Documentos
inéditos revelam como o Pentágano, CIA e NSA agem para silenciar visões
críticas no cinema e TV e obter apoio público ao estado permanente de guerra
Tom
Secker e Matthew Alford | Outras Palavras | Tradução: Inês Castilho
Quando
começamos a nos interessar pela relação entre política, cinema e televisão, na
virada do século XXI, aceitamos a opinião de consenso, segundo a qual um
pequeno escritório do Pentágono [o Departamento de Defesa do governo
norte-americano] havia, a pedido, assistido à produção de cerca de 200 filmes
ao longo da história do cinema moderno, com uma mínima interferência nos
roteiros.
Como
éramos ignorantes. Mais precisamente, como fomos enganados.
Recentemente,
recolhemos 4.000 novas páginas de documentos do Pentágono e da CIA por meio da
Lei de Liberdade de Informação (Freedom of Information Act). Para nós, esses
documentos foram o prego final no caixão.
Eles
demonstraram, pela primeira vez, que o governo dos Estados Unidos influenciou,
nos bastidores, mais de 800 importantes filmes e mais do que 1.000 títulos de
TV. A maior estimativa anterior, de um livro acadêmico de 2005, era de que o
Pentágono havia interferido em menos de 600 filmes e num punhado de programas
de televisão não especificados.
Até
que os excelentes livros de Tricia Jenkins (The
CIA in Hollywood) e Simon Sillmetts (In
Secrecy’s Shadow) fossem publicados, em 2016, pensava-se que a CIA
havia influenciado apenas cerca de uma dezena de produções. Mas mesmo estas
obras deixaram escapar ou subestimaram casos importantes, incluindo Jogos do Poder [Charlie
Wilson’s War] e Entrando numa fria [Meet
the Parents].
Junto
com a escala maciça dessas operações, nosso novo livro National
Security Cinema [“Cinema de Segurança Nacional”] detalha como o
envolvimento do governo dos Estados Unidos também inclui reescrever roteiros de
alguns dos maiores e mais populares filmes, incluindo os de James Bond, a
franquia de Transformers, e filmes do universo cinematográfico
da Marvel
Comics [como Homem Aranha, Wolverine, X-Men e Capitão
América] e da DC Comics [como Batman,
Superhomem e Mulher Maravilha].
Uma
influência semelhante é exercida sobre a TV quando recebe apoio militar, desde
o Hawaii 5-O e America’s Got Talent, os programa de Oprah e Jay Leno até Cupcake Wars, e inúmeros
documentários produzidos pela PBS, History Channel e pela BBC.
National
Security Cinema revela também como dezenas de filmes e programas
de TV foram apoiados e influenciados pela CIA, incluindo a aventura de James
Bond Thunderball, o suspense de Tom Clancy Patriot Games e
filmes mais recentes, como Salt.
A
CIA ajudou até mesmo a fazer um episódio de Top Chef [a horigem
de Masterchef] que foi hospedado em Langley [cidade-sede da agência],
com a participação de seu então diretor, Leon Panetta, que apareceu na tela
deixando de lado a sobremesa para atender atividades vitais. Essa cena seria
real ou uma dramatização para as câmeras?
A censura política de Hollywood pelos militares
Quando
um escritor ou produtor aproxima-se do Pentágono e pede acesso a qualquer
recurso militar, para ajudá-lo a fazer seu filme, ele tem de submeter seu
roteiro aos escritórios ligados à indústria de entretenimento para verificação.
Em última análise, o homem com a palavra final é Phil Strub, chefe do
Departamento de Defesa para as relações com Hollywood.
Se
há personagens, ações ou diálogos que o Pentágono não aprova, o cineasta tem de
fazer mudanças para acomodar as demandas dos militares. Se ele se recusar, o
Pentágono empacota seus brinquedos e vai embora. Para obter a cooperação, os
produtores precisam assinar contratos – Acordos para Assistência na Produção –
que os vinculam ao uso da versão do roteiro aprovada pelos militares. Isso pode
criar problemas, quando atores e diretores acrescentam algum improviso fora do
roteiro aprovado.
No
set montado na base de Edwards da Força Aérea norte-americana, durante as
filmagens de Iron Man, houve um confronto raivoso entre Strub e o diretor
Jon Fabreau.
Favreau
queria que um personagem militar dissesse: “As pessoas se matariam pelas
oportunidades que tenho”, mas Strub contestou. Favreau argumentou que a fala
deveria ser mantida no filme, e de acordo com Strub:
“O
rosto dele estava cada vez mais vermelho, e eu estava ficando igualmente
irritado. Foi meio estranho, e ele disse com raiva: ‘Bem, que tal eles andarem
sobre brasas?’ Eu disse: ‘tudo bem’. Ele ficou muito surpreso que fosse fácil
assim.”
Ao
fim, afala não apareceu na edição do filme.
Aparentemente,
nenhuma referência a suicídio de um militar – mesmo um comentário ligeiro, numa
comédia de ação de super-herói – é permitida pelo escritório do Pentágono para
Hollywood. É compreensível que seja uma questão sensível e constrangedora para
eles, uma vez que durante alguns períodos da “Guerra ao Terror”, sempre em
expansão e cada vez mais inútil, mais
soldados dos EUA suicidaram-se do que morreram em combate. Mas por que
um filme sobre um homem que constrói seu próprio traje de armadura voadora não
poderia incluir esse tipo de piada?
Outra
fala irônica que foi censurada pelo Pentágono apareceu no filme de James Bond O
Amanhã nunca morre.
Quando
Bond está para saltar de paraquedas de um avião de transporte militar,
eles se dão conta de que ele vai cair em águas vietnamitas. No roteiro
original, a parceira de Bond, da CIA brinca: “Você sabe o que vai acontecer.
Será guerra, e talvez dessa vez a gente vença.” Essa fala foi retirada a pedido
do Pentágono.
Estranhamente,
Phil Strub negou que tenha havido qualquer apoio para O Amanhã nunca morre,
embora o Lawrence Suid, um pesquisador destacado liste a conexão com o Pentágono
como “Cooperação Não Reconhecida”. Mas o Departamento de Defesa está creditado
no final do filme e nós obtivemos uma cópia do Acordo de Assistência na
Produção entre ele e os produtores.
O
Vietnã é, obviamente, outro tópico sensível para os militares norte-americanos,
que também tiraram uma referência à guerra do roteiro de Hulk (2003).
Embora os militares não estejam creditados no final do filme, no IMDB ou na
própria base de dados de filmes apoiados pelo Pentágono, obtivemos um dossiê
dos Marines detalhando suas mudanças “radicais” no roteiro.
Entre
elas, estava transformar o laboratório onde Hulk é criado acidentalmente numa
instalação não-militar; transformar o personagem do diretor do laboratório num
ex-militar e mudar o nome do código da operação militar para capturar Hulk de
“Mão do Rancho” (Ranch Hand) para “Homem Raivoso” (Angry Man).
Ranch
Hand é o nome de uma operação militar real,
na qual a Força Aérea dos EUA 76 milhões de litros de pesticidas e outros
venenos na área rural vietnamita, deixando 20 mil km² de florestas e 2 mil km²
de terra cultivável envenenados e inférteis.
Eles
também retiraram diálogos que faziam referência a “todos aqueles meninos,
porquinhos da índia, morrendo de radiação e guerra bacteriológica”, uma
aparente referência a experimentos militares secretos com seres humanos.
Os
documentos que obtivemos mais tarde revelam que o Pentágono tem poder para
impedir que um filme seja realizado, ao recusar ou retirar apoio. Algumas
produções, como Top Gun, Transformers e Ato de
Coragem são tão dependentes de cooperação militar que não poderiam ter
sido feitas sem se submeter a esse processo. Outras não tiveram tanta sorte.
O
filme Countermeasures foi rejeitado pelos militares por várias
razões, e consequentemente nunca foi produzido. Um dos motivos é que o roteiro
incluía referências ao escândalo Irã-Contras e, como disse Strub, “Não há
necessidade de nós… lembrarmos o público do caso Irã-Contras”.
Do
mesmo modo, Fields of Fire e Top Gun 2 nunca foram
realizados porque não conseguiram obter apoio militar, novamento devido a
aspectos dos roteiros considerados politicamente controversos.
Esta
censura “soft” afeta também a TV. Por exemplo, um documentário planejado por
Louis Theroux sobre o treinamento dos recrutas, entre os Marines, foi
rejeitado, e por isso nunca realizado.
É
impossível saber exatamente quanto se difundiu essa censura militar no setor de
entretenimento, porque muitos arquivos ainda estão sob sigilo. A maioria dos
documentos que conseguimos são informes diários dos escritórios de ligação
entre o Pentágono e o setor de entretenimento, que raramente se referem a
mudanças de roteiro, e nunca de forma explícita e detalhada. Contudo, os
documentos revelam que o Departamento de Defesa requer uma verificação prévia
de qualquer projeto que apoia e às vezes faz mudanças mesmo depois que a
produção está fechada.
Os
documentos registram também a natureza próativa das operações dos militares em
Hollywood e o fato de que estão encontrando modos de envolver-se durante as
primeiras etapas de desenvolvimento dos filmes, “quando os personagens e os
enredos podem ser mais facilmente modelados em benefício do Exército”.
A
influência do Pentágono naos filmes pode ser encontrada em todos os estágios da
produção, o que garante o mesmo tipo de poder que têm os executivos dos
principais estúdios.
A influência da CIA e do NSA nos roteiros de filmes
Apesar
de ter muito menos recursos cinematográgicos, a CIA também tem exercido
considerável influência em alguns dos projetos que apoiou (ou se recuou a
apoiar).
Não
há nenhum processo formal de revisão de roteiro pela CIA, mas Chase Brandon,
durante muito tempo o responsável pela ligação da agência com a indústria de
entretenimento, foi capaz de inserir-se nas primeiras etapas do processo de
roteirização de várias produções de filmes e programas de TV.
Brandon
fez isso mais claramente no filme de suspense e espionagem O Novato [The
Recruit], em que um novo agente passa por um treinamento da CIA nas instalações
secretas da agência em Camp
Peary – obviamente um modo de conduzir a audiência para aquele mundo e
dar-lhe um vislumbre dos bastidores. O tratamento original da história e
rascunhos iniciais do roteiro foram escritos por Brandon, embora ele só apareça
nos créditos do filme como conselheiro técnico, encobrindo sua influência no
conteúdo.
O
Novato inclui falas sobre as novas ameaças do mundo pós-soviético
(incluindo a ignóbil justificativa
para um orçamento anual de “Defesa” de 600 bilhões de
dólares), junto com refutações da ideia de que a CIA fracassou na prevenção dos
atentados de 11 de Setembro. E repete o adágio de que “os
fracassos da CIA são conhecidos, mas não os seus sucessos”. Tudo isso para
propagar a ideia de que a agência é um ator racional e benévolo, num mundo
caótico e perigoso.
A
CIA também conseguiu censurar roteiros, removendo ou mudando sequências que
desejava ocultar do público. Em A Hora mais escura [Zero Dark Thirty], o
roteirista Mark Boal “compartilhou verbalmente” seu roteiro com funcionários da
CIA, e eles excluíram uma cena em que um funcionário bêbado da agência dispara
uma AK-47 para o ar de um telhado em Islamabad (Paquistão), além do uso de
cachorros, nas cenas de tortura.
Num tipo de filme muito diferente, a comédia
romântica muito popular Entrando numa fria, Bradon solicitou que mudassem
uma cena em que o personagem de Ben Stiller descobre o esconderijo secreto de
Robert De Niro (futuro sogro de Stiller). No roteiro original, Stiller encontra
manuais de tortura da CIA numa mesa, mas Brandon mudou isso para fotos de
Robert De Niro com altos oficiais.
De
fato, a habilidade da CIA para influenciar roteiros de cinema remonta a seus
primeiros anos de vida. Nas décadas de 1940 e 50 trataram de evitar qualquer
menção a si mesmos em filmes ou na TV até Intriga Internacional [North
by Northwest], em 1959. Isso incluiu rejeitar pedidos de apoio a produções, o
que significa que alguns filmes nunca foram realizados, e censurar todas as
referências à CIA no roteiro da comédia de Bob Hope A Cigana me enganou
[My Favourite Spy].
A
CIA chegou a sabotar uma série prevista de documentários sobre a agência que a
antecedeu, o Escritório de Serviços Estratégicos [OSS, em inglês]. Para
fazê-lo, assegurou que a CBS assumisse a produção, afastando um estúdio menor
que a planejara. Assim que isso foi feito, a agência desincentivou a própria
série da CBS, para garantir que as atividades da OSS permanecessem blindadas ao
exame público.
Embora
muito pouco se saiba sobre as atividades da NSA na indústria de entretenimento,
encontramos indicações concretas de que também esta agência adota táticas
similares às do Pentágono e da CIA. Emails internos da NSA mostram que os
produtores de Inimigo do Estado [Enemy of the State] foram convidados
a múltiplos tours em Fort Meade, o quartel-general da NSA. A agência
não os proibiu de usar a filmagem aérea, de helicóptero, destas instalações.
Segundo uma entrevista de 1998, com o produtor Jerry Bruckheimer,
o script foi mudado, a pedido da NSA, para que os crimes cometidos
fossem atribuídos a uma “banda podre” da agência, e não a ela própria.
Bruckheimer afirmou: “Acho que o pessoal da
NSA ficou feliz. Eles não vão aparecer tão mal como poderiam. A NSA não é o
vilão do filme”. A ideia de usar o cinema para atribuir a culpa das agências de
segurança a “agentes maus” – evitando assim a noção de responsabilidade
institucional, é um clássico, entre as artimanhas da CIA e do Pentágono.
Em
seu conjunto, estamos diante de aparato de propaganda vasto e militarizado, que
opera por meio da indústria cinematográfica dos EUA. Ele não precisa agir como
censor oficial, já que as decisões sobre os scripts são tomadas
voluntariamente pelos produtores. Mas exerce influência enorme – e pouquíssimo
conhecida – sobre o tipo de narrativas e imagens que vemos nas telas do cinema
e da TV.
Em
um país acostumado a usar seu poder militar em todo o mundo, o uso da cultura
popular para estimular o apoio da população às guerras precisa ser visto como
algo muito grave.
–
Tom Secker e Matthew Alford são autores de um livro recém-lançado nos EUA: National Security Cinema: The Shocking New Evidence of Government Control in Hollywood [“Cinema de Segurança Nacional: as evidências chocantes de controle governamental sobre Hollywood”]
Tom Secker e Matthew Alford são autores de um livro recém-lançado nos EUA: National Security Cinema: The Shocking New Evidence of Government Control in Hollywood [“Cinema de Segurança Nacional: as evidências chocantes de controle governamental sobre Hollywood”]
Tom
Secker é escritor radicado na Grã-Bretanha, que se dedica ao exame de
temas de segurança, Hollywood e a história do terrorismo. Edita o blog SpyCulture. Seu trabalho
foi reportado por publicações como The Mirror, The Express, Salon, TechDirt e
outras.
Matthew
Alford é professor no Departamento de Política, Língua e Estudos Internacionais
na Universidade de Bath. Seu documentário The Writer with No
Hands, [“O Escritor sem mãos”] foi premiado no festival Hot Docs (Toronto,
Canadá) em 2014 e obteve menção honrosa no Festival Popular de Cinema da Anmar,
em Teerã.
Foto:
Cena de “O Resgate do soldado Ryan” (Steven Spielberg, 1998). Pentágono examina
todos os roteiros que requerem instalações militares. Sugestões de mudança não
aceitas inviabilizam produções
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