sábado, 22 de agosto de 2015

Guiné Equatorial. O benchmarking como pretexto para o desprezo dos valores



JOSÉ VÍTOR MALHEIROS – Público, opinião

Há pouco mais de um ano, a Guiné Equatorial entrou, com a aprovação unânime dos restantes países membros, na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), numa cimeira de coreografia suspeita, onde a presença do ditador equatoriano foi imposta ainda antes da sua entrada oficial e onde a reputação de Portugal, representado pelo nosso presidente da triste figura, saiu mais do que chamuscada.

Fizeram-se ouvir na altura protestos generalizados pela entrada de um país que nem sequer fala português e que vive sob um corrupto regime ditatorial num grupo de países que afirma ter como princípios comuns, além da língua portuguesa, o respeito pela democracia e pelos direitos humanos. Estes protestos foram então respondidos com o argumento de que a admissão da Guiné Equatorial num clube de países democráticos, quase-democráticos, para-democráticos, tendencialmente democráticos e pseudo-democráticos como a CPLP era a melhor maneira de promover a paulatina democratização do regime corrupto de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, no poder desde 1979, e cujo sucessor indigitado, o seu filho "Teodorin", já enfrentou várias acusações de corrupção e branqueamento de capitais nos EUA e em França.

No entanto, a táctica de democratização da Guiné Equatorial através de um subtil contágio pelos discretos eflúvios democráticos da CPLP parece não estar a dar resultado. A prova mais recente disso é o facto de Obiang ter, em 20 de Maio deste ano, promulgado "a dissolução total do poder judicial" (leu bem), com o consequente desmantelamento dos tribunais das diversas instâncias.

De que forma reage a CPLP? Numa entrevista publicada no domingo passado neste jornal, o secretário-geral da CPLP, o moçambicano Murade Murargy, classifica o facto como uma "questão interna" da Guiné Equatorial, sobre a qual a CPLP não deve pronunciar-se. Então, e os estatutos da CPLP, os direitos humanos, o estado de direito, as condições de admissão na CPLP? Murargy, que sublinha que não fala em nome pessoal mas em nome da CPLP, diz apenas que a organização deve "ter paciência com a Guiné Equatorial". "Paciência", como se a tortura, a pena de morte (sujeita a uma moratória mas não abolida), as prisões políticas, a inexistência de liberdades que têm sido denunciadas por organizações como a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional fossem partidas de adolescentes. "Paciência" não porque a democratização esteja a ser lenta, mas precisamente pelo contrário, porque o regime endureceu e continua a comprar com o seu petróleo o silêncio de todos os interessados em fazer negócios com Malabo. As declarações de Murargy seriam cómicas se não fossem trágicas.

O que acontece é que não só a CPLP não está a democratizar a Guiné Equatorial, como o Guiné Equatorial já começou a desdemocratizar a CPLP. Com a entrada da Guiné Equatorial a média de democracia da CPLP desceu drasticamente e abre o caminho a todos os abusos. Se José Eduardo dos Santos decidir amanhã dissolver os tribunais em Angola o que poderá dizer a CPLP senão que se deve ter em conta que já existe um precedente?

Houve uma época onde se defendia a cooperação entre os estados e a criação de organizações internacionais na esperança de que essa cooperação permitisse um mais rápido desenvolvimento de todos através da partilha de boas práticas e de uma emulação dos melhores exemplos. Um clube de países deveria servir para tornar todos os seus membros tão bons como o melhor de entre eles.

Hoje, porém, as organizações internacionais servem, acima de tudo, como montras de más práticas e como instâncias de validação de atropelos aos direitos e de verdadeiros atentados ao pudor.

Tal como a CPLP, organizações como as Nações Unidas ou a União Europeia servem para definir mínimos denominadores comuns que os políticos de cada país defendem depois como se esses fossem os parâmetros ideais a atingir, transformando uma média, frequentemente vergonhosa, num objectivo da sua governação.

A análise de casos internacionais (a que os tecnocratas gostam de chamar benchmarking) ou as simples médias aritméticas (frequentemente aldrabadas) deste ou daquele grupo de países servem para definir objectivos que deveriam, em qualquer sociedade decente, ser decididas pelos cidadãos após um debate democrático e não numa folha de Excel.

As aldrabices à la Passos Coelho somam-se à saloice à la Cavaco para nos convencer de que trabalhamos menos horas que a média dos países X, que em Portugal se despede menos que nos países Y, que temos melhor saúde que os países Z e que todos estes desvios da média são pecados porque a média é o deus perfeito a que devemos almejar porque é aí que está a virtude, mesmo que essa média nos puxe sempre para baixo. As médias (aldrabadas quase sempre, repita-se) tornam-se objectivos, por iníquas que sejam e por desejável que seja afastarmo-nos delas. Torna-se assim pecado querer ter a melhor saúde da Europa ou do mundo, ter a melhor educação artística, a melhor habitação social, ou a paisagem mais protegida. O benchmarking e as médias vão matando aos poucos, ridicularizando, menosprezando aquilo que devem ser os nossos sonhos e a prática política que exigimos. Porque o que queremos é ser campeões dos direitos humanos, da qualidade de vida, da justiça, da criatividade e da beleza.

E o que não queremos é ser escravos das médias sempre cada vez mais baixas onde nos querem mergulhar. E certamente que não queremos ser os melhores do mundo a lamber as botas de Merkel, de Juncker, de Obiang ou da Goldman Sachs. Deixemos essa duvidosa honra para Passos Coelho e escolhamos os nossos objectivos. O céu é o limite.

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