A
Administração Geral Tributária (AGT), do Ministério das Finanças, procedeu a
uma audiência bizarra, com “julgamento ad-hoc”, para justificar a apreensão de
881 CDs de música e poesia falada, provenientes de Portugal.
Rafael
Marques de Morais *
Segundo
o auto de apreensão a que o Maka Angola teve acesso, a AGT considera subversivo
o conteúdo dos CDs.
Com
23 faixas musicais e de poesia falada, o álbum “15+2+Nós” junta artistas
angolanos, portugueses, moçambicanos e brasileiros, num tributo aos 15 activistas
angolanos detidos em 2015, sob a repugnante acusação de preparação de golpe de
Estado e tentativa de assassinato do presidente José Eduardo dos Santos.
A
acusação foi promovida pessoal e publicamente pelo procurador-geral da
República, general João Maria de Sousa. No banco dos réus, num julgamento
considerado de “palhaçada”, sentaram-se também, em 2016, as activistas Laurinda
Gouveia e Rosa Conde, que se encontravam em liberdade. Perante a falta de
provas, o infame Januário Domingos condenou os 17 por “associação de
malfeitores”.
“E
assim vivemos trancados nessa masmorra infernal/ porque o poder executivo
interfere no judicial/ resultado: inocentes encarcerados/ veredictos
encomendados/ crimes omitidos/ e o povo vive trancado no próprio medo/ pagando com
a própria vida a factura desses bandidos”, cantam os Fat Soldiers e Raf Tag, na
terceira faixa do álbum, intitulada “Angola vai mal”.
“Tratando-se
de mercadoria proibida conforme o artigo 53º quadro 1/18 das Instruções
Preliminares da Pauta, Decreto-Lei n.º 1/14, de 30 de Janeiro, foi a mesma
apreendida”, lê-se no auto de apreensão assinado pelo actuante Miguel Manuel
Domingos, da Delegação Aduaneira das Encomendas Postais.
O
auto, com data de 17 de Fevereiro de 2017, apenas foi agora dado a conhecer e
entregue ao co-produtor do CD, Harvey Madiba, que passou dois meses às voltas,
em vãs tentativas para desalfandegar a mercadoria.
De acordo com o analista jurídico do Maka Angola, Rui Verde, “o Auto de Apreensão é nulo, pois invoca uma norma legal que não existe. O Decreto-Lei n.º 1/14, de 30 de Janeiro, não existe no ordenamento jurídico angolano. Aliás, desde a entrada em vigor da Constituição que a figura do Decreto-Lei foi extinta”. Rui Verde nota que “apenas existem decretos-lei com data anterior a 2010. Nunca com data de 2014. Logo, em primeiro lugar, há uma inexistência formal”.
Em
segundo lugar, “um esforço interpretativo permite-nos considerar como possível
que o Auto de Apreensão se refere à Rectificação n.º 1/14, publicada no Diário
da República de 30 de Janeiro de 2014, que é feita pelo presidente da República
ao Decreto Legislativo Presidencial n.º 10/13, de 22 de Novembro. “Nessa
rectificação, encontram-se umas ‘Instruções Preliminares da Pauta Aduaneira’ e
um artigo 53.º que proíbe a importação de artigos mencionados num Quadro I.
Nesse Quadro I existe um n.º 18 que se refere a “Material de propaganda
subversiva, por exemplo: livros, DVD e CD contendo música, imagens ou outras
informações que incitem a violência, distúrbios, agitação social, etc.”, refere
o jurista.
O
co-produtor executivo do álbum, Harvey Madiba, conta que, antes de receber o
Auto de Apreensão, o chefe da Delegação Aduaneira da Alfândega no Terminal de
Cargas, Anlide Lufuangula, lhes “deu a conhecer que a mercadoria está
apreendida, por conteúdo subversivo que representa riscos para o Estado
angolano”.
De
acordo com o produtor, Anlide Lufuangula examinou o conteúdo “subversivo” no
seu gabinete, tendo ouvido três faixas do álbum. Estavam presentes, para além
de Harvey Madiba e do activista Jang Nómada, que o acompanhava, o comandante da
Polícia Fiscal, destacado no local, identificado apenas como comandante Sapalo,
duas juristas por si convocadas mas “que se recusaram a ser identificadas”, e
um funcionário da AGT identificado apenas como Segunda.
“Dissemos
que isso era um julgamento contra as liberdades de expressão e de criação e que
estávamos em desvantagem porque eles tinham ali as juristas”, nota o
representante dos músicos.
Em
declarações ao Maka Angola, o delegado da AGT confirma que “nós ouvimos as
músicas em conjuntos e ficámos esclarecidos”. Anlide Lufuangula adianta que, em
caso de dúvidas, os activistas “podem apresentar recurso”. Quanto à aplicação
de um decreto-lei inexistente para fundamentar a apreensão dos CDs, e sobre o
“carácter subversivo” das músicas, o delegado afirma que qualquer informação
adicional deverá ser solicitada por escrito.
“Nos
iludiram com a teoria de que a água não tem cor, cheiro nem sabor/ Quanto à cor
vai à torneira lá de casa e verás a existência da cor/ e com uma variação de
bairro para bairro/ pois ela vem vestida em 40 tons de múkua/ mas levantámos as
mãos a dizer que está tudo bem (…)”, reclama Pedro Bélgio , no seu poema falado
“40 Tons de Múkua”.
“O
senhor Anlide Lufuangula e o seu colega queriam que nós explicássemos o que
significa ‘40 Tons de Múkua’, porque eles acham que o título tem uma mensagem
codificada de subversão”, revela Harvey Madiba. A múcua, ou múkua, é a fruta do
imbondeiro.
De
seguida, o censor da AGT procedeu à examinação da segunda prova do “crime”, a
faixa “Já chega”, de Mac D. “Governantes gatunos, já chega/ assassinatos, já
chega/ falta de emprego, já chega/ vossa riqueza ilícita, chega”, canta Mac D.
“Sinceramente,
a nossa juventude sofre mais/ não finjam que não sabem do que a gente é capaz/
não finjam mesmo/quando a hora chegar/ quando as cabeças estiverem levantadas e
os punhos no ar / quando quebrarmos os grilhões / aí entenderão”, vaticina o
rapper Mac D.
Harvey
Madiba explica que o delegado da AGT — feito juiz em tribunal ad-hoc — lhe
perguntou se havia ditadura em Angola. “Eu respondi que o comportamento do
chefe da AGT é um exemplo da ditadura que se vive neste país”, conta.
Finalmente,
ouviu-se a faixa “Angola vai mal”, dos Fat Soldiers e Raf Tag, a terceira a
passar pela censura de Anlide Lufuangula.
“Nos
ministérios ocorre um mistério evidente/ o dinheiro desaparece assim
misteriosamente/ e tudo é orquestrado por um dinossauro/ que tem a filha
sortuda com galinhas de ovos de ouro”, cantam os rappers.
“O
Sr. Lufuangula perguntou-nos se achávamos ético chamar o presidente de
dinossauro. Nós dissemos que o dinossauro é um animal pré-histórico, com muito
poder. Também explicámos que a filha é a nossa irmã Isabel, que ficou rica a
vender ovos, como ela própria afirmou numa entrevista”, recorda Harvey Madiba.
Segundo
os activistas, após a sessão ad-hoc de censura, Anlide Lufuangula deu como
comprovado o “carácter subversivo” dos conteúdos musicais, aconselhou os jovens
a terem mais calma e “pediu-nos para não falarmos à imprensa sobre o sucedido”.
Rui
Verde enfatiza que “os CDs só poderiam ser apreendidos se os rappers incitassem
efectivamente à violência ou a distúrbios. Não se podem apreender CDs por
conterem músicas críticas ao presidente e à governação. A Constituição e a Lei
não permitem tal. Nem mesmo a lei invocada pelas autoridades”.
Fazem
parte do elenco de artistas angolanos MCK, o poeta falante Fridolim
Kamolakamwe, Mona Dya Kidi, Kool Kleva, Kid MC, Dr. Romeu e Sanguinário. Do
Brasil, contribuem DJ Preto, Pamelloza e Gog. De Moçambique, o álbum conta com
um total de dez artistas, incluindo Milton Gulli, Ângelo Comé e Bruno Huca, que
interpretam, em estilo marrabenta, a faixa “Angola ninguém te enrola”. De
Portugal vem, em trova, o hino “Liberdade já”, pela voz de Joana Alegre e
Bernardo Fesch.
“Depois
do encontro com o chefe da AGT, dois agentes da Polícia Nacional, fardados,
levaram-nos para um canto, mesmo lá no Terminal de Cargas, para sermos
revistados. Queriam revistar-nos a nu. Irritámo-nos, e só depois o comandante
ordenou o cancelamento da revista a nu.”
* Maka Angola
- Em Folha 8 com título de Folha 8
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