JOSÉ VÍTOR MALHEIROS – Público,
opinião
Há
pouco mais de um ano, a Guiné Equatorial entrou, com a aprovação unânime dos
restantes países membros, na Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP),
numa cimeira de coreografia suspeita, onde a presença do ditador equatoriano
foi imposta ainda antes da sua entrada oficial e onde a reputação de Portugal,
representado pelo nosso presidente da triste figura, saiu mais do que
chamuscada.
Fizeram-se
ouvir na altura protestos generalizados pela entrada de um país
que nem sequer fala português e que vive sob um corrupto regime
ditatorial num grupo de países que afirma ter como princípios comuns, além
da língua portuguesa, o respeito pela democracia e pelos direitos humanos.
Estes protestos foram então respondidos com o argumento de que a admissão
da Guiné Equatorial num clube de países democráticos, quase-democráticos, para-democráticos, tendencialmente democráticos
e pseudo-democráticos como a CPLP era a melhor maneira de promover a
paulatina democratização do regime corrupto de Teodoro
Obiang Nguema Mbasogo, no poder desde 1979, e cujo sucessor
indigitado, o seu filho "Teodorin", já enfrentou
várias acusações de corrupção e branqueamento de capitais nos EUA e em
França.
No
entanto, a táctica de democratização da Guiné Equatorial através de um
subtil contágio pelos discretos eflúvios democráticos da CPLP parece
não estar a dar resultado. A prova mais recente disso é o facto de Obiang
ter, em 20 de Maio deste ano, promulgado "a dissolução total
do poder judicial" (leu bem), com o consequente
desmantelamento dos tribunais das diversas instâncias.
De
que forma reage a CPLP? Numa entrevista publicada no domingo passado neste
jornal, o secretário-geral da CPLP, o moçambicano Murade Murargy,
classifica o facto como uma "questão interna" da Guiné
Equatorial, sobre a qual a CPLP não deve pronunciar-se. Então, e os
estatutos da CPLP, os direitos humanos, o estado de direito, as condições de
admissão na CPLP? Murargy, que sublinha que não fala em nome pessoal mas
em nome da CPLP, diz apenas que a organização deve "ter paciência com a
Guiné Equatorial". "Paciência", como se a tortura, a pena de
morte (sujeita a uma moratória mas não abolida), as prisões políticas, a
inexistência de liberdades que têm sido denunciadas por organizações como
a Human Rights Watch ou a Amnistia Internacional fossem partidas de
adolescentes. "Paciência" não porque a democratização esteja a
ser lenta, mas precisamente pelo contrário, porque o regime endureceu e
continua a comprar com o seu petróleo o silêncio de todos os interessados
em fazer negócios com Malabo. As declarações de Murargy seriam
cómicas se não fossem trágicas.
O
que acontece é que não só a CPLP não está a democratizar a Guiné
Equatorial, como o Guiné Equatorial já começou a desdemocratizar a CPLP.
Com a entrada da Guiné Equatorial a média de democracia da CPLP desceu
drasticamente e abre o caminho a todos os abusos. Se José Eduardo dos
Santos decidir amanhã dissolver os tribunais em Angola o que poderá dizer a
CPLP senão que se deve ter em conta que já existe um precedente?
Houve
uma época onde se defendia a cooperação entre os estados e a criação
de organizações internacionais na esperança de que essa cooperação
permitisse um mais rápido desenvolvimento de todos através da partilha de boas
práticas e de uma emulação dos melhores exemplos. Um clube de países
deveria servir para tornar todos os seus membros tão bons como o melhor de
entre eles.
Hoje,
porém, as organizações internacionais servem, acima de tudo, como montras de
más práticas e como instâncias de validação de atropelos aos direitos e de
verdadeiros atentados ao pudor.
Tal
como a CPLP, organizações como as Nações Unidas ou a União Europeia servem para
definir mínimos denominadores comuns que os políticos de cada país defendem
depois como se esses fossem os parâmetros ideais a atingir,
transformando uma média, frequentemente vergonhosa, num objectivo da sua
governação.
A
análise de casos internacionais (a que os tecnocratas gostam
de chamar benchmarking) ou as simples médias aritméticas
(frequentemente aldrabadas) deste ou daquele grupo de países servem
para definir objectivos que deveriam, em qualquer sociedade decente, ser
decididas pelos cidadãos após um debate democrático e não numa folha de
Excel.
As
aldrabices à la Passos
Coelho somam-se à saloice à la Cavaco para nos convencer
de que trabalhamos menos horas que a média dos países X, que em Portugal se
despede menos que nos países Y, que temos melhor saúde que os países Z e que
todos estes desvios da média são pecados porque a média é o deus perfeito
a que devemos almejar porque é aí que está a virtude, mesmo que essa média nos
puxe sempre para baixo. As médias (aldrabadas quase sempre, repita-se)
tornam-se objectivos, por iníquas que sejam e por desejável que seja
afastarmo-nos delas. Torna-se assim pecado querer ter a melhor saúde da Europa
ou do mundo, ter a melhor educação artística, a melhor habitação social, ou a
paisagem mais protegida. O benchmarking e as médias vão matando aos poucos,
ridicularizando, menosprezando aquilo que devem ser os nossos sonhos e a
prática política que exigimos. Porque o que queremos é ser campeões
dos direitos humanos, da qualidade de vida, da justiça, da criatividade e da
beleza.
E
o que não queremos é ser escravos das médias sempre cada vez mais
baixas onde nos querem mergulhar. E certamente que não
queremos ser os melhores do mundo a lamber as botas de Merkel, de Juncker, de
Obiang ou da Goldman Sachs. Deixemos essa duvidosa honra para
Passos Coelho e escolhamos os nossos objectivos. O céu é o limite.
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