Agora
sim, o presidente dos Estados Unidos age como lhe compete: trata a Rússia como
o inimigo que, com todo o descaramento, procura impedir a balcanização da
Síria, assim contrariando o incontrariável Israel; e aponta o dedo ameaçador à
China, usando a Coreia do Norte como intermediário.
José
Goulão* | opinião
As
reprimendas duras de amigos e aliados, a revolta caricaturada em manifestações
inconsequentes e mesmo as conjecturas sobre um hipotético impeachment de
Donald Trump cessaram como por encanto.
Secaram
as lágrimas de crocodilo sobre a tragédia dos imigrantes que a Administração
norte-americana declara ilegais; os muros e cercas erguidos na fronteira entre
os Estados Unidos e o México passaram a ser compreendidos, como tolerados são
os levantados na Europa contra a «praga» dos refugiados (David Cameron dixit);
o triste fim do pueril Obamacare perdeu o significado como
bandeirinha de um protesto hipócrita, acomodada agora nos fundos de uma
qualquer gaveta perdida.
Dissolveu-se
assim a tempestade sobre Washington, soprada a partir do mundo que se auto
define como civilizado durante os primeiros 100 dias da presidência imperial de
Donald Trump. Para alcançar tão pacífica acalmia bastaram um bombardeamento
contra o território soberano da Síria; o lançamento de uma superbomba contra o
Afeganistão supostamente independente – um feito heróico cantado numa babel de
línguas, ainda que viole algumas normas básicas da ONU; um piedoso acto de
contrição declarando que «a NATO já não é obsoleta»; e uma arenga com ameaças
de guerra contra a Coreia do Norte proferida in loco pelo vice-presidente Mike
Pence, imitando uma pose do rambo.
Pronto,
já está. Restaurou-se a situação global de déja vu, porém com tonalidades
ainda um pouco mais assustadoras: durante umas semanas, o irresponsável e
truculento fascistóide Donald Trump esteve aquém da sanha guerreira
universalizante dos seus tradicionais aliados, entre eles os principais
dirigentes da União Europeia, mas também os menos principais, garnizés que
gostam de parecer importantes cacarejando aquilo que os verdadeiramente
influentes desejariam proclamar mas têm acanhamento. Trump está absolvido dos
pecados originais, frutos da verdura da inexperiência e de um mal pesado
voluntarismo.
Os
cientistas nucleares de Chicago que gerem o Relógio do Apocalipse podem agora
mover os ponteiros mais uns segundos em direcção à meia-noite fatal, depois de
os terem deixado a dois minutos e meio já em Janeiro deste ano. Nessa altura,
Donald Trump nem sequer aquecera ainda a cadeira do gabinete oval e mal
começara a receber lições da CIA sobre a localização nos mapas desses países
esquisitos como a Síria, o Iémen, a Coreia do Norte ou mesmo o Irão e a
Ucrânia. Até então ele apenas conhecia a existência dos Estados Unidos da
América e, já durante a campanha, ouvira falar de Israel quando fazia as contas
aos donativos eleitorais.
Agora
sim, o presidente dos Estados Unidos age como lhe compete: trata a Rússia como
o inimigo que, com todo o descaramento, procura impedir a balcanização da
Síria, assim contrariando o incontrariável Israel; e aponta o dedo ameaçador à
China, usando a Coreia do Norte como intermediário, para que não se atreva a
ensombrar a estratégia de «pivot asiático», um upgrade da dominação
imperial promovido por Obama, com a colaboração do convenientemente
ressuscitado militarismo nipónico.
Em
menos de 100 dias consumou-se um reenquadramento da estratégia global da
Administração Trump, sumariamente expurgada dos arroubos que ainda reproduziam
ecos das macacadas da campanha eleitoral. A mensagem «nova» do
candidato Trump, e que arrastou muitos eleitores, conjugava uma política
interna ultranacionalista, do tipo «a América para os americanos», com uma
política externa de convivência possível com os inimigos, privilegiando o civil
sobre o militar, poupando recursos ao reduzir os esforços de guerra. Combinação
que se articulava ainda com uma correcção dos caminhos a percorrer com os
aliados, designadamente a revisão das estratégias comerciais, opção que
implicou a suspensão dos acordos multilaterais de comércio livre.
Orientações
como estas reflectiram-se nas escolhas iniciais para construção do edifício da
Administração, através da escolha de figuras habitualmente menos mediáticas
representando interesses dos grandes e tradicionais empórios económicos civis;
sectores há muito submetidos às migalhas da mesa do orçamento, devido à
estratégia de criação de guerras público-privadas assumida a partir da queda do
Muro de Berlim.
Durante
escassas semanas foi impossível detectar sombras de lobistas dos enormes
impérios da indústria de guerra no interior da estrutura de conselheiros de
Trump. O próprio secretário de Estado, Rex Tillerson, ex-patrão da Exxon-Mobil,
foi esporadicamente um partidário dos entendimentos com a Rússia, devido aos
negócios conjuntos da sua empresa com a Gazprom na exploração de petróleo em
território russo e no Golfo do México.
As
primeiras escolhas do novo presidente abalaram o status quo da ordem
capitalista neoliberal instalada, porque reordenavam os interesses e as
influências determinantes sem bulir com o primado da selvajaria de mercado.
Por
isso, as testas-de-ponte mais activas na ordem dominante e à cabeça dos
partidos-Estado – Hillary Clinton pelos democratas e John McCain pelos
republicanos – não descansaram enquanto não corrigiram alguns erros de casting na
estrutura da nova administração, movendo as suas ligações e influências na
constelação dos serviços de espionagem e entre os militares.
O
anúncio de um reforço de 54 mil milhões de dólares no orçamento militar foi um
primeiro sinal de que alguma coisa estava a mudar. Seguiu-se o despedimento dos
dois principais conselheiros de Trump, Michael Flynn e Steve Bannon, não por
serem «espiões de Putin» – essa foi a historinha usada na propaganda – mas
por defenderem as opções económicas civis internas e, por consequência, a
secundarização da guerra.
Emergiram
então as influências de falcões encartados, entre eles o próprio genro de
Trump, Jared Kushner, o vice-presidente Mike Pence, o general Mattis,
secretário da Defesa e, sobretudo, o tenente general Herbert Raymond McMaster,
também conhecido pelo sugestivo nickname de «o guerreiro académico»,
novo conselheiro de segurança nacional do presidente.
As
mudanças não tardaram em surtir efeito. Por exemplo, da acalmia na Síria após a
libertação de Alepo à recuperação do objectivo de «derrubar
Assad» transcorreu um período durante o qual Donald Trump assumiu seis
posições diferentes em relação àquele país do Médio Oriente.
Hoje,
as linhas gerais da estratégia de Trump são idênticas às dos seus antecessores
desde a década de oitenta do século passado: neoliberalismo puro e duro,
provocação como motor da política externa, primado da guerra, submissão da
política interna aos esforços militares da expansão externa, orientação
ideológica de extrema-direita.
Daí,
por exemplo, que agora já tenha sido possível inaugurar no porto de Livorno, em
Itália, União Europeia, um vaivém naval público-privado de transporte de
armamento ao serviço da NATO e desempenhado por três cargueiros gémeos
futuristas de uma empresa denominada «Liberty Global Logistics»: o
«Liberty Passion», o «Liberty Pride» e o «Liberty Promise». Nos seus
fundos porões com 200 metros de comprimento têm capacidade para transportar o
peso equivalente a 6500 automóveis em carros de combate e outros veículos de
guerra, com destino aos portos de Aqaba, na Jordânia, e Jedah, na Arábia
Saudita, para serem entregues aos «terroristas moderados» disseminados
pelo Médio Oriente.
Uma
operação que tem como fase final – o que nem sequer é já um segredo de
Polichinelo – a transferência do armamento para os grupos que gerem a actuação
terrorista na região: al-Qaida e Daesh. Nas últimas semanas o presidente Trump
recebeu por duas vezes o rei Abdullah da Jordânia, uma frequência inusitada; e
há poucos dias o presidente norte-americano apressou-se a felicitar o ditador
turco Erdogan pelo êxito do golpe constitucional que reforça o seu poder
autocrático e fundamentalista islâmico.
Jordânia,
Arábia Saudita e Turquia: três países que operam como bases de recrutamento,
treino, financiamento e infiltração dos grupos terroristas actuando
principalmente na Síria – dos «moderados» ao Daesh.
Através
da «nova» estratégia de Trump retoma-se o objectivo de inventar um
«Sunistão» a partir de territórios do Iraque e da Síria, centrado em
Mossul, para criar uma via de transporte de petróleo da Península da Arábia
para a Europa que evite compras de combustíveis à Rússia; ao mesmo tempo,
trava-se a concretização do ambicioso projecto chinês de criar uma ligação
comercial expedita entre o Ocidente e o Oriente, uma reedição da «Rota da
Seda». É o confronto de interesses dos grandes blocos mundiais e respectivos
acessórios, movidos agora por agudas tendências nacionalistas que não se contêm
nas fronteiras políticas.
Com
Trump ao leme da sua renovada e agressiva equipa, a globalização imperial manu
militari tem pressa, avança disparando em todas as direcções – mesmo que
alguns tiros sejam ainda de pólvora seca. A ameaça inquietante que paira sobre
todos nós é directamente proporcional à irresponsabilidade e aventureirismo de
novos e velhos actores no terreno – e Donald Trump não está sozinho, desde que
aprendeu rapidamente a falar a linguagem «compreendida» pelos seus
aliados.
José Goulão, jornalista |
em AbrilAbril
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