Reflexões
sobre o partido-movimento espanhol, a partir do livro de Pablo Iglesias.
Inovação: ser pós-capitalista, sem ser autoritário. Problema: poesia suprirá
lacunas teóricas?
Benedetto
Vecchi, no Il Manifesto –
Outras Palavras - Tradução: Antonio Martins - Imagem: Deih,
em Valencia, Espanha
Populismo
2.0 é a expressão usada habitualmente para qualificar a experiência
política do Podemos, o partido espanhol que sacudiu o panorama político
ibérico. Os analistas, como sempre, colocam em evidência as distâncias, os
elementos de descontinuidade em relação ao pensamento político clássico. Ao
fazê-lo, procuram inscrever esta jovem formação na família do populismo de
matriz latino-americana, demonizado na Europa. A leitura de Desobedientes
– de Chiapas a Madri, de Pablo Iglesias, explode tal simplificação em mil
pedaços. Com uma ressalva: não se desmente a qualificação de antissistemaatribuída
ao partido – ela é enriquecida, ao contrário, de novos elementos, que incluem o
Podemos na crítica à democracia representativa. O que não exclui, porém, uma
forma institucional fundada num equilíbrio dinâmico entre a democracia direta e
sua forma representativa – além do reconhecimento de processos de autogoverno
articulados pela sociedade civil por meio de projetos como cooperativas
sociais, organizações de mútuo socorro e sindicalismo de base, coordenados em
rede.
Na
proposta do Podemos, são fortes os ecos de um conjunto heterogêneo de teóricos,
economistas e filósofos, que dão potência comunicativa às posições do partido.
Há, claro, Ernesto
Laclau, o teórico da “razão populista” e Chantal Mouffe, a
filósofa do “agonismo plural”; mas também a economia-mundo de Immanuel
Wallerstein, a tecnopolítica “a la Manual Castells ” e a soberania de Império de Toni
Negri.
Esta
heterogenidade teórica não representa um problema para o Podemos, já que se
privilegiam as experiências de auto-organização e de comunicação por meio de
estilos que às vezes recordam os do marketing político ou da prática de
“autorreflexão”. O livro enriquece ainda a história do Podemos com elementos e
experiências que condicionaram fortemente o pequeno grupo de intelectuais,
midiativistas e militantes que de fato fundaram o partido. A gênese do Podemos,
na verdade, descende de movimento sociais que marcaram os anos 1990 na Europa,
como os Tute Bianche da
Itália. A obra é resultado de uma pesquisa universitária que Iglesias dirigiu,
junto com outros pesquisadores, sobre movimentos sociais espanhóis até a
intensa estação dos Indignados, interpretada como último capítulo de
uma história que começa com a revolta zapatista em Chiapas, desenvolve-se nas
mobilizações antiglobalização da virada do século e termina com os Indignados,
que colocam em evidência o poder dos movimentos – mas, ao mesmo tempo, seus
limites, impasses e becos sem saída.
A
dupla “conflito e consenso”
Utilizando
instrumentos próprios da pesquisa social, Iglesias passa em revista os
documentos, artigos e ensaios escritos pelos Tute Bianche,ou os assinados
pelo escritor coletivo Wu Ming. Em seguida, dá a palavra a alguns porta-vozes
dos Tute Bianche (Luca Casarini, por exemplo). Emerge um mosaico que
se propõe como uma contra-história do neoliberalismo global e da crise radical
dos partidos de esquerda em escala europeia. Para Iglesias, o neoliberalismo
foi um fenômeno mundial, que no entanto encontrou movimentos de resistência
inéditos, seja pelo léxico político usado, seja pela composição social dos
movimentos que se opunham.
Em
primeiro lugar, o zapatismo, privilegiado pelas análises sobre a globalização
mas também pela rede de comunidades indígenas que estão na base do Exército
Zapatista de Libertação Nacional, pelo ensaio de uma democracia direta e de uma
organização distante anos-luzes dos exércitos populares da luta armada
latino-americana. A comandância obedece ao povo, e não vice-versa.
Portanto,
não há uma estrutura hierárquica piramidal, mas uma rede social e política que
toma decisões com base na polaridade entre conflito e consenso. O segundo
aspecto que se impõe com o zapatismo é a comunicação – ou seja, um tipo de
discurso dirigido à sociedade civil organizada (um conceito que teve certo
sucesso teórico na virada para o novo milênio, sobretudo na América Latina),
com finalidades também organizativas. E se no México isso preservou a
experiência zapatista das dinâmicas típicas e derrotadas do foquismo ou dos
exércitos populares, do outro lado do oceano, na Europa, o movimento constituiu
um potente produtor de imaginário, segundo o qual o neoliberalismo não é o fim
da História, mas o contexto no qual se deve “produzir” um “outro mundo
possível” que não repetirá o triste percurso do socialismo real. Emerge no
livro uma retomada, obviamente renovada do speeh in, da street
parade, ou seja, de práticas comunicativas e formas de mobilização com
raízes nos mouvementsnorte-americanos.
Curtos-circuitos
e vazios significativos
A
história, porém, não segue trajetórias lineares. Há sempre cortes e
descontinuidades. E continuidades. A descontinuidade entre o Podemos e os Tute
Bianche deve ser buscada nas análises do Político que a jovem formação
política espanhola propõe. Já a continuidade deve ser buscada na tensão de
imaginar formas de ação política e social que respondam à duplas
“conflito-consenso”. Na política, é evidente uma revisita crítica a Ernesto
Laclau.
Afirmou-se
muitas vezes que o Podemos flerta com o populismo; buscou-se assim qualificar o
partido de Iglesias como uma formação antissistema. A acusação erra
completamente o alvo: a “razão populista” de Laclau propõe precisamente o
problema do governo e da capacidade de mediação que este pode exercitar entre
múltiplos interesses particulares que incendeiam a realidade social. Num longo
texto publicado no site Euronomade (Egemonia: Gramschi, Togliatti, Laclau),
Toni Negri evidencia, com razão, a vocação governativa das teses de Laclau, que
são também rastreáveis no Podemos. Além da ênfase retórico que o partido dedica
à superação da distinção entre direita e esquerda, emerge em seus documentos e
na parte final do livro de Iglesias um curto-circuito teórico e, portanto,
político. A sociedade espanhola, e as capitalistas em geral, são marcadas,
segundo o Podemos, pela diferença entre os poucos que estão em cima e a grande
maioria dos de baixo, entre os empobrecidos pela crise e os que ganham com ela.
Daí surge a ideia pouco precisa de “casta”, um vazio no sistema teórico do
Podemos.
A
tarefa do Podemos é inventar politicamente o povo. Deste ponto de vista, não
estamos tão longe daquele Louis Althusser que sustentava que a classe deveria
ser produzida como sujeito político pelo partido. O Podemos propõe-se a
inventar não a “classe”, mas o povo, por meio de um dispositivo político – o
partido? o governo? – com vocação de universalidade. Ernesto Laclau não poderia
encontrar melhores intérpretes de sua análise do Político. Falta em tudo isso
uma referência às transformações sociais e às relações sociais de produção do
capitalismo contemporâneo. E as tímidas referências à economia-mundo de
Immanuel Wallerstein não podem preencher este vazio.
Problemas
“tecnopolíticos”
Para
o Podemos, o social é irredutível a qualquer forma de síntese: esta deve partir
necessariamente do exterior, ou seja, de um partido – que, por certo, encoraja
formas de auto-organização (como ocorreu por exemplo em Barcelona) mas vê
apenas no governo, ou melhor, no exercício do governo, uma função propulsora,
unificante. O que costumava sair pela porta – a forma partido como única
dimensão da política – reentra pela janela como caminho principal para conquistar
não o poder, mas o governo. Uma simplificação que entra em rota de colisão com
a redefinição da forma Estado na globalização. Não é um problema que possa ser
facilmente apresentado como desvio de um improvável e pré-constituído “caminho
correto”…
No
fundo está, na verdade, a diferença entre exercício do poder e exercício do
governo – já que este segundo termo não coincide necessariamente com o
primeiro. Este é, aliás, um dos nós que a experiência dos Tute Bianche –
mas também de outros movimento sociais – não conseguiu resolver. O Podemos
enfrentará o obstáculo recorrendo à comunicação também como forma organizativa.
Aqui, há continuidade plena com a estação da desobediência. Pode-se chamá-la
“tecnopolítica”, como se fez na Espanha, mas a comunicação – sua produção e
circulação – é o contexto em que se manifestam os “particulares” do social, nos
quais um partido introduz uma relação.
Antiautoritários
e carismáticos
Estamos
evidentemente numa situação em que se promove o encontro entre diferenças, escolhendo
a rede como modelo organizativo. O partido proposto pelo Podemos não pode ser
reconduzido aos modelos da social-democracia ou do comunismo do século XX. É um
híbrido entre a tradição libertária e antiautoritária e os processos de decisão
que têm, como garantes, líderes carismáticos aos quais se delega implicitamente
a gestão da organização. Para o Podemos, tudo isso serve para desenredar o
emaranhado do consenso e do conflito. O primeiro se constrói através da
comunicação; o segundo relaciona-se ao político – ou seja, ao partido, ao papel
de sintetizar.
A
centralidade está, portanto, na função de mediação que o governo pode exercer.
É nesta perspectiva – e aqui toma-se distância implícita da experiência de
desobediência – há primazia na busca do consenso, em relação ao conflito, como
se fossem termos antitéticos. Dito de outro modo, o conflito só pode
desencadear sua capacidade de modificar os balanços de poder após a construção
do consenso. Esquece-se que são, ao contrário, elementos temporalmente contíguos:
é o conflito que produz consenso, e não vice-versa. Temas e argumentos que
estão na ordem do dia, se olha-se com desconfiança participativa o que está
ocorrendo na Grécia. E na Espanha, após a conquista do governo, em muitas
grandes cidades, por parte de coalizões políticas que veem o Podemos como
protagonista.
Isso
não significa, contudo, rejeitar a aposta implícita na gestão do governo – mas
pensar que a conquista de uma maioria parlamentar ou local não coincide com a
conquista do poder. Sobre este terreno abrem-se cenários inquietantes, difíceis
de padronizar, mas também problemas instigantes. Significa acertar as contas
com o capitalismo real, suas relações de poder, a centralidade, para qualquer
movimento, das relações sociais de produção e os sujeitos múltiplos,
diferenciados e heterogêneos do trabalho vivo, do dispositivo – portanto, dos
conflitos – que podem colocar em crise as relações de poder. Estar, portanto,
dentro da grande tempestade da crise. Situação perigosa, que poderia ser exorcizada
invocando talvez a salvação de algum poder destituinte dos movimentos. Mas,
como dizia um poeta, onde maior é o perigo, maior é a possibilidade de salvação.
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