Miguel Guedes | Jornal de Notícias
| opinião
A exposição da debilidade humana
é uma revelação de falência da sociedade democrática. Quando sujeito à pressão
e ao escrutínio dos interrogatórios da Operação Marquês, José Sócrates
comporta-se como qualquer acossado. Gesticula, verborreia, atira-se às grades
com distinção animal, defende e ataca, dissimula e voa entre figuras de estilo
e acto dramático. Nada de provinciano transmontano assoma ou de fausto
parisiense brilha. Não há qualquer justificação ou interesse público em ver um
animal político dar luta senão para edificar a convicção no julgamento público
da sua culpa. Sabe-se agora que ninguém está a salvo de ver a sua liberdade
devassada com videoinquéritos judiciais sem consentimento informado. Não há
razão plausível que me convença de que quem defende esta invasão da justiça
pelo dente-por-dente não se mova, sobretudo, pela sede canina de soltar o seu
olho-por-olho em rasgo individual de carrasco.
Com a devida vénia em dia de
Liberdade, nem a minha nem a convicção de ninguém sobre a culpa ou a inocência
de José Sócrates são para aqui chamadas. Sorridentes, continuam a desfilar os
alumiados que mancham todos aqueles que defendem os mais elementares princípios
de direito, associando-os à torpe tentativa de justificar ou absolver Sócrates.
Esse processo de linchamento do Estado de direito pela sede de ir ao pote dos
ódios particulares é uma perigosa travessia para o tempo dos algozes. Ao longo
dos dias, analistas políticos transformaram-se em especialistas comportamentais
através de câmaras de vigilância. Salivam por frame. Asseguraram o interesse
público na divulgação de imagens de um processo judicial em curso, estimulados
pelas expressões faciais subliminares, manifestações corporais com peso
específico, pelos silêncios e escusas de labirinto, pelo timbre de voz da fera
ou pelo seu esmagador silêncio, pelos segundos de aceleração aos 100. Não há
nada de novo, não há investigação. Há voyeurismo judicial. A felicidade do
torcionário está estampada. O julgamento pela convicção está na cara.
É assustadora a facilidade com
que hoje se reescreve o "Tratado antropológico experimental do homem
delinquente". No século XIX, a teoria do criminoso nato de Cesare Lombroso
fazia escola na antropologia criminal, inebriada pela selecção natural de Darwin.
Bastava, então, a análise das características puramente físicas e
comportamentais para se apontar ao criminoso, condenado que estava à
reincidência pelo peso da hereditariedade e pela irrenunciável vertigem da
delinquência. Epicteto, filósofo grego, assegurava que "não são as coisas
que nos perturbam mas a forma como interpretamos o seu significado". Se a
justiça passar a conviver bem com um kit de justiceiros, convirá tipificar
criminalmente o ódio como a verdadeira doença.
O autor escreve segundo a antiga
ortografia
*Músico e jurista
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