Como
é possível, depois de todo este lamaçal de corrupção e incompetência das
chamadas «elites» dos negócios e da finança, que sugou os fundos necessários
para o desenvolvimento do país, continuarmos a ver as mesmas caras a perorar,
como se nada se tivesse passado, elogiando as virtualidades bondosas da
privatização das grandes empresas nacionais?
s
poucos, vai-se levantando o véu sobre as compras e vendas passadas da Portugal
Telecom (PT) e as suas perigosas ligações com os Espírito Santo e membros dos
sucessivos governos PS, PSD e CDS, apimentadas pela tentativa de OPA da Sonae,
o oportuno fim da golden share e os benefícios e artifícios fiscais
concedidos pelos partidos do «arco do poder» que lhe apoiaram os negócios mais
cinzentos, enchendo os bolsos dos grandes accionistas, esvaziando mais os
cofres públicos.
Ilustrando
mais um presumível caso de promiscuidade e corrupção envolvendo os grandes
grupos económicos e o poder político das últimas décadas, alguns pormenores
começaram a aflorar com o anúncio da constituição como arguidos de Henrique
Granadeiro e Zeinal Bava, os gestores-maravilha da PT, acusados pela dolosa
transferência de 900 milhões para a Rioforte, do Grupo Espírito Santo (GES),
quando este já se estava a afundar nas aldrabices da família e dos seus
cúmplices.
«Os
pagamentos feitos pelo GES à administração da própria PT aconteceram ao mesmo
tempo e com a mesma origem dos realizados por aquele grupo… ao amigo do
infância de Sócrates, Carlos Santos Silva, que os investigadores consideram um
testa de ferro do ex-primeiro-ministro.» (Público, 25-2-17).
A
questão passa, pois, a estar ligada à corrupção em que estarão envolvidos os
dois astros do empreendedorismo nacional, colados à «operação Marquês» que
impende sobre o ex-primeiro-ministro Sócrates e o generoso amigo que lhe
assegurava os luxuosos gastos quotidianos.
E
porque a história da PT, campeã nacional do empreendedorismo luso, acabou mal,
vale a pena dedicarmos alguma atenção à trajectória de uma das raras empresas
portuguesas que, apesar de todos os enviesamentos, chegou a ser uma marca de
inovação com implantação internacional (inventora do cartão pré-pago), antes de
ruir com estrondo devido às negociatas dos principais accionistas e dos seus
celebrados gestores.
Nos
anos 90, quando os antigos donos-disto-tudo começaram a levantar a cabeça e o
saque das empresas públicas voltou a estar na moda, alguns ministros de então,
com visão do negócio e do futuro das telecomunicações, reestruturaram as
diversas empresas públicas do sector e, com notável sentido patriótico,
fundaram a PT para a... privatizar!
Em
2002, o governo de Durão Barroso deu-lhe 1350 milhões em créditos fiscais para
facilitar a compra da operadora brasileira VIVO, ficando a PT dispensada de
pagar impostos nos anos seguintes, enquanto se dizia não haver dinheiro para a
Educação, a Saúde e Segurança Social por causa do défice.
Como
o negócio da PT (incluindo a PT multimédia) era apetecível, em 2006, a Sonae
quis entrar no bolo e ofereceu 5800 milhões de euros (!) só de bónus para os
accionistas votarem a sua OPA, mas a gerência da PT, com Granadeiro e Bava ao
comando, ofereceu-lhes um rebuçado ainda maior – 6200 milhões (!) –,
correspondente à totalidade do défice de Portugal na altura (!), e ganhou.
Em
2010, com a ajuda de Sócrates, a PT vendeu a brasileira Vivo (razão do crédito
fiscal de 2002) por 7,5 mil milhões de euros, escolhendo a Holanda para não
pagar impostos. Sempre amável, o governo ainda ofereceu mais 230 milhões aos
grandes accionistas, devidos ao fisco por mais-valias que foram antecipadas.
Descapitalizada
(para não dizer «assaltada» ou «roubada») pelos seus próprios gestores, que
transferiram 900 milhões para as mãos dos Espírito Santo, já afundados no
escândalo da sua própria falência, a PT foi abaixo, passando a peça sobrante da
OI brasileira, que a pôs à venda a preços de saldo, entregando mais um sector
estratégico nacional a uma mal-afamada sociedade franco-argelina, a Altice.
Durante
todos esses anos, milhares de milhões de euros foram pagos a accionistas e
gestores da PT ou perdidos em benefícios fiscais, e, com a ajuda da abdicação
pelo governo de Passos Coelho da golden share que ainda assegurava
algum controlo do estado, a PT foi à vida.
Esse
foi o triste fim da galinha dos ovos de ouro, quando, ainda em Abril de 2012, a
revista da Deco Proteste anunciava em letras grandes: «Os dividendos da PT
são os mais generosos. Dão 17% ao ano».
Entre
2010 e 2014 a PT pagou 3,4 mil milhões de euros em dividendos (Observador,
21-8-2015).
Mas,
para além da enorme quantidade de dinheiro queimado nas habilidades da gestão
ou injectado nos bolsos dos grandes accionistas, o extraordinário know-how acumulado
por funcionários, técnicos e quadros superiores, com a colaboração da
Universidade de Aveiro, começou, com os novos donos da Altice, a ser atirado
pela borda fora como se fosse a água suja do banho do bebé.
Desde
Julho de 2015, quando a Altice comprou a PT, já saíram cerca de 1400 empregados
e cerca de 1000 mudaram de funções e de lugares de trabalho. A nova gestão
passou a exercer uma ainda maior pressão para drásticos cortes no salário e
despedimentos (Expresso, 18-2-17).
Quadros
e técnicos com grande qualidade e experiência «não passam de lixo» para a
empresa, como um deles afirmou ao referido semanário.
A
Altice, que criou uma intrincada e nebulosa teia de sociedades à volta da PT,
foi ainda premiada com 30 milhões de euros de fundos públicos como apoio para
criar uma rede de nova geração na zona centro do País (Público, 27-2-17), usa e
abusa do poder junto de funcionários e fornecedores, o que parece estar no ADN
dos seu comportamento.
Para
os leiloeiros do património nacional, eternos defensores dos «mercados» e da
«globalização», casos como os da PT são naturais, fruto de uma concorrência
virtuosa e regeneradora que, no fim, beneficiaria o progresso penalizando os
mais fracos, embora Granadeiro e Bava tenham sido pagos a peso de ouro para
destruírem a empresa, envolvidos numa aura de prémios e elogios.
De
facto, parece vivermos numa época em que passou a ser aceitável e estimulante
uma especulaçãozinha sofisticada, uma jogatina na bolsa, uma «alavancagem» de
risco (ainda mais se tiver apoio do Estado), sendo esse o apregoado sabor da
vida aventurosa dos gestores da moda, com que pretendem justificar os seus
salários obscenos.
Se
dá para o torto, logo há sempre gente credenciada a assegurar que o desastre
nada tem a ver com questões nucleares do sistema, como as desvantagens das
privatizações ou opções erradas para desenvolvimento nacional.
Mas
será que podemos considerar circunstancial a ininterrupta cascata de escândalos
como o do BPN (pré e pós-intervenção), do BPP, do BCP, dos gastos Madeira, da
Estradas de Portugal, do SIRESP, das rendas da energia, das PPP, das fundações
de fachada, dos processos «Furacão», «Monte Branco», «Face Oculta», da Parque
Escolar, dos estaleiros de Viana, das contrapartidas dos submarinos, dos
milhões dos F-16 encaixotados, dos 1000 milhões emprestados a Joe Berardo, dos
2000 milhões perdidos pelo Fundo de Estabilização da Segurança Social, dos 2600
milhões desbaratados nos swap – a que se acrescentam os muitos
milhares de milhões do Banif e do BES, enquanto 10 mil milhões de euros
viajaram para os offshore sem o governo de Passos e Portas notar, tão
distraído que estava a esmifrar os vulgares contribuintes?
Serão,
todos estes episódios que reproduzem um padrão semelhante em tantos outros
países da «Europa» e do «Ocidente», a prova da eficácia da badalada supervisão
e das apregoadas vantagens da privatização da banca e das grandes empresas?
Se
a PT, a maior empresa estratégica de telecomunicações do país, está agora
entregue a especuladores estrangeiros cuja maior inovação é raparem o fundo do
tacho e despedirem trabalhadores, talvez seja útil lembrar que também a banca
(tão segura e supervisionada no discurso oficial do início da crise) se foi
desagregando e vendida a fundos e bancos estrangeiros, restando apenas a Caixa
Geral de Depósitos, que, apesar de todas as tropelias e tentativas de privatização,
ainda resiste como último reduto de confiança.
Como
é possível que, depois de todo este lamaçal de corrupção e incompetência das
chamadas «elites» dos negócios e da finança, que sugou os fundos necessários
para o desenvolvimento do país, continuemos a ver as mesmas caras, os mesmos
comentadores, os mesmos economistas, os mesmos políticos, a continuarem a
perorar cheios de superioridade moral, como se nada se tivesse passado,
elogiando as virtualidades bondosas da privatização das grandes empresas
nacionais?
Para
que tudo isto acabe, é importante que elas permaneçam ou regressem ao controlo
público. Mas não basta. Não serão os protagonistas ou apoiantes do ruinoso
trajecto das últimas décadas que poderão evitar a repetição do desastre.
Torna-se necessário trilhar um caminho diferente, que não encontra soluções em
invocados perfis tecnocráticos que mantêm o sentido de casta situada acima da
lei, da moral e do interesse dos cidadãos, reivindicando salários
estratosféricos.
É
necessário que a sua gestão tenha o sentido do serviço público e do bem
colectivo.
E
não é isso que tem acontecido.
*em
AbrilAbril, opinião – Jorge Seabra é médico ortopedista – Foto: Lusa
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