Num
cais vazio, malas solitárias com ar ainda mais de abandonadas porque as pegas
estão por terra, carrinhos derrubados, mochilas e até malinhas de mão
espalhadas no chão demonstram uma fuga abrupta... - ontem à tarde, a Gare du
Nord, estação central de comboios na margem direita de Paris, foi cenário de
mais um momento de pânico coletivo. Na véspera, acontecera o mesmo na estação
do metropolitano de Châtelet, por causa de uma tábua caída de andaime. Desta
vez, na Gare du Nord, foi uma patrulha policial que interpelou um homem,
supostamente com uma faca na mão, mas que se rendeu de imediato.
As
pessoas falam do medo fundo, não adormecido, como velhos combatentes: "Já
não é como do primeiro atentado, mas..." O assassínio do polícia nos
Campos Elísios, na quinta-feira, abalou, mas... São muitos os "primeiro
atentado" a calejar - desses da memória recente, Charlie Hebdo, Bataclan,
já para não falar das bombas dos anos 1990, dos radicais islâmicos argelinos,
que levaram a fechar os caixotes de lixo na cidade, e muito menos da
pré-história, há mais de meio século, dos atentados da guerra da Argélia
transportada para Paris... Vendo bem, a cidade nunca foi fácil, os parisienses
estão habituados. Mas... Os parisienses estão tensos.
O
passar das sirenes, em cortejos longos de até uma dúzia de carrinhas da
polícia, é constante. Jovens soldados de camuflado e colete à prova de bala,
mão pousada no protetor de gatilho da metralhadora, um ir até ao canto da rua,
olhar à esquerda e à direita, precedendo o avançar da patrulha, imagem normal
de filme (Vietname) ou de noticiário de TV (Mossul)... Mas tão insólito e
inesperado quanto a placa da rua diz Boulevard Haussman, os cartazes anunciam
as galerias Lafayette e, no passeio, namorados sentam-se em cadeiras de palha e
bebem golos de Aperol.
Estranhos
sinais de uma guerra que não é. Ou é?
Poucos
quarteirões adiante, no canal de Saint-Martin, os vizinhos e os turistas olham,
da ponte em curva, o barco de um casal de velhos dinamarqueses, ele de camisola
às riscas azuis e brancas de marinheiro, ambos com tremores de mão e mão em
copo de rosé, esperando que a eclusa suba a água para poderem prosseguir a
viagem à sombra dos castanheiros...
O
bairro já foi pobre mas agora beneficia da gentrificação, esse palavrão que
moderniza e globaliza as capitais. O gerente do Donantonia Pastelaria, jovem de
Bragança, regressado com os pais emigrantes para Trás-os-Montes e há meia dúzia
de anos em torna--viagem para a Paris, onde nasceu, vende pastéis de natas e
bolas-de-berlim. Só lhe resta esperar o que vai acontecer hoje e daqui a duas
semanas, pois ainda não escolheu ser francês como a lei lhe permite.
É
que a França é uma incógnita e o jovem transmontano sabe-o de bem perto.
Prosseguindo pela rua da pequena pastelaria portuguesa, pelos muros altos e
tetos de ardósia do Hospital de Saint--Louis, virando na Rua Bichat, chega-se a
um cruzamento. Um graffito desenha uma rosa e um desejo: "La vie en
rose...", como cantava Piaf, a miúda da cidade. Às vezes não é bem assim,
como viveram o restaurante Le Petit Cambodge e o bar Le Carrilon, que no
cruzamento se encaram. Têm tragédia comum.
Numa
sexta-feira à noite, em novembro de 2015, um terrorista islâmico atirou à
maluca e com exatidão, 15 mortos. Quis atacar o modo de vida parisiense, mas,
estúpido, nem isso soube fazer bem: eram 21.30, e hora e meia antes teria sido
a happy hour, bebidas mais baratas e multidão maior que não faria desperdiçar
algumas balas que acabaram nas paredes. Ontem, à happy hour, apesar do medo que
dura, dezenas de parisienses escolhiam entre o petit beaujolais e a cerveja.
Despreocupados, embora sejam herdeiros de um acontecimento que levou ao estado
de emergência que ainda hoje vigora.
Esses,
os factos, suficientes para assustar. Os não factos são muitos mais e também
ajudaram a assustar durante esta campanha as presidenciais. Em março, um vídeo
no Facebook (quase oito milhões de visualizações) mostrou um estrangeiro a
agredir duas enfermeiras num hospital francês. Na verdade, aconteceu num
hospital russo... Ainda ontem, nas redes sociais, circularam vídeos que seriam
de muçulmanos em Londres celebrando o atentado dos Campos Elísios. Na verdade,
eram paquistaneses a festejar a vitória da sua equipa de críquete em junho de
2009.
Este
último vídeo foi a mais recente desmistificação de notícias falsas feita pelo
site CrossCheck, um trabalho de 37 meios de comunicação franceses e
internacionais, unidos contra a aldrabice organizada nestas eleições
presidenciais. Dois participantes do projeto, os grandes jornais franceses
Libération e Le Monde, fizeram secções próprias para caçar as mentiras
difundidas na internet. Deram-lhes nomes que dizem ao que vêm, Desintox e
Décodex, desintoxicar e descodificar. A maior parte das mentiras difundidas são
sobre questões de imigração e segurança.
Pierre
Haski, antigo diretor adjunto do Libération e fundador do site Rue89, explicou
nesta semana como os meios de comunicação tradicionais têm vindo a perder
importância na informação consumida pelos leitores. Nesta campanha, um quarto
(24,2%) das notícias partilhadas pelos internautas franceses vieram de sites de
origem duvidosa. "Este número explica a porosidade de uma parte da opinião
pública em relação às fake news", diz Haski.
Nesta
semana já vimos como dois factos menores, um incidente numa obra no metropolitano
e uma simples detenção numa gare, provocaram pânico na multidão. Hoje veremos
se o voto também se deixou abalar por rumores.
Ferreira
Fernandes | Diário de Notícias | enviado a Paris
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