à Constituição, mostrei-lhes alguns artigos e o oficial
disse-nos que a Constituição, neste momento, não serve para nada. Que, neste
momento, a única coisa que se está a cumprir são as tais ordens superiores.
Estamos a falar de um Oficial Superior. A Constituição é a carta magna do país
e temos um oficial a colocá-la de parte e a ter uma posição
anti-constitucional.
Ou
mesmo anti-republicana.
Sim.
O Oficial Superior disse-nos, claramente, que a Constituição, neste momento,
não serve para nada. Agora é que ficamos mesmo sem compreender o que se passa.
Segunda-feira [hoje] vamos voltar à penitenciária. Estou a finalizar uma
informação sobre o sucedido para o bastonário da Ordem dos Advogados. Para
informá-lo deste incidente e para que possa haver alguma intervenção. Não
estamos a conseguir fazer o nosso trabalho. O Oficial Superior, o senhor Manuel
Hoji, (a ser verdade a orientação) está a negar justiça aos cidadãos detidos.
Porque praticamente nos disse que eles não têm direito a defesa.
Quem
transmitiu as tais ordens superiores? Tentou saber?
O
Oficial não referiu a proveniência. A única excepção que o Oficial admitiu
passava pelos advogados levarem uma procuração assinada pela PGR. Como todos
sabemos, a PGR é uma instituição do Estado. Mas a Ordem dos Advogados é uma
instituição independente. O exercício da profissão não está dependente de
autorização da PGR. Aliás, estão na lei e na própria Constituição as imunidades
e as garantias dos advogados. É inadmissível. Porque já não estamos na fase em
que o colectivo de advogados do país dependia do Ministério da Justiça. Somos
uma organização independente que não carece de autorização para trabalhar. Não
é a PGR que tem de dizer o que o advogado pode, ou não, fazer. Os advogados não
são funcionários da PGR. Aliás, a procuradoria é incompatível com a prática da
advocacia.
Os
detidos poderiam aguardar o desenvolvimento do processo em liberdade?
A
lei, e estamos a falar do decreto número 23/10, de 3 de Dezembro (Crimes contra
a Segurança do Estado), artigo 28º, diz claramente que este tipo de crimes são
punidos com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias. Eles foram
indiciados de terem praticado actos preparatórios de rebelião e de atentado
contra o Presidente da República e outros órgãos de soberania. É óbvio que a
PGR pode muito bem fixar uma caução equivalente a 360 dias para se restituir a
liberdade aos cidadãos – até porque eles gozam da presunção de inocência até
que a sentença transite em
julgado. Até ao momento presume-se que os meus clientes são
inocentes. Se essa presunção constitucional funciona até ao trânsito em
julgado, a prisão preventiva parece-me um atentado à nossa justiça.
Também
não são pessoas perigosas ou, pelo menos, que se saiba, não apresentam qualquer
historial de violência.
Também
não é o caso. Aliás, um dos grandes objectivos do direito penal moderno é a
ressocialização. A privação da liberdade é a última instância – e é entendida
como um procedimento necessário para que o indivíduo volte a ser útil à
sociedade. Veja que a actividade intelectual que eles estavam a produzir é
bastante útil. Numa província como Luanda, onde existem tantos delinquentes, o
Ministério Público utiliza a figura da caução a vários níveis. Mas a estes
jovens intelectuais, e alguns deles são professores, estão a privá-los de um
direito fundamental.
A
questão é que, ao longo da história de Angola, são variados os momentos de
divisão. Nunca deixaram de acontecer. Que sinais podemos retirar destes factos,
quando seria expectável que se vivesse um ambiente diferente, onde o foco
estivesse no reforço do processo democrático e da abertura política?
É
uma questão muito pertinente. Julgo que todos pretendemos construir, em Angola,
uma democracia e um espaço de liberdade. As detenções e as prisões arbitrárias
são um grande retrocesso. Devemos compreender que as diferenças não devem
servir para nos separar, mas sim para nos unir. Uma sociedade uniformizada é
uma sociedade infeliz. A diferença entre as pessoas deveria ser um motivo de
satisfação. Todos estes jovens se assumem como apartidários.
Não
são filiados em nenhum partido político?
Nada.
Em nenhum partido. E todos eles têm menos de 35 anos – não têm nenhuma ambição
para alcançar o poder. Apenas querem contribuir para a consolidação da
democracia. Querem o melhor para os angolanos. É um paradoxo. Eles deviam ser
aproveitados para dignificar ainda mais o país.
Ainda
por cima esse é o discurso oficial: que os jovens devem estudar, ler,
envolver-se nas questões do país e contribuir para um futuro melhor.
Tem
de haver espírito crítico. Em sociedades democráticas as críticas são normais.
Pensar diferente é um acto democrático e de cidadania. Neste caso há uma
inversão de valores. Estudar e discutir um livro é entendido como um acto
contrário à ordem pública – quando vemos pelas ruas meliantes, crianças fora do
sistema escolar, falta de medicamentos. Estes jovens, quando se manifestaram
nos termos do artigo 47.º da Constituição, que também prevê a liberdade de
reunião, foram sempre detidos. Mas estavam a exercer um acto de cidadania.
Daqui a pouco vamos ter uma sociedade com tantas sombras à volta de alguns
poderes (e até nas forças policiais) que nem dentro da nossa casa teremos
privacidade.
Pegando
neste caso como exemplo, podemos chegar ao ponto de nos baterem à porta de casa
para perguntar qual é o livro que estamos a ler.
É
isso. Qualquer dia fazem uma lista com o que se pode e não pode ler.
Rede
Angola - Miguel Gomes (Texto) e Ampe Rogério (Fotografia)
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