Joana
Gorjão Henriques - Público
Mais
do que fazer julgamentos sobre se o que as pessoas contaram estava certo ou
errado, interessou ouvir o que os africanos sentem e como olham para a
discriminação racial exercida pelos portugueses durante o colonialismo, que
cicatrizes permanecem. Pré-publicação
Quando
me perguntam por que razão me interesso pelas questões raciais, costumo
responder com uma frase: «Cresci com alguns colegas negros na primária, um ou
dois no liceu, e nenhum na universidade.»
Nessas
carteiras de escola ouvi sempre a mesma versão da história do colonialismo,
ensinada pelos portugueses. Mesmo quando havia crítica, apresentava-se Portugal
como «bom colonizador»: um colonizador que se misturou com as populações, que
nunca exerceu sobre os povos colonizados a violência que outros colonizadores
exerceram. Raramente visto como um sistema racista, o colonialismo português
não era questionado como tal. Prova disso é que os portugueses continuam a
falar de si próprios enquanto descobridores e enquanto povo integrador.
Portugal
tem uma população significativa negra desde que se iniciou o horror que foi o
comércio de escravos no século xv, e mais tarde recebeu uma vaga de imigração
africana, primeiro nos anos 1960 e depois no pós-25 de Abril. O facto de, ainda
hoje, não existir qualquer correspondência entre o número de negros que vemos
na rua e o número de negros em lugares de liderança na sociedade é, no mínimo,
surpreendente. A ausência de representatividade de uma fatia expressivada
sociedade portuguesa – fatia essa usada como bandeira de cosmopolitismo da
população por algumas entidades oficiais – espelha um sistema que discrimina
pela cor da pele. Porém, em Portugal reflecte-se pouco sobre o papel dos
portugueses enquanto colonizadores e, especificamente, sobre a sua
responsabilidade no desequilíbrio das relações raciais entre brancos e negros,
bem como sobre a sua responsabilidade na criação e na persistência do racismo.
Entre
2009 e 2011, passei dois anos sabáticos a estudar as questões raciais nos
Estados Unidos e em Inglaterra, e dei-me conta disto mesmo: que a produção
crítica sobre o papel do Ocidente na discriminação racial era imensa em língua
anglo-saxónica, mas muito rara em português.
Foi
então que, como jornalista do Público, propus à direcção do jornal fazer
um projecto de cinco reportagens nas cinco ex-colónias africanas para
questionar a herança colonial, ao qual se associou a Fundação Francisco Manuel
dos Santos.
Em
2015, 40 anos depois da descolonização, fui perguntar até que ponto persistem,
ainda hoje, as ideias de raça espalhadas por Portugal nesses países, como é que
as populações dos países colonizados olham para o papel de Portugal enquanto
colonizador, e se a versão dos portugueses como bons colonizadores, que se
misturaram com as populações colonizadas, ainda vinga até hoje. Como era
aplicada a segregação baseada na raça, e que tipo de violência Portugal,
enquanto sistema colonial, exerceu? O colonialismo português foi um regime
racista?, perguntei aos meus mais de cem entrevistados, a maioria aqui citados.
Não querendo substituir o papel dos académicos, que naturalmente abordariam
estas questões de forma diferente e com outra profundidade, a ideia era
problematizá-las dando voz a quem não tem sido ouvido – uma das missões do
jornalismo.
O
trabalho foi feito em cinco viagens, cada uma a um país diferente: Angola,
Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, e Moçambique. Em cada país
escolhi uma amostra de entrevistados proporcional ao respectivo número de
habitantes. O objectivo era reunir vozes que representassem as diferenças
existentes: de classe social, de género, de situação profissional, de origem
geográfica, de experiência pessoal, de interpretação. Quis registar o discurso
de alguém que olha para a sociedade e para a história com uma visão global, e
ter o testemunho de quem sofreu na pele a dureza do regime. Interessou-me ouvir
o passado e saber que marcas persistem desse passado ainda hoje.
Consciente
do meu lugar de privilégio – o de jornalista branca de um país que tem dominado
a versão do que foi a história colonial – procurei na escrita das reportagens
dar primazia aos testemunhos pessoais. Mais do que tecer julgamentos sobre se o
que as pessoas contaram estava certo ou errado, quis sobretudo ouvir o que
sentem e como olham para a discriminação racial exercida pelos portugueses
durante o colonialismo, que narrativas perduram em cada país, que cicatrizes
permanecem. Quis ouvir a sua versão da história.
Houve
temas recorrentes nos cinco países e testemunhos de experiências de racismo
muito parecidas — em alguns casos mantive essa repetição para sublinhar
aspectos globais, noutros decidi não os incluir para evitar a sensação de
duplicação.
Tive
a preocupação de mostrar que o colonialismo foi diferente em cada país, não só
porque o sistema, também ele diferente consoante as épocas, adoptou políticas
diferentes, mas também porque cada um desses países tem, naturalmente, as suas
especificidades.
Entretanto,
surgiu a ideia de fazer uma Rota da Escravatura, tema indissociavelmente ligado
ao colonialismo. Porque Portugal viria a ser, afinal, o primeiro país a
transportar pessoas escravizadas de África para as Américas, ou seja, o grande
iniciador daquela que ficou conhecida como uma das maiores atrocidades da
história mundial. Deu início à prática de tráfico de seres humanos no século
xv, prática que só seria abolida quatro séculos depois.
É
difícil estabelecer com rigor o número de homens e de mulheres que foram
escravizados ao longo deste período, mas os dados mais citados são os que
indicam que, entre 1501 e 1866, cerca de 12 milhões embarcaram de África para
as Américas, e dois milhões não chegaram ao destino.
Condenado
no Congresso de Viena, em 1815, o comércio de escravos foi abolido em 1836, mas
o tráfico continuou a ser praticado clandestinamente. Inglaterra decretou a
abolição da escravatura em 1833, por meio de uma lei que atribuía compensações
financeiras aos donos de pessoas escravizadas. Na década de 1850, o marquês de
Sá da Bandeira decretou a abolição da escravatura em Portugal e estabeleceu um
prazo de 20 anos para os libertados serem efectivamente livres — mas o fim
oficial da escravatura só aconteceu em 1878.
Usando
as populações dos países ocupados, Portugal tornou-se um dos principais actores
deste comércio, seguido de Inglaterra, França, Espanha e Holanda. Os homens e
mulheres eram levados para trabalhar nas plantações de algodão, de açúcar e de
café nas Américas, transformando-se na principal fonte de mão-de-obra destas
novas economias.
Embora
alguns tenham tido mais destaque do que outros, a verdade é que os cinco países
africanos colonizados por Portugal se tornaram uma fonte de produção de homens
transformados em objectos e em mercadoria humana. Só Angola, aliada ao Congo,
representou quase 40 % do mercado de escravos a nível mundial.
Acompanhada
pela mão de um historiador especialista na matéria em cada país, fiz uma visita
guiada a lugares históricos em busca de uma possível Rota da Escravatura, salvo
óbvias limitações geográficas. Para complementar cada reportagem
do Racismo em Português, publica-se uma Rota da Escravatura no país
correspondente. Funciona como uma espécie de banda histórica, acrescentando
contexto para quem quiser saber mais.
Acabo
esta jornada que me ocupou mais de um ano com a visão de que o racismo colonial
foi um apagão e um arrastão: apagão da cultura africana, obrigando as
populações a despirem-se de toda a sua identidade; e um arrastão ideológico,
porque contaminou mentalidades de todos os quadrantes e durante séculos, de tal
forma que até hoje se verificam os seus efeitos.
Termino
esta introdução com uma nota de perplexidade: como é possível que, até hoje,
nunca tenha existido um Museu da Escravatura em Portugal? E coloco ainda mais umas
perguntas: porque não nos é ensinado na escola que existiu
um apartheid em Angola e em Moçambique, alimentado por Portugal?
Porque insistimos num olhar benevolente sobre um Portugal que não hesitou em
promover o trabalho escravo até 1974? Vamos perpetuar a narrativa de um
colonizador que não discriminava porque se miscigenou com as populações locais,
quando sabemos que obrigava essas pessoas a despirem-se da sua identidade
africana, a mudar de nome, a alisar o cabelo ou a esconder a sua língua? Até quando
iremos contribuir para uma mentalidade acrítica sobre um dos fenómenos mais
violentos da nossa história? Finalmente: o que diz esta perspectiva de brandura
de olhar sobre nós próprios, portugueses?
No
dia 11 de Junho há debate e lançamento do livro, às 17h, na Praça Laranja da
Feira do Livro de Lisboa, com Abílio Bragança Neto, analista (Sâo Tomé e
Príncipe), Flávio Almada, artista e activista (Cabo Verde) e Romualda
Fernandes, jurista (Guiné-Bissau). Dia 24 de Junho o livro está à venda nas
livrarias, e com o jornal PÚBLICO. Está ainda disponível nas lojas do
jornal (Alcântara e Colombo) e na loja online (http://loja.publico.pt/) e no site www.tintadachina.pt. A
partir de 9 de Junho estará apenas à venda na Feira do Livro de Lisboa.
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