terça-feira, 20 de outubro de 2015

Portugal. HÁ MUITO QUE OS COMUNISTAS NÃO COMIAM CRIANCINHAS



Ana Sá Lopes – jornal i, opinião

O que é divertido na situação política presente é ver como uma solução de governo totalmente prevista na Constituição é encarada, por boa parte do espaço público, como um “golpe de Estado”. O facto de se discordar do governo de esquerda não devia servir para se fazer implodir a Constituição, mas já tínhamos assistido a um movimento assim quando Santana Lopes foi nomeado primeiro-ministro, depois da saída de Durão Barroso para Bruxelas. No PS, esse acontecimento deixou sequelas: o secretário-geral Ferro Rodrigues demitiu-se em protesto contra a nomeação de Santana Lopes, abrindo caminho para a entrada em cena de José Sócrates.

O argumento da altura era que “Santana não tinha ido a votos”, como se as legislativas fossem uma espécie de presidenciais, em que os candidatos são unipessoais. Eventualmente por razões ad hominem, os portugueses, na altura (oposição e boa parte do PSD), lidaram muito mal com a Constituição.

A história repete-se agora. Por razões alheias à legitimidade constitucional, a mera ideia de coligação entre o PS e os partidos à sua esquerda – que na realidade, se de facto se entenderem, têm maioria no parlamento – suscita proclamações fabulosas. A do “golpe de Estado” é extraordinária, porque o golpe de Estado define-se pela chegada ao poder de uma forma incompatível com as leis do país. Ora, chamar “golpe de Estado” a uma solução prevista na Constituição é elevar a metáfora a um patamar já incompreensível.

Não sabemos como vai correr o diálogo entre PS, Bloco e PCP, e tem suficientes condimentos para correr mal. Mas só o facto de o assunto ter sido colocado sobre a mesa já é um acontecimento. Nos últimos anos, a direita repetia ad nauseam elogios ao PCP, “um partido institucional”, e a Jerónimo de Sousa, o carismático secretário-geral de quem aparentemente, da esquerda à direita, toda a gente gostava. As coisas mudaram agora substancialmente: os comunistas voltaram a comer criancinhas ao pequeno-almoço. E isso é, no mínimo, divertido.

Na foto: Ana Sá Lopes

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