"Aceitar
o uso da violência foi uma decisão dolorosa"
Mariana
Pereira – Diário de Notícias
Guerrilheiro
e um dos protagonistas dos acordos de independência das antigas colónias
portuguesas, Pedro Pires recorda como foi precisa "muito mais coragem para
terminar a guerra" do que para a começar.
"Comandante
Pedro Pires" ou apenas "Comandante". Era assim que o chamavam
para lhe apertar a mão. Tem hoje 81 anos. Afastamo-lo desses tantos que o
abordavam aquando da abertura do VI Encontro de Escritores de Língua
Portuguesa, a que assistia, organizado neste mês pela União das Cidades
Capitais da Língua Portuguesa na cidade da Praia. No dia anterior inaugurara a
exposição Casa dos Estudantes do Império. Farol da Liberdade. Casa por onde
passaram Pedro Pires, Agostinho Neto, Joaquim Chissano, Amílcar Cabral. Jovens
das ex-colónias que em Portugal, sob os olhos da PIDE - que fechou a casa em
1965 -, e ainda longe de se tornarem heróis, preparavam-se para a luta que
viriam a travar. Agora, um homem (talvez o seu secretário) ao nosso lado vai
apontando para o relógio. Mas o Comandante fala sem pressa naquela ilha de onde
em certos sítios se vê o Fogo, onde nasceu.
Chegou
a Lisboa em 1956. Como viveu então o período da Casa dos Estudantes do Império,
em Portugal?
Eu
fazia o serviço militar obrigatório, tinha os fins de semana livres e
aproveitava para estreitar as minhas relações com os amigos que conheci na
casa. Fazia-se de tudo um pouco: desporto, conferências, música, literatura,
apresentação de pequenos livros publicados pela casa. Era mais um ponto de
convívio e de troca de informações, ideias, e de bastante cumplicidade.
Já
não se cruzou lá com Cabral.
Amílcar
Cabral antecedeu-me. Quando eu estive na casa ele já era profissional e estaria
entre Guiné e Angola. Encontrámo-nos em 1961, quando eu saí [de Portugal, numa
fuga coletiva dos estudantes da casa para Paris], no Gana. Ele já era o líder
do PAIGC e eu alguém à procura de qualquer coisa.
Essa
procura surgiu em Lisboa?
Já
tinha levado comigo o sentimento de que precisávamos de qualquer coisa, ou de
que qualquer coisa não estava a funcionar bem. A consciência política foi
adquirida durante a minha estada em Lisboa. Não só na casa, mas sobretudo do
debate de ideias com outros jovens, e do acompanhamento do que estava a
acontecer no mundo.
Custou-lhe
perceber então que o caminho para libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde
seria o da luta armada?
Foi
um processo doloroso, que podia ser de rutura com as convicções, porque nós
estamos marcados por esse princípio cristão: não matarás. De modo que a vida é
sagrada e a questão de decidir por uma guerra... Está claro que dá que pensar.
Embora, se aprofundássemos a ideia, veríamos que o mundo tem sido um mundo de
guerras, de violência, que a humanidade não conseguiu ainda libertar-se do
recurso à guerra. Parece uma loucura a ideia da guerra, de ter de destruir o outro
para atingir os nossos fins. Foi uma decisão dolorosa, dizer: bom, vou deixar
alguns princípios e ter de aceitar o uso da violência. Não é nada fácil. Depois
a realidade, os factos, a vida vem-nos impondo as suas regras, mas por fim
temos de rejeitar isso e voltar à ideia inicial, que afinal precisamos de
discutir, precisamos de negociar e precisamos de dialogar.
Hoje
pensa muito nisso?
De
tempos a tempos. Por vezes, vivemos numa situação de alguma acalmia, de
relações corretas entre os países e os povos, mas repentinamente aparece mais
um fenómeno violento. Somos obrigados a pensar nisso: para onde é que nos
querem levar?
E
não havia alternativa à luta armada para conseguir a independência das
ex-colónias?
Não
havia. Creio que foi uma decisão acertada, mas há que pensar num outro aspeto:
iniciar uma guerra é fácil, terminar uma guerra é muito mais complicado. Foi
preciso muito mais coragem.
Como
se faz do quotidiano uma luta, dentro ou fora das matas da Guiné, durante mais
de dez anos?
Quando
se tem um objetivo, um sonho, uma ambição, o que nos condiciona é isso, somos
levados por isso. É uma vida de pressão psicológica. Há as dúvidas, as
angústias, as vitórias, os ganhos.
Questionou
o que fazia?
Isso
nunca. Porque disse: eu tenho de ganhar isto. Estávamos imbuídos dessa
necessidade, desejo, dessa opção. Não havia outra opção senão continuar. E
nunca pensámos em recuar ou mudar de posição, de opção, isso nunca nos
aconteceu. É uma certa utopia. Como lhe podemos chamar? Não é bem ilusão, mas
era uma vontade que nos comandava.
Só
volta a Cabo Verde em 1974, 18 anos depois de ter saído.
1974!
Foi uma coisa... Fui envolvido por todo o movimento, que me ultrapassava, era
um movimento coletivo de toda a gente. Havia solicitações de diversa natureza e
colocámo-nos diante do grande desafio de viabilizar o país.
Como
foram os tempos depois da independência? Aqui por Cabo Verde contam-se
histórias da sua luta contra a mortalidade infantil e o analfabetismo, como
histórias de operários que, nas horas de almoço das fábricas, aprendiam a ler e
a escrever com jovens.
Foi
um tempo de grande generosidade e de grande confiança no futuro. Foi um tempo
em que toda a gente quis dar um pouco de si.
Sentiu-se
recompensado?
Acho
que sim, mas a pressão e a necessidade de fazer avançar as coisas, de ganhar o
desafio, impuseram-se a tudo o que pudesse ser uma felicidade.
O
trabalho nunca acabou?
Nunca
acabou. Terminámos um, entrámos noutro, e avançámos assim. Se me sentia
motivado, está claro que sim. Mas por vezes também preocupado, angustiado. A
preocupação foi uma companheira permanente da minha pessoa.
Quarenta
anos depois da independência, Cabo Verde ainda se constrói?
Isto
é uma obra de longo prazo que exige contribuição de várias gerações. Porque
ganho um desafio, resolvido um problema, nascem novos. Sobretudo num país
pequeno, como é o nosso, insular e com um pequeno mercado, com todas as limitações,
a consolidação de tudo isto vai levar o seu tempo.
Foi
assim que imaginou o país?
Não,
está claro que não.
Em
que medida diferia?
Eu
não seria sincero se dissesse que há 40 anos podia prever o futuro de Cabo
Verde. Não podia. Eu alinho-me no que disse [o poeta espanhol] António Machado
sobre a marcha. "Caminhante, o caminho se faz caminhando." Não podia
francamente prever os nossos ganhos hoje, os nossos desafios. Fiz o caminho
caminhando.
Negociou
e assinou os acordos que levaram à independência da Guiné e de Cabo Verde ao
lado de Almeida Santos, então ministro do primeiro governo provisório. Depois
da sua morte, em janeiro, como o recorda?
O
Dr. Almeida Santos era um grande amigo, com quem estabeleci relações de
amizade, cumplicidade, de muita confiança. Não são coisas que se preveem.
Quiseram os acasos da história que nos encontrássemos os dois no processo de
negociações em relação à Guiné e a Cabo Verde. Conseguimos entender-nos um ao
outro e creio que as coisas que se fizeram devem muito a essa empatia entre a
minha pessoa e a do Dr. Almeida Santos.
Ele
pressionou-o para convocar eleições em Cabo Verde, em 1975?
O
Dr. Almeida Santos disse: "Eu não posso dar tudo, tem de ter algumas
condições." E eu [também] nunca defendi essa ideia do poder entregue
imediatamente, fui mais prudente nessa questão. Pela minha prudência e alguma
intuição, ou inteligência estratégica, sabia que não podia ser. Então
congeminámos qualquer coisa que era aceite por toda a gente. Aceite pelos
portugueses e pelo PAIGC. Foram concessões mútuas. O acordo foi um compromisso.
E nós estávamos convencidos de que íamos ganhar as eleições.
Como
lidaram com a oposição interna ao processo?
O
nosso objetivo era a libertação de Cabo Verde, [em relação a] outra gente que
pudesse pensar numa solução diferente, nós tínhamos de ganhar. Alguém há de
perder. Acho que o processo de libertação de Cabo Verde custou pouco e foi
bastante pacífico. Não cem, mas noventa e muitos por cento pacífico.
E
as prisões de que se fala nos partidos opositores [União Democrática de CV e
União do Povo das Ilhas de CV]?
Não
estávamos no poder na altura, isso também foi fruto de compromissos. Não éramos
poder, éramos aspirantes. São compromissos...
O
Prémio Mo Ibrahim, que recebeu em 2011, garante-lhe cinco milhões de dólares
anuais. De que forma tem usado esse dinheiro?
Isso
tem algum interesse, mas o prémio vale pelos recursos financeiros mas também
pelo seu valor simbólico, que me permite hoje participar em conferências, em
várias organizações com interesse, geralmente para o continente africano. É um
prémio de reconhecimento que dá visibilidade à pessoa que o recebe. Esse é o
lado mais importante. O lado material, está claro que eu devo utilizar os
recursos da maneira que considerar mais útil, quer para mim, para a minha
pessoa, a minha família, quer para apoiar atividades aqui no meu país, o prémio
é esse.
O
Instituto Pedro Pires para a Liderança [IPPL] é o maior investimento desse lado
material?
O
IPPL recebe uma parte do prémio que lhe é destinado.
Não
quer dizer que outros projetos ou atividades apoia?
Não.
A Fundação Mo Ibrahim apoia-nos também para realizar certas atividades de
interesse, e eu escolhi pessoalmente a IPPL como uma forma de utilizar bem os
recursos para a sociedade cabo-verdiana e para o país.
O
que representa para si esse valor simbólico do prémio?
É
um combate à ideia errada de que os líderes africanos não estão à altura das
suas funções. Vem no sentido de criar símbolos alternativos aos que são
publicitados pelos órgãos de comunicação internacionais. São dirigentes
africanos com prestígio, estatura política e moral elevada.
Em
que sentido surge a liderança na formação dada pelo IPPL?
No
sentido mais amplo, melhorar a capacidade de liderar, o conhecimento da
realidade do país e também a forma de ver a liderança, o exercício de
responsabilidade.
Os
formandos são jovens?
São
maioritariamente jovens e maioritariamente quadros superiores que trabalham.
Não
só potenciais políticos?
Não,
a liderança não é só política, pode ser económica, social, doméstica, é um
conceito amplo, é mais do que a política. O IPPL é de natureza apolítica, não
recruta os seus formandos no seio dos partidos políticos.
Como
são hoje os seus dias?
[Ri-se]
Estou ocupado durante todo o dia. Tenho intervenção noutras organizações,
continuo a ser presidente da Fundação Amílcar Cabral. Além disso, sou uma
pessoa solicitada para opinar ou aconselhar diversas pessoas amigas. Por outro
lado, tenho o trabalho de seguir o funcionamento do próprio IPPL. E tenho a
questão do quotidiano, sou obrigado a acompanhar o que acontece internamente e
no mundo.
Como
vão as memórias? Disse que haveria de as publicar.
As
memórias estão em curso. Hão de sair um dia.
Diário
de Notícias - Foto: Lionel Balteiro / Global Imagens
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