Baseado
em livro de James Baldwin e em suas lembranças sobre Luther King e Malcolm X,
documentário revela arsenal usado pela sociedade norte-americana para ocultar
presença negra
José
Geraldo Couto, no blog do IMS –
Outras Oalavras
“A
história do negro na América é a história da América – e não é uma história
bonita.” A frase, dita pelo escritor James Baldwin (1924-87) a certa altura de Eu
não sou seu negro, sintetiza muito bem o espírito do esplêndido documentário de
Raoul Peck que concorreu ao Oscar da categoria.
O
filme tem como eixo, ou ponto de partida, o livro que Baldwin estava começando
a escrever quando morreu, Remember this house, baseado em suas lembranças
pessoais de três ativistas negros assassinados entre 1963 e 1968, todos eles
antes de completar quarenta anos: Medgar Evers (1925-63), Malcolm X (1925-65) e
Martin Luther King (1929-68).
Não
há, no documentário, narração em terceira pessoa, nem entrevistas recentes, nem
letreiros explicativos. Todas as imagens são de arquivo e todo o texto que
ouvimos é de James Baldwin, na voz do próprio escritor, em entrevistas e
discursos de época, ou na do ator Samuel L. Jackson, quando se trata de trechos
extraídos de seus livros e artigos.
Em
primeira pessoa
Sob
esse discurso contundente em primeira pessoa, que configura uma leitura
coerente e sem concessões da história social, política e cultural dos Estados
Unidos, Peck tece uma vívida tapeçaria de imagens de fontes diversas:
cinejornais, comercias de TV, programas de entrevistas, trechos de filmes
hollywoodianos etc.
Por
meio de uma articulação audiovisual arguta, desnuda-se a autoimagem dos
norte-americanos forjada pela indústria cultural, em especial pelo cinema: o
mito dos desbravadores, o sonho americano de liberdade e prosperidade, a
família monogâmica sorridente e moralista, o progresso e o consumo sem limites.
É
tocante e iluminadora a reminiscência de Baldwin das sessões de cinema da
infância, em que torcia por John Wayne contra os índios até se dar conta de que
os índios eram também ele, sua família, seus amigos e vizinhos. Teve que
amadurecer na marra. Já o branco americano, diz Baldwin, dá-se o privilégio de
não amadurecer nunca, de permanecer a vida toda nesse estágio de inocência
cega, nessa tola brincadeira de mocinho e bandido.
É
nesse contexto ideológico, constituído pelos mitos hegemônicos brancos, que os
negros aparecem como “problema”. “Agora que não precisam mais de nós para
colher algodão eles querem nos matar. Estão sempre à beira da ‘solução final’”,
diz Baldwin a certa altura, com terrível lucidez.
Contra
o paternalismo
Se
há um ponto que enfraquece o documentário é o uso ocasional de uma música
plangente, de piano e violino, indutiva da emoção do espectador. Isso não só é
desnecessário como contradiz uma ideia central de Baldwin, a de que os negros
não precisam de simpatia ou piedade, mas de respeito e reconhecimento. Uma
passagem forte, por exemplo, é a que cerca de ironia o discurso paternalista,
ainda que profético, de Bob Kennedy em meados dos anos 1960, dizendo que,
“dentro de quarenta anos, quem sabe, talvez os Estados Unidos cheguem a eleger
um presidente negro”.
Um
tema que o filme praticamente deixa de lado, embora seja crucial na vida e na
obra de Baldwin, é a homossexualidade, talvez por receio de perder o foco.
Afinal, não se trata propriamente de um filme sobre o escritor, mas sobre suas
relações com a questão racial na América.
Num talk
show televisivo, apresentado logo no início do documentário, o
entrevistador diz estranhar o fato de Baldwin ter uma visão tão negativa da
questão racial, já que os negros estavam conquistando cada vez mais direitos e
espaços. A resposta do escritor é dura, amarga, irônica, mostrando que os
próprios termos em que a questão era colocada estavam errados. As imagens do
filme acabam por lhe dar razão cabalmente, ao mostrar a persistência do
preconceito e da ideologia segregacionista ainda nos dias de hoje. E o
recrudescimento dessa ideologia na era Trump torna tudo ainda mais atual.
Eu
não sou seu negro não apenas dá continuidade, mas aprofunda e amadurece a
reflexão cinematográfica sobre a presença negra na sociedade americana. Dialoga
sobretudo com trabalhos de Spike Lee como Malcolm X e A hora do
show.
A
ambição artística e política de Raoul Peck transcende fronteiras. Nascido no
Haiti, onde chegou a ser ministro da Cultura em 1996 e 1997, ele realizou,
entre outros trabalhos, uma elogiada cinebiografia do líder revolucionário congolês
Patrice Lumumba. E depois de Eu não sou seu negro já fez um novo
longa-metragem, a ficção biográfica O jovem Karl Marx. Exibiu ambos no
festival de Berlim que se encerrou em 18/2. Assim como James Baldwin, que viveu
boa parte de sua vida adulta na França, Peck é um negro que sabe qual é o seu
lugar – e o seu lugar é o mundo inteiro.
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