Tinha tudo para ser ele. Desde
logo porque é o filho varão. Dos dez irmãos, José Filomeno dos Santos só é mais
novo do que Isabel. E depois porque ela, a primogénita, que podia fazer-lhe
sombra, parecia não estar para aí virada. Isabel tornou-se a primeira figura da
sua geração em Angola a ser internacionalmente famosa, aproveitando os cinco
anos que tem a mais que o irmão para levar um bom avanço no caminho do êxito
público, mas o seu mundo eram os negócios. E o outro eventual candidato, Manuel
Vicente, o único fora do círculo da família, começou a ter a sua sorte traçada
assim que deixou de ser presidente da Sonangol para assumir a vice-presidência
de Angola.
Pouco importava se ninguém sabia
muito bem quem ele era até ser nomeado, em 2012, administrador do Fundo
Soberano de Angola. O filho do Presidente não era ainda capa de revistas, mas
nos círculos do poder em Luanda já existia há uns anos a ideia de que era dali
que viria o futuro do país. Pelo menos desde 2007, quando uma primeira
referência ao seu nome surgia em Portugal, num artigo do jornal “Público”
precisamente sobre a ascensão de Isabel, em que era escrito que “a sucessão
política” estava “orientada para o seu irmão, José Filomeno dos Santos”.
Formada em Londres, onde adquirira experiência a trabalhar em multinacionais,
em 2007, Isabel dos Santos estava a crescer como empresária, vendendo a ideia
de que era não só independente do pai mas também uma seguidora fiel das regras
do direito privado europeu. Com ela seria by the book. Não iria misturar as
coisas, passaria bem sem ocupar cargos públicos. A cadeira da Presidência não
era o seu campeonato.
A ideia foi amadurecendo. O rapaz
podia ter o perfil para o que era preciso: contentar os pobres, contemporizar
os ricos. Num relatório confidencial sobre o potencial sucessor do Presidente
de Angola, produzido em maio de 2010 pela agência de intelligence
norte-americana Stratfor e mais tarde publicado na íntegra pela organização de
fugas de informação WikiLeaks, José Filomeno era retratado como o único dos filhos
de José Eduardo dos Santos que parecia preocupar-se com a situação social do
país: “Quando viaja até às províncias, ele faz uma avaliação crítica e rigorosa
da situação, às vezes destacando uma certa lentidão ou má-fé das autoridades
locais em fazerem o seu trabalho. No regresso partilha essas situações com o
pai, o que tem reforçado o seu papel de fonte de informação do chefe de
Estado.”
O interesse da Stratfor, uma
fonte de informações de relevo para multinacionais e para o Governo
norte-americano, especializada em identificar oportunidades e riscos em todas
as zonas do globo, era o reflexo da importância que já era dada ao jovem José
Filomeno dentro e fora de fronteiras.
A maior parte da informação
relatada pela Stratfor vinha originalmente do Clube K, um site de notícias
fundado em 2000 que se assumiu desde o início como um órgão de comunicação
independente vocacionado para denunciar abusos de poder e corrupção em Angola,
editado a partir dos Estados Unidos, Portugal, Holanda, França, Alemanha e Brasil
por angolanos expatriados. Eram eles que diziam que o filho mais velho do
Presidente angolano era uma pessoa atenta. E um homem educado.
“Porta-se como um cavalheiro”,
escreveu o Clube K no seu site, no texto que foi apropriado pela Stratfor.
“Quando vai à padaria comprar pão, saúda as pessoas, mesmo as que não conhece.
É capaz de dar prioridade às senhoras. Quem com ele se cruza, sobretudo os
jovens, acaba por ter a impressão de que é uma figura simples e bastante
educada, que nem parece ser filho de quem é.”
José Filomeno dos Santos fez
então o que era esperado. Em 2012, logo a seguir às eleições gerais ganhas pelo
pai com 72% dos votos, no primeiro confronto direto com eleitores em 20 anos,
surgiu a nomeação do filho varão como administrador de um novo fundo soberano,
há muito anunciado, capaz de garantir o futuro de Angola, tornando o país menos
dependente do petróleo. “Zenu”, a alcunha do jovem financeiro, estava a dar o
passo aparentemente certo para vir a ser o legítimo herdeiro de “Zedu”.
O Fundo Soberano de Angola,
também designado FSDEA, com ativos iniciais de 5 mil milhões de dólares, foi
lançado oficialmente a 17 de outubro desse ano. O primeiro comunicado da nova
entidade dizia que o objetivo era “promover o desenvolvimento socioeconómico do
país e criar património para as gerações futuras”. Falava de uma “carta social”
e de “grandes desafios sociais”, como o acesso do povo a água potável ou a
serviços de saúde. O secretário presidencial para os assuntos económicos e
antigo diretor nacional do Tesouro, Armando Manuel, era empossado como
presidente, tendo “Zenu” e um outro jovem gestor, Hugo Gonçalves, como
administradores. Armando Manuel afirmava que o Fundo iria “assegurar uma
receita financeira e uma receita social elevadas”. O próprio José Filomeno era
citado a realçar a criação de “oportunidades com um impacto positivo na vida
atual de todos os angolanos” — agricultura, distribuição de água e
eletricidade, transportes.
Numa entrevista ao “Diário
Económico”, publicada no dia seguinte, José Filomeno dizia que o Fundo
continuaria “a ser alimentado pelas receitas da venda de barris de petróleo”.
Numa notícia do Expresso, Armando Manuel assumia que o ritmo de injeção de
dinheiro no Fundo iria ser de 100 mil barris de petróleo por dia, o equivalente
na altura a 3,5 mil milhões de dólares por ano. Essas contas eram repetidas
pelo próprio “Zenu”, em declarações também ao Expresso, em que aproveitava para
reforçar a sua veia social: o grande objetivo “era melhorar cada vez mais a
vida da população em geral e, deste modo, ir reduzindo as assimetrias”.
Além disso, tudo iria ser feito
de forma transparente, de acordo com um novo comunicado divulgado dois meses
depois, para que o “povo angolano” pudesse monitorizar o progresso do programa
de investimentos. “O nosso plano é trazer um crescimento socioeconómico para
todos”, sublinhou José Filomeno dos Santos ao “Financial Times”. “Não é trazer
um crescimento para certos indivíduos em particular.” A ambição era grande. E a
tentação também. Num país em que 95% das exportações são petróleo e a produção
diária andava nos 1,5 milhões de barris em 2012, 100 mil barris eram 7% do
bolo.
O projeto tinha a cara do filho
varão. Em seis meses houve um salto rápido. Com apenas 35 anos, “Zenu” passava
de administrador a presidente do Fundo. A 21 de junho de 2013 era anunciada a
sua súbita promoção. O pai tinha resolvido fazer uma pequena remodelação
governamental. Tirou a pasta das Finanças a Carlos Alberto e deu o cargo a
Armando Manuel, ao mesmo tempo que corria com o ministro da Construção,
Fernando Fonseca.
A jogada política provocou alguma
agitação. O grupo parlamentar Convergência Ampla de Salvação de Angola, a CASA,
pediu ao Tribunal Constitucional para que anulasse o decreto presidencial que
tinha criado o Fundo, uma vez que essa iniciativa teria de ser aprovada pela Assembleia
da República, mas os juízes não lhe deram razão. Citado pelo serviço público
internacional de televisão e rádio alemão, Deutsche Welle, o diretor da
organização não-governamental angolana Open Society, Elias Isaac, explicava que
o problema não se prendia com o facto de existirem “mecanismos institucionais
do Estado que vão verificar se os objetivos deste Fundo estão a ser cumpridos
ou não”, mas sim com o facto de em Angola já terem sido “constituídos outros
fundos que foram à falência”. E o Governo, concluía o ativista, nunca tinha
chamado ninguém à responsabilidade. Daí a importância do envolvimento do
Parlamento.
Não havia como voltar atrás. O
Presidente decidira. Calado, de pose reservada e introspetivo como o pai, mas
com uma atitude mais sensível, viria mesmo “Zenu” a ser o novo “Zedu”?
SEMPRE EM TRÂNSITO
José Filomeno de Sousa dos Santos
nasceu a 9 de janeiro de 1978 em Luanda, quando o pai era ministro das Relações
Exteriores do Governo do então Presidente Agostinho Neto. José Eduardo dos Santos
tinha casado com uma russa que conhecera na universidade em Baku, no
Azerbaijão, na época em que aquele país fazia parte da União Soviética. Com a
independência de Angola, em 1975, Tatiana Kukanova viera com o marido e com a
pequena Isabel, então com dois anos, instalando-se no Bairro Alvalade.
Mas “Zedu” não aguentou o
casamento durante muito tempo e em 1977 já se tinha envolvido com a sua
secretária no Ministério. Filha de pai cabo-verdiano e mãe angolana, Filomena
de Sousa — “Necas” como sempre foi conhecida entre amigos e familiares — tinha
estudado na escola comercial Vicente Ferreira antes de começar a trabalhar para
o Governo. E antes de se apaixonar pelo jovem ministro, então com 35 anos.
José Eduardo dos Santos e “Necas”
não chegaram a casar. Nem a viver juntos. Com a morte de Agostinho Neto e a sua
ascensão a líder do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e, por
inerência, a Presidente do país, “Zedu” iria, de qualquer modo, garantir que
nada faltaria a nenhum dos seus sucessivos núcleos familiares, à medida que ia
tendo filhos de diferentes mulheres.
José Filomeno passou os primeiros
anos de vida na rua Porto Alexandre, perto do mercado do Bairro Popular, na
casa dos avós maternos. A mãe vira-se obrigada a deixar de morar sozinha, em
Vila Clotilde (hoje Vila Alice), para ter ajuda na educação e nas rotinas
diárias da criança.
Para todos os efeitos, o miúdo
foi assumido pelo pai. Quando frequentou a escola Ngola Kanini, antiga João
Crisóstomo, no quarteirão da escola portuguesa e do liceu francês de Luanda, e
mais tarde, quando se transferiu para o estabelecimento do ensino secundário
Juventude em Luta, logo ali ao lado, ia e vinha num Mercedes fornecido pela
Presidência, acompanhado sempre de dois guarda-costas.
Os antigos colegas de carteira
recordam-se dele como um rapaz “muito recatado”. Tirando a sua condição
especial de ser filho de quem era, não dava nas vistas. Com a vida mais
estabilizada, a mãe mudou-se para a rua Comandante Stona, nos arredores do
Bairro Alvalade, e acabou por casar com um antigo militar das FAPLA, o exército
do MPLA, de quem viria a ter mais duas crianças.
Ao mesmo tempo que assegurava uma
boa educação formal para o filho varão, José Eduardo dos Santos parecia querer
manter à distância a ex-companheira, à medida que a sua vida sentimental ia
ficando cada vez mais complicada. Ainda na primeira metade da década de 80,
Zedu viu nascer mais dois herdeiros, Welwitschea — ou Tchizé — e o músico José
Paulino, que viria a adotar o nome artístico de Coréon Dú. Ambos eram fruto de
uma relação iniciada com uma terceira mulher, Maria Luísa Abrantes. Considerada
como uma “personalidade extravagante” nos círculos sociais, “Milucha” Abrantes,
que até há pouco tempo foi presidente da extinta Agência Nacional de
Investimento Privado, ficou célebre por ter feito um escândalo na rua ao
cruzar-se com “Necas”. Um episódio que seria contado e recontado em Luanda.
“Milucha” e “Necas” estavam a
criar os filhos do Presidente, cada uma no seu bairro, mas a cidade estava a
ficar pequena. E ficou ainda mais pequena quando José Eduardo dos Santos teve
um quinto filho, em 1988, José Avelino, com uma quarta mulher, vindo finalmente
a casar-se com uma quinta mulher, Ana Paula Lemos, uma hospedeira do avião
presidencial que subiria ao altar em maio de 1991, grávida de cinco meses de
Eduane Danilo.
Por esta altura, quando fez 12
anos, “Zenu” deixou a escola Juventude em Luta e foi viver para Estocolmo,
depois de a mãe ter sido nomeada de forma aparentemente oportuna como
secretária para os assuntos económicos na embaixada angolana na Suécia,
acompanhando-a mais tarde na mudança de posto para a embaixada em Londres, a
cidade para onde também tinha ido Tatiana com Isabel. “Milucha” fora entretanto
com os filhos para os Estados Unidos. O ambiente, apesar da guerra civil em
curso, desanuviara em Luanda, na guerra emocional do líder do MPLA.
Em Londres entrou para a
Universidade de Westminster, de onde saiu com uma licenciatura em Engenharia
Eletrónica e um mestrado em Finanças e Gestão de Sistemas de Informação. Nos
tempos livres aprendeu a tocar piano. Gostava muito de música. Foi nesse
período, numa das vindas de férias a Luanda, que conheceu Maíra Fernandes.
Segundo o perfil traçado pelo Clube K, “Zenu” “arranjou uma bolsa para a
namorada pela Sonangol” e em 1997 ela “seguiu para Inglaterra”.
Depois de o cadáver de Jonas
Savimbi, o líder da UNITA, o partido rival do MPLA, ser exibido na televisão,
em 2002, anunciando o fim da guerra civil, José Filomeno dos Santos estava
pronto para regressar de vez a casa. Após o casamento com Maíra, em 2004, foi
morar para o Bairro Alvalade, não muito longe de onde passara a infância, e
começou a acumular casas na capital angolana, duas, três, quatro. Uma delas na
praia.
O primeiro emprego na AAA, a
seguradora da Sonangol, durou até 2005. Foi quando decidiu experimentar o
sector privado, seguindo o exemplo de um jovem empresário, Mirco Martins,
enteado de Manuel Vicente de quem se tornara muito amigo em Inglaterra, quando
ambos estudavam Engenharia Eletrónica, embora em diferentes cidades.
Começou num escritório pouco
sofisticado e meio escondido nas imediações da Livraria Lello, o antigo largo
da pastelaria e café Gelo, perto da marginal que abraça a baía de Luanda. Terão
sido aí as primeiras reuniões da consultora Quantum Global, a ‘progenitora’ do
Banco Quantum Invest, o seu primeiro projeto no mundo da finança. E foi aí que
conheceu o homem com quem passou a fazer parcerias — um gestor e empresário com
ligações a Cabinda, uma eventual ascendência portuguesa e detentor de dupla
nacionalidade, suíça e angolana. Jean-Claude Bastos de Morais tornou-se
omnipresente na sua vida.
Embora na biografia que publicou
no site pessoal, Jean-Claude diga que fundou a Quantum Global em 2003, o site
oficial do grupo afirma que a primeira das várias companhias que o empresário
tem vindo a criar foi fundada somente em 2007. Era a Quantum Global Wealth
Management, que em 2012 viria a transformar-se na Quantum Global Investment
Management, com dupla sede: na Suíça e em Angola. Quando isso aconteceu — a
mudança de nome — já Jean-Claude e “Zenu” tinham fundado juntos o Banco
Quantum, o primeiro banco de investimento em Angola, rebatizado, em 2010, Bank
Kwanza Invest.
Rafael Marques, o jornalista mais
conhecido de Angola e o mais temido pelo regime, não perdeu tempo e logo em
dezembro de 2012 aprofundou o passado de “Zenu”, analisando a situação num
longo artigo. A Quantum Global já estava a gerir fundos de milhares de milhões
de euros para o Banco Nacional de Angola e, embora na data de lançamento do
Fundo o filho do Presidente tivesse dito que iria vender a sua participação
acionista no Bank Kwanza, um jornal sul-africano, o “Mail & Guardian”,
publicou uma entrevista em que José Filomeno dizia em contrapartida que a
Quantum Global estava a gerir temporariamente a carteira de investimentos da
nova entidade, até se poder abrir um concurso público para isso.
Algo estava mal explicado. O
gestor desligava-se do seu antigo negócio por um lado, desfazendo-se das ações
que podiam provar que era dono de um grupo privado, mas mantinha a relação com
as empresas e os seus ex-sócios de uma outra forma? Como ter a garantia de que
não iria usar testas de ferro para continuar como acionista oculto da Quantum e
do Bank Kwanza. Seria mesmo verdade que aquele jovem sensível às “assimetrias”
entre os angolanos ricos e os angolanos pobres tinha estofo para guiar o país
no futuro?
O primeiro sinal de que as coisas
podiam não ser assim tão promissoras de uma nova era com a subida do filho ao
poder surgiu numa notícia publicada pelo Expresso logo em junho de 2013, dias
depois de ter sido nomeado presidente do Fundo. “Após um prolongado impasse,
que se arrastou por mais de 30 meses, a compra de 90% da Escom, empresa do
grupo Espírito Santo, deverá estar finalmente concluída nos próximos dias”,
dizia a notícia. “O comprador será o Fundo Soberano de Angola, agora presidido
por José Filomeno dos Santos, filho do Presidente angolano.”
O dinheiro da reserva destinada a
criar novas fontes de receita para o futuro era, afinal, um instrumento para
resolver negócios pendentes?
No Governo acreditou-se que o
Fundo iria ocupar por direito próprio o espaço que tinha sido até então um
território da Sonangol — de onde acabara de sair Manuel Vicente, o peso mais
pesado do regime de Angola, ao ter acumulado o poder de gerir a maior empresa
pública do país com a diversificação dos ativos da petrolífera fora da esfera
do sector energético e dos limites físicos do país. Talvez os ministros
adivinhassem o que iria na cabeça de José Eduardo dos Santos. De que era por
ali, e não pela Sonangol, que o dinheiro a sério passaria a jorrar. “A saída da
Sonangol do negócio [da Escom] corresponde a uma alteração significativa da
política de investimentos de Angola”, escrevia o Expresso. “Com a criação do
Fundo Soberano, este passa a ser o principal instrumento do Governo para a
realização de grandes operações financeiras dentro e fora do país.”
Para aliviar a pressão provocada
pelos comentários cada vez mais sonoros de que o pai o tinha colocado como
líder do Fundo de modo a abrir-lhe a porta da sucessão, “Zenu” tentou rebater
essa ideia na imprensa. “A minha nomeação não tem nada a ver com uma campanha
política de espécie alguma”, disse o delfim à Reuters, uma agência de notícias
global. Queria que toda a gente o ouvisse. Era por causa do seu currículo que
ele estava onde estava. “Passei a maior parte da carreira no sector financeiro,
tanto na banca como nos seguros, a fazer avaliações de investimento semelhantes
às que estamos a fazer.”
A justificação de que subiu
exclusivamente por mérito deu a deixa para o “Financial Times” esmiuçar o
assunto. Era provavelmente o mais novo no mundo à frente de um fundo soberano.
E não vinha carimbado para o lugar com uma formação nas melhores escolas de
gestão, porque Westminster é apenas a 100ª melhor universidade inglesa, num
ranking de 127. Tirando a hipótese de ter ido para o cargo por via sanguínea,
sobrava então o argumento da experiência profissional. “A biografia do senhor
dos Santos diz que antes de ser nomeado para o Fundo Soberano de Angola
trabalhou em várias indústrias, incluindo trading, seguros e banca e ‘ocupou
cargos’ na Glencore [multinacional anglo-suíça]. Verificou-se que a experiência
do senhor dos Santos na Glencore estava relacionada com um estágio através da
Sonangol — a petrolífera do Estado angolano — que durou entre três e seis meses
no final dos anos 90. Ninguém na Glencore conseguiu confirmar que tivesse tido
um emprego lá.”
Para o bem e para o mal, agora
era uma figura pública. Tudo poderia ser usado contra si. A rádio Voz da
América contava como um amigo de “Zenu” tinha sido detido no sul de França
quando viajava de carro, a caminho do Mónaco, com três milhões de euros na bagageira.
Ia acompanhado por um funcionário do general Bento Kagamba — o controverso
homem de negócios casado com uma sobrinha do Presidente, que o Ministério
Público brasileiro investigou por ter montado um esquema com prostitutas de
luxo entre São Paulo, Lisboa e Luanda. O amigo disse às autoridades francesas
que só 100 mil euros é que eram dele. Segundo o “Maka Angola”, o site de Rafael
Marques, o amigo era o principal sócio do filho do Presidente para os negócios
imobiliários.
UM FUNDO SEM FUNDO
A compra da Escom tal como tinha
sido noticiada não chegou a acontecer, mas o episódio mostrava que talvez
“Zenu” fosse facilmente permeável à forma habitual de gerir o dinheiro em
Angola. Cedo a realidade se instalou no novo gabinete ocupado pelo jovem gestor
de topo. Em novembro de 2013, depois de um primeiro ano em que o Fundo perdeu
os primeiros 4,8 milhões de dólares, José Filomeno dos Santos formalizava um
contrato com o grupo Quantum Global, “mediante o qual esta entidade deverá
atuar como gestor de investimento com relação aos dinheiros e propriedades que
lhe sejam designados, de tempos em tempos, pelo FSDEA, todos os investimentos e
reinvestimentos feitos com esses dinheiros e propriedades e as receitas dos
mesmos e todos os ganhos e lucros dos mesmos resultantes”.
Até hoje, o Fundo Soberano de
Angola publicou dois relatórios anuais. Só em 2014, de acordo com o mais
recente desses relatórios, divulgado há um ano, José Filomeno decidiu pagar 117
milhões de dólares em contratos feitos com seis consultoras, três delas
diretamente relacionadas com o grupo Global Quantum, que cobraram 75 milhões de
dólares.
Tirando as companhias facilmente
identificadas com a Global Quantum, na lista surge ainda uma Stampa CG, a quem
foram pagos 17 milhões. Sem referências na internet, trata-se de uma companhia
incorporada no Chipre, em outubro de 2013. E que tem como administrador
Jean-Claude Bastos de Morais. Uma outra empresa, a Tomé International AG, que
recebeu 20 milhões do Fundo, foi fundada na Suíça em maio de 2012 como consultora
especializada em energias alternativas, tendo sido comprada em dezembro de
2013. Nos registos comerciais suíços consta uma mudança de morada em janeiro e
2014. A empresa transferiu-se de cidade, de Baar para Zug, e ficou a 900 metros
de distância da Quantum Global. No site oficial da Tomé International, onde
passou a vir escrito que a consultora tem experiência em gerir “o
desenvolvimento de infraestruturas críticas e de larga escala em todo o mundo”
e que esses projetos vão da América do Sul à Europa e a África, nada diz sobre
a sua estrutura acionista. Mas nos contactos, além da sede em Zug, também vem
um endereço em Luanda, uma caixa postal na rua Comandante Gika. A mesma rua
onde fica a sede do banco da Global Quantum.
Nem a consultora de recursos
humanos contratada para dar uma ajuda no recrutamento de pessoas para o fundo
escapou a esta lógica fechada. A Uniqua Consulting GmbH, que recebeu 5,8
milhões de dólares pela consultoria prestada em 2014, era até fevereiro deste
ano propriedade da Quantum Global. Sendo que nos últimos quatro meses passou a
ser detida por uma empresa com sede em Chipre, a Varintia Holding Limited. Cujo
administrador é Jean-Claude Bastos de Morais.
Todas as seis consultoras
contratadas pelo Fundo têm, pois, Jean-Claude por trás. Ou seja, dos 121
milhões de dólares pagos em consultorias, em 2014, 117 milhões foram parar ao
amigo e antigo sócio de “Zenu”. Uma outra sociedade da Global Quantum recebeu,
além disso, um adiantamento de 7,2 milhões de dólares, a propósito de um contrato
assinado em maio de 2014. Eram as duas primeiras prestações para uma
consultoria no valor de 11,6 milhões e com a duração de três anos que “visa o
desenvolvimento de um modelo econométrico para simulação de aspetos da economia
nacional que permita aos economistas especialistas do Fundo compreenderem de
forma eficaz os processos fundamentais que afetam a economia nacional”.
Por cima desses valores todos,
houve ainda 23 milhões de dólares atribuídos pelo Fundo a uma organização
chamada African Innovation Foundation (AIF) “para o financiamento de projetos
de cariz social”, sendo que foram pagos 11 milhões à cabeça. “Os acordos de
doação celebrados entre as partes preveem a realização de um total de dez
projetos no âmbito do Programa de Impacto Social para Angola, o qual será
coordenado pela AIF. No âmbito dos acordos de doação celebrados entre as
partes, a AIF disponibilizará ao Fundo relatórios de atividades semestrais e
anuais sobre cada um dos projetos a desenvolver.” Esses relatórios não estão,
no entanto, publicados pelo Fundo. E quem é que está por trás da African
Innovation Foundation? Jean-Claude Bastos de Morais.
“Tudo o que sai da cabeça de
‘Zenu’, sai da cabeça de Jean-Claude”, acredita Rafael Marques. O antigo sócio
de José Filomeno no Bank Kwanza Invest considera-se, ele próprio, uma “máquina
de ideias”, chegando a assumir-se numa entrevista a um jornal suíço como “o cérebro”
do Fundo Soberano de Angola, o homem que deu a ideia para que ele fosse criado.
Independentemente de quem foi a
ideia, o certo é que num ano, em vez de aumentar de valor, o Fundo perdeu 157
milhões de dólares. Pela pouca informação que existe, até ao final de 2014, o
Fundo tinha 2,7 mil milhões aplicados em obrigações e títulos do tesouro, sendo
que a maioria desse dinheiro serviu para comprar títulos com maturidades
superiores a um ano. Menos de 280 milhões de euros foram jogados na bolsa. Tudo
somado, 3 mil milhões de dólares de capital investido deram 15,6 milhões de
proveitos. Ou seja, tiveram 0,52% de rentabilidade, apesar de todo o dinheiro
extra gasto em consultorias de gestão. E nunca entrou um barril de petróleo a
mais que fosse das receitas do Estado desde que o Fundo foi lançado.
Em abril deste ano, os ‘Panana
Papers’, a maior fuga de informação de sempre, levaram uma rede africana de
centros de jornalismo de investigação, a ANCIR, a publicar no Expresso e
noutros jornais um artigo onde se revelava os bastidores das relações entre
“Zenu” e Jean-Claude com um ex-diretor da Quantum Gobal e atual diretor do Bank
Kwanza, Marcel Krüse, e com Ernst Welteke, administrador de ambas as entidades
e ex-presidente do banco central alemão, o Bundesbank, de onde foi forçado a
demitir-se. O artigo abordava o pagamento do Fundo de Soberano de Angola numa
única transação de 100 milhões de dólares a uma empresa chamada Kijinga, bem
como outros pagamentos a companhias em paraísos fiscais criadas pela operadora
de offshores Mossack Fonseca, cujos beneficiários finais estão ainda por
descobrir. “O sistema estabelecido pelos arquitetos responsáveis pelo FSDEA e o
Banco Kwanza é um esquema perfeito”, escrevia o ANCIR. “Há um conselheiro
financeiro, uma fonte de fundos, bancos privados e inúmeros beneficiários
desconhecidos. As possibilidades de criar atividades ilícitas, especialmente no
que toca a capital político, são tão ilimitadas quanto as formas de as levar a
cabo.”
O cenário promissor anunciado em
2012 não está a acontecer. Jean-Claude parece ser apenas o mais visível dos
calcanhares de Aquiles que o filho varão do Presidente tem vindo a colecionar.
Somam-se as suspeitas de testas de ferro. O amigo Jorge Gaudens Sebastião
comprou 49% do Standard Bank alegadamente em seu nome, além de o representar de
forma não assumida como investidor no complexo de edifícios que está a ser
construído na ilha da Chicala. Joaquim Sebastião, antigo diretor do Instituto
Nacional de Estradas (INEA) e atual presidente do Benfica de Luanda, é um dos
outros nomes de que se fala. Consta que foi a algumas empresas fictícias de
“Zedu” que terá entregue mais de 200 milhões de dólares em empreitadas
sobrefaturadas.
Armando Manuel, que assumiu a
pasta das Finanças em 2012 porque “Zenu” assim o quis, segundo uma fonte do
palácio presidencial, tornou-se entretanto um dos seus mais fiéis aliados. Com
Óscar Tito Fernandes, outro jovem empresário, formam um trio com várias
ramificações empresariais. A amizade com o ministro terá estado na origem de um
negócio que está a provocar uma onda de indignação pública.
O caso envolve a compra pelo
Estado de um edifício de 35 andares por 115 milhões de dólares, apesar de o seu
custo total ter sido de 40 milhões, segundo dados públicos da Mota-Engil, a
construtora da obra. A 12 de setembro de 2014, José Eduardo dos Santos instruiu
o ministro das Finanças que procedesse à aquisição do edifício através de um
contrato de compra e venda entre o Governo e a Imob Angola — Empreendimentos
Imobiliários, Lda., uma empresa detida em 45% por Maíra Isungi Campos Costa dos
Santos, mulher de José Filomeno dos Santos, e em 10% por Óscar Tito Fernandes.
Os restantes 45% pertenciam ao brasileiro Valdomiro Minoro, mas foram vendidos
à Incasa, propriedade, em partes iguais, de Óscar Tito Fernandes e do
brasileiro António Perruci Alves.
Dez dias depois da compra do
prédio pelo Ministério das Finanças, a titularidade da Imob Angola passaria
para as mãos de uma empresa-fantasma, a Bertoli Investment Participações, cujas
sócias — Maria Isabel João e Domingas Zanda Muenho — são duas figuras
desconhecidas registadas no notariado sem que os seus endereços estejam
completos.
O tapete vermelho estendido a
José Filomeno tem vindo a transformar-se, aparentemente, numa armadilha. Em
Luanda, pessoas que têm acompanhado de perto o drama da sucessão de José
Eduardo admitem como pouco provável a hipótese de ser “Zenu” a suceder-lhe. Não
necessariamente por causa dos rumores de se ter envolvido em desvios do
dinheiro do Estado. “Na verdade, não revela inclinação para a coisa, é muito
inseguro e o pai não parece dar mostras de lhe depositar confiança para o
substituir”, admite uma fonte da família.
“Zenu” sabe que, se quiser sobreviver,
terá de ir mais longe do que já foi e entrar diretamente na política. “Não há
futuro empresarial para os nossos príncipes, sem cobertura política” — confessa
Jeremias Félix, um informático, militante do MPLA, desencantando com a atual
liderança de Eduardo dos Santos. Mas para isso é preciso que José Filomeno
chegue a tempo. A combinação dos dados, outrora propícia, mudou.
O pai já confirmou que vai fazer
o que tinha dito que não ia fazer, recandidatando-se a Presidente nas eleições
gerais de 2017, quando completar 75 anos, na esperança de aguentar as pontas do
regime enquanto Angola não recuperar um pouco da grave crise financeira e
económica que está a assolar o país. E a única irmã que lhe podia fazer sombra
acabou de assumir a administração da Sonangol, num anúncio inesperado feito em
maio e que pôs fim à teoria de que Isabel dos Santos nunca iria ocupar cargos
públicos. “Zenu”, que tinha tudo para ser ele o sucessor, tem agora tudo para
não o ser.
Micael Pereira | Expresso | com
Gustavo Costa em Luanda
Artigo publicado na edição do
EXPRESSO de 9 junho 2016
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