Quase
metade dos adolescentes mortos no país são assassinados, seja por criminosos,
seja pela polícia. Todos os dias, mais de dez jovens com idade entre 16 e 17
anos são mortos, dos quais 93% são negros.
O
Brasil teve 46.881 casos de assassinato em 2014. Com 4.610 homicídios – 28 para
cada 1.000 habitantes – o estado do Rio de Janeiro fica atrás apenas da Bahia
(5.450). Os dados foram revelados em um balanço publicado pelo Ministério
da Justiça na última semana. O quadro geral é alarmante se comparado, por
exemplo, à taxa de homicídios da República Democrática do Congo, país africano
assolado por uma guerra civil: 30,8 para cada 1.000 habitantes.
No
Brasil, negros e pardos representaram 72% das vítimas. Emerge, assim, o
fantasma do racismo num país que se debate para deixar para trás seu passado
colonial. Na capital fluminense, muita gente deu de ombros às estatísticas
divulgadas num ano em que todos os olhos estão voltados para a sede dos Jogos
Olímpicos. Afinal, para moradores de comunidades carentes, esse retrato da
violência representa uma rotina conhecida. Os números são apenas mais uma
pesquisa incapaz de produzir mudanças. E uma constatação renovada da
indiferença de parte da sociedade, sobretudo, quando os alvos da matança são
jovens, negros e pobres.
"Vivemos
na insegurança. Normalmente, a polícia já entra atirando, sempre por volta das
6h, 7h da manhã, quando os trabalhadores estão saindo de casa e as crianças
indo para escola… Várias vezes acordei com policiais apontando um fuzil para o
meu rosto, quando ainda estava na cama. Bateram na janela da minha casa e nem
esperaram que eu levantasse. Invadiram para fazer uma busca. Vou fazer o quê?
Reclamar com quem?", conta a carioca Jehnifer Raul, de 22 anos, ativista
social e representante da Favela de Acari no Fórum das Juventudes do Rio de
Janeiro.
Essa
marginalização traz à tona outros dados chocantes. Por exemplo, na contramão de
todos avanços sociais conquistados na última década, o Brasil ainda ocupa o
terceiro lugar em homicídios de adolescentes entre 85 países, de acordo com o Mapa
da Violência, estudo encomendado pelo governo federal e divulgado este ano, com
dados relativos a 2013. São 54,9 homicídios para cada 100 mil jovens de 15 a 19
anos, atrás apenas de México e El Salvador. Para efeito de comparação, a taxa
brasileira é 275 vezes maior do que a de países como Áustria ou Japão, que
apresentam índices de 0,2 homicídios por 100 mil.
A
cada dia 10,3 adolescentes são assassinados
Se
considerada a faixa etária entre 16 e 17 anos, os homicídios representam quase
metade das causas de morte no Brasil – 8.153 jovens nessa faixa etária morreram
em 2013, dos quais 3.749 (43%) foram assassinados. Ou seja, mais de 10
adolescentes foram assassinados por dia no país. A projeção é de que 3.816
serão mortos até o final de 2015, pelas mãos da polícia ou de bandidos. As
maioria esmagadora das vítimas (93%) são adolescentes do sexo masculino, negros
e com baixa escolaridade.
Autor
do Mapa da Violência, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz diz que os
assassinatos de jovens brasileiros seguem em curva ascendente por diversos
motivos. Da tolerância da sociedade à falta de investimento em educação,
passando pela ausência de reformas do Código Penal e pelo despreparo de uma
polícia cuja atuação ele classifica como "criminosa".
"Cada
país tem o número de crimes que sua política decide ter. E esse limite de
tolerância no Brasil é muito alto, o brasileiro aceita. Aqui prende-se sem
saber se o jovem é culpado, mata-se um jovem suspeito sem se importar,
encarcera-se como em nenhum outro lugar do planeta sem que sejam dadas as
mínimas condições de recuperação aos menores."
Ele
também identifica um problema concreto nas políticas de educação: "o país
assistiu à erradicação da pobreza extrema e universalizou o sistema de ensino
fundamental de 6 a 14 anos, mas deixou à deriva os jovens a partir daí. A
adesão ao ensino médio e sua qualidade caíram muito", avalia Waiselfisz.
Homicídios
no Rio caem, mas não para todos
Curiosamente,
os números apontam contradições no Rio de Janeiro, num momento em que todas as
atenções se voltam à segurança pública às vésperas dos Jogos Olímpicos de 2016.
Apesar de um aumento na taxa geral de homicídios no estado, entre os jovens, o
número de assassinatos vem caindo: houve uma redução de 73% entre 2000 e 2013,
aponta o Mapa da Violência.
A
estatística parece positiva, mas não é suficiente, alegam ativistas. E isso
porque há gargalos na segurança pública do estado. Um jovem negro tem três
vezes mais chances de ser assassinado que um branco, confirma o Índice de
Homicídios da Adolescência (IHA), elaborado em parceria pelo Laboratório de
Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o
Unicef, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
e a ONG Observatório das Favelas. Ou seja, a redução da violência não é
proporcional.
"Temos
na história brasileira 400 anos de escravidão e pouco mais de 100 anos de
liberdade dos negros e, tradicionalmente, o crime não é o que define a
violência, mas quem comete o crime. Desde sempre foi assim. Se um escravo e um
senhor do engenho cometessem um determinado crime, o do escrevo seria
considerado muito mais bárbaro. A dinâmica da violência letal é explicada
através da sociedade de consumo. Como a vida é medida a partir do consumo de
bens, a vida de quem tem menos, vale bem menos", pontua o geográfo Jailson
Silva, presidente do Observatório das Favelas.
Pehkx
Jones da Silveira, subsecretário de Educação, Valorização e Prevenção da
Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio, admite as dificuldades de
reduzir a violência diante do constante cenário de guerra entre traficantes de
drogas. Mas, apesar das críticas constantes à truculência e ao desempenho das
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas favelas cariocas, ele ressalta os
avanços e defende a reciclagem constante dos policiais.
"A
redução nos homicídios de jovens mostram que o policiamento de proximidade não
falhou. Mas esse modelo não é permanente, ele se adequa à realidade e às
circunstâncias de cada território, às informações de inteligência e
patrulhamento. Estamos em processo permanente de revisão. Não podemos esquecer
que mais de 40% dos policiais vieram dessas comunidades carentes e conhecem a
realidade. Eles têm seus traumas por violência com armas de fogo, brigas
domésticas e confrontos. Precisamos desconstruir esses traumas para formar bons
profissionais", diz o subsecretário.
Pressão
da ONU
O
debate chegou ao Comitê para os Direitos das Crianças das Nações Unidas, em
Genebra. Num duro relatório, a ONU mostrou grave preocupação com o elevado
número de execuções extrajudiciais, chamadas de "autos de
resistência", prisões aleatórias, impunidade generalizada e a
vulnerabilidade dos jovens - tanto diante dos traficantes de drogas como da
própria polícia. No início de outubro, num processo que se repete a cada cinco
anos, uma delegação do governo brasileiro foi sabatinada durante seis horas
sobre questões que incluíram, ainda, o aumento do turismo sexual e a redução da
maioridade penal, classificada como um retrocesso por fazer dos jovens um bode
expiatório da violência ao invés de protegê-los.
"Estamos
muito preocupados porque, em grande parte, a violência vem de agentes do
próprio Estado. Sempre houve práticas de limpeza social no Brasil, apesar de
avanços em áreas como saúde e educação. Nossas recomendações são mais ações de
prevenção para reduzir a vulnerabilidade, com políticas públicas voltadas à
educação e ao engajamento das famílias dos jovens. O Brasil tem uma situação
muito ruim, muito estrutural, que não se resolve em 10, 15 anos. O trabalho a
ser feito é de longo prazo", afirmou à DW Brasil a equatoriana Sara Oviedo
Fierro, uma das peritas da ONU envolvidas no relatório.
Renata
Malkes – Deutsche Welle
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