Lei
que achata direitos trabalhistas acaba de ser aprovada, mesmo enfrentando 70%
de rejeição popular e sem maioria no Parlamento. Como isso foi possível?
Antonio
Martins – Outras Palavras, em Blog da Redação
Em
1930, John Maynard Keynes, o economista que mais intensamente lutou por um
capitalismo reformado previu que seus netos trabalhariam 15 horas por
semana. O sistema, imaginou ele, promoveria incessantes avanços tecnolócios e
aumento da produtividade do trabalho; também seria suficientemente sábio e
generoso para distribuir estes ganhos com o conjunto da sociedade. Há poucas
horas, a França, somou-se ao conjuntos dos países do capitalismo “desenvolvido”
e aprovou a chamada Lei El Khomri. Na contramão do que previa Keynes, ela
permite estender a jornada a 46 horas semanais, além de eliminar inúmeros
direitos trabalhistas relacionados à irredutibilidade dos salários, descanso
entre as jornadas, indenizações em caso de demissão, gozo das férias e proteção
dos que sofrem acidentes laborais.
O
retrocesso atinge, além dos direitos sociais, a própria democracia. Desde que
apresentada, há cinco meses, a lei foi alvo constante de protestos. Os
sindicatos promoveram seguidas jornadas de luta contra ela — algumas vezes reprimidas
pela polícia com ferocidade. A juventude ergueu-se no movimento Noites Despertas (“Nuits Debout”). Além disso, todas
as sondagens de opinião feitas no período revelaram: ao menos sete, em cada dez
franceses, eram contrários às mudanças propostas.
Além
de praticar a democracia sem povo, a França capitalista estabelece que, em
certas situações, as leis podem ser aprovadas também sem maioria parlamentar. O
estranho artifício está previsto no Artigo 49, alínea 3, da Constituição. O
Poder Executivo tem a faculdade de invocar o chamado “compromisso
de responsabilidade” e impor a adoção de um projeto mesmo
quando percebe que não contará com os votos da maior parte da Assembleia
Nacional. Neste caso, a única forma de derrubar a lei é aprovar, na própria
Assembleia, uma moção de censura ao gabinete de ministros, provocando sua queda.
Manuel
Valls, o primeiro-ministro, apelou para o Artigo 49.3 ontem à tarde, ao
discursar na Assembleia. Foi a terceira vez em que adotou tal expediente. Nas
ocasiões anteriores, fracassou, devido ao repúdio da opinião pública. Mas
agora, pôde contar com o inesperado auxílio do terror. Na semana passada, o
país foi abalado por atentadocometido por um motorista de caminhão em
Nice, que matou 84 pessoas por atropelamento ou a tiros. As ondas de choque que
se seguiram monopolizaram as atenções da opinião pública. Também ontem, o
Parlamento estendeu até
janeiro de 2017 o Estado de Emergência, que restringe os direitos
constitucionais — entre eles, o de manifestação. Esta tarde, 24 horas depois, a
Lei El Khomri entrou em vigor.
Uma
situação particular permitiu tal desfecho. O governo é exercido por um Partido
Socialista que aderiu sem pudores ao neoliberalismo. Há dez anos, ainda
distante do poder, o atual presidente, François
Hollande, declarava, sobre o Artigo 49.3:
“é uma brutalidade, uma negação da democracia”. Eleito chefe de Estado em 2012,
graças às críticas que fez à hegemonia da Alemanha sobre a União Europeia, o
“socialista” passou a praticar exatamente o contrário do que propusera aos
eleitores.
Hollande
é acossado por uma oposição de direita, expressa tanto por Les Republicains(LR),
mais tradicionais, quanto por Marine Le
Pen, da Frente Nacional, xenófoba e semi-fascista. Mas a tática
habitual do Executivo tem sido ceder a estas direitas, ao invés de
enfrentá-las. Na sessão em que o Estado de Emergência foi estendido até
janeiro, o jogo ficou claro. Les Republicains e a Frente Nacional
apoiaram a restrição aos direitos e liberdades. Mas, ao discursar, os
representantes destes dois partidos afastaram-se do governo, defendendo medidas
ainda mais autoritárias. O deputado Laurent Wauquiez, favorárvel ao Estado de
Emergência, pediu que ele incluísse a criação de campos de internamento, onde
ficariam concentrados os suspeitos de atividades terroristas. As
eleições presidenciais estão marcadas para 2017. Se ocorressem hoje, indicam todas
as sondagens, o segundo turno seria disputado por um candidato de direita
contra outro de extrema direita.
Oitenta
e seis anos após o sonho nunca realizado de Keynes, é assim que caminha o
capitalismo. Será possível detê-lo? Como?
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