Manuel Carvalho da Silva | Jornal
de Notícias | opinião
Quem acredita que "o que
pode ser feito acabará sempre por ser feito se houver quem retire benefício
económico disso", numa perspetiva de que o poder do dinheiro se sobrepõe a
todos os outros poderes e ao Estado de direito; quem acredita que "o
Direito tem de se adaptar sempre à realidade" correndo atrás de
determinismos tecnológicos deve ter ficado surpreendido com dois acontecimentos
recentes. O primeiro foi o abalo provocado pela revelação do uso ilegal de
dados pessoais coligidos pela Facebook. A perspetiva da condenação desta mega
empresa nos tribunais está a provocar enorme queda no seu valor bolsista e os
cidadãos sentem-se apreensivos face a esta ilegalidade. O segundo, o
atropelamento mortal causado por um veículo sem condutor da Uber, seguido da
imediata suspensão destes estúpidos testes realizados na via pública, decisão
tomada na hora para evitar maiores complicações jurídicas.
Um certo clima de condenação
geral vai rapidamente ser controlado por poderes económicos, financeiros e
comunicacionais que se estruturam e alimentam da imensa riqueza propiciada pela
subversão do Direito. Mas estas duas empresas (ou outras do mesmo tipo) podem
vir a juntar-se às muitas que, no passado, sucumbiram em consequência de
conflitos com o Direito e com os tribunais.
Estes incidentes servem para nos
lembrar que a ética e o Direito podem, em muitas circunstâncias, impedir que
seja feito o que pode mas não deve ser feito. Por que razão deve o Direito
adaptar-se a inovações tecnológicas que permitem fazer o que consideramos não
dever ser feito? Por que razão não é a tecnologia a acomodar-se a objetivos que
nos permitam realizar o que desejamos e é justo fazer?
No domínio do Direito do Trabalho
todos os dias ouvimos que ele tem de se adaptar às novas realidades do "mercado
de trabalho", ou seja, à financeirização da economia, à mercantilização do
trabalho, ao individualismo exacerbado, à acumulação desmedida de riqueza pelos
acionistas e gestores de topo de grandes grupos empresariais, à substituição de
leis democráticas pela lei do patrão. Inventam-se atividades
"desmaterializadas", proletarizam-se velhas profissões liberais ao
mesmo tempo que muitos dos antigos e atuais proletários são forçados a
transformar-se em empresários de si mesmo.
Também o Direito do Trabalho não
pode ir atrás destas pretensas novas realidades. Ele sempre influiu e não pode
deixar de influir nos impactos vindos da evolução tecnológica, das alterações
demográficas, das opções económicas e políticas, das mudanças organizacionais e
gestionárias. Sem ele os desequilíbrios de poder entre o capital e o trabalho
destruirão as sociedades democráticas. O Direito do Trabalho choca frontalmente
com a transformação das relações laborais de tipo salarial em relações de
"prestação de serviços" propiciada por plataformas digitais como a
Uber. Por outro lado, empresas como a Facebook não podem continuar a ser
predadoras impunes que ganham milhões vendendo informação privada sem o direito
de dispor dela.
Na utopia de mercado
generalizado, a Uber prenuncia que todos poderemos ser consumidores e
prestadores de serviços, uns ligados a outros num mercado digital, onde os
prestadores estão sempre às ordens e os consumidores sempre e prontamente a
serem bem servidos. Tudo parece perfeito e emanando "naturalmente" do
uso das novas tecnologias, mas de facto as pessoas que estão naquela engrenagem
não passam de peças descartáveis e o tal mercado digital é propriedade de uma
empresa.
Como vão ser autonomizadas e
desmaterializadas as funções da esmagadora maioria dos trabalhadores que
continuarão, necessariamente, a trabalhar concentrados em espaços concretos
para garantirem a produção na indústria, nos mais diversos setores de atividade
e para executar as funções da Administração Pública?
Será que está em marcha a
privatização do que nunca foi privatizado - o próprio mercado, ou segmentos de
mercado?
É preciso impedir a transformação
das pessoas em objetos facilmente descartáveis e será um absurdo deixar
privatizar os mercados. Estas são boas razões para o Direito se entrepor,
impedindo que a vantagem de alguns transforme a vida de todos num inferno.
Um certo clima de condenação
geral vai rapidamente ser controlado por poderes económicos, financeiros e
comunicacionais que se estruturam e alimentam da imensa riqueza propiciada pela
subversão do Direito.
* Investigador e professor
universitário
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