Manuel
Carvalho da Silva* | Jornal de Notícias | opinião
A
insistência na ideia, continuamente propagada na opinião pública, de que a
sociedade portuguesa se pode desenvolver desvalorizando o trabalho significa a
persistência numa mentira e é uma idiotice.
A
propósito de um pré-acordo entre a Administração da Autoeuropa e a respetiva
Comissão de Trabalhadores (CT) - rejeitado pela esmagadora maioria dos
trabalhadores - surgiu, num dos principais canais de televisão, uma notícia
exemplar quanto à forma míope como são abordadas as questões do trabalho. Em
rodapé, aparecia uma percentagem de votantes na rejeição superior àquela que a
pivot do noticiário ia transmitindo oralmente. Esta foi desenvolvendo o tema e
a determinada altura acrescentou que a proposta da Administração significava
que o "valor proposto pela Administração", no que diz respeito ao
trabalho suplementar aos sábados, corresponde ao pagamento daquele trabalho
"150 euros acima do valor estabelecido na lei". Não se percebeu qual
o período temporal tido em conta para determinar esse valor.
Na
notícia não foi dito quanto é reduzido, pela proposta da Administração, o valor
até agora praticado, foi ignorado que a contratação/negociação coletiva
realizada entre as partes tem força de lei e sustenta as condições de trabalho
e salários ali praticados, não se identificou o conjunto de matérias do
pré-acordo, mas foi sendo insinuado que os trabalhadores podem estar a pôr em
risco aquele importante exportador da economia portuguesa. Nenhum comentário
foi feito sobre a grande capacidade negocial que as partes envolvidas têm tido
ao longo do tempo (esta não foi a primeira vez que os trabalhadores rejeitaram
um pré-acordo), sobre as condições laborais dentro da empresa e o valor aí
criado, sobre como a Autoeuropa se tem posicionado dentro do grupo e da
competição internacional e quais os seus planos estratégicos. Naquela notícia o
sucesso da empresa foi resumido à compressão salarial. Tudo o que está acima de
mínimos estabelecidos na lei foi considerado, de forma absurda e/ou ignorante,
como privilégio dos trabalhadores.
Este
discurso, sistematicamente repetido a propósito de condições de trabalho e
revindicações de profissionais da Administração Pública e de trabalhadores de
muitas empresas e setores privados onde há mais alguma coisa que os mínimos
inscritos no Código de Trabalho ou na lei, nega o desenvolvimento do país.
A
Autoeuropa é inegavelmente uma das empresas mais importantes a laborar em
Portugal, pelo que significa de produção e criação de emprego diretos, e pela
miríade de empresas que desenvolvem as suas operações tendo esta empresa como
principal, senão único, cliente. É pois natural o interesse público sobre a
vida da empresa, que se reclame esforço negocial das partes e que estas tenham
rigor nas informações e cuidado nos pronunciamentos, que se exija atenção
redobrada do Governo. Entretanto, é um absurdo perspetivar o futuro da
Autoeuropa associado a uma estratégia de trabalho desvalorizado.
Como
o setor automóvel bem ilustra, as determinantes de investimento e produção são
muito variadas e dizem respeito, nomeadamente, à qualificação de trabalhadores,
à boa organização e bom ambiente de trabalho, à qualidade dos serviços públicos
(infraestruturas, energia, justiça, saúde), à capacidade de inovação, à
proximidade de mercados. Por outro lado, o trabalho não é apenas um custo. Ele
é e será primordial fonte de rendimento, ancoradouro de vidas dignas e de
condições de socialização para a esmagadora maioria dos cidadãos.
A
existência de leis do trabalho determinando mínimos - que não devem ser
violados - foi difícil mas uma grande conquista democrática. A sua existência e
a promoção da livre negociação entre as organizações dos trabalhadores
(sindicatos, CT) e as empresas ou confederações patronais estiveram na base do
desenvolvimento das sociedades modernas.
A
cartilha neoliberal choca com o progresso e tolhe o futuro do trabalho. Em
Portugal, é preciso derrotar a dinâmica que tenta impor o salário mínimo
nacional como o "salário nacional", e os direitos e condições de
trabalho restringidos a mínimos inscritos nas leis e à vontade unilateral dos
patrões.
*
Investigador e professor universitário
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